No
início deste ano, surgiu uma séria polêmica a respeito da cena de um beijo entre
homossexuais representados na novela Amor à Vida. O blog
Carta Maior publicou, em 11/02/2014, um artigo do Prof. Paulo Rená da Silva
Santarém (*) que, a partir desse fato, faz uma excelente reflexão sobre as
reações da sociedade e de pessoas que se dizem cristãs, diante das relações
homossexuais. O título original do artigo é: “Sem
licença para odiar: o beijo gay e as religiões”.
Tendo em vista a importância do assunto e as
oportunas considerações do autor, publico o artigo citado, permitindo-me de omitir o primeiro parágrafo que faz alusão ao que foi dito acima.
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A
Constituição Federal não protege o preconceito de nenhuma religião. A liberdade
de crença não constitui salvo conduto para o desrespeito à diferença.
Diante da crescente demanda por respeito aos homossexuais, como fica o
entendimento religioso de que ser homossexual é pecado? Se gays e lésbicas não
querem ser discriminados, podemos condenar as religiões para as quais essa
forma de vida não se amolda aos mandamentos divinos? Os católicos ou
evangélicos têm o direito de receber da Rede Globo uma indenização por dano
moral causado pela exibição da cena em que dois homens se beijam? A telenovela
é uma chancela do reconhecimento da igualdade, uma realidade que virou ficção,
ou se trata apenas de mais um espaço de luta para transformar o Brasil em que
vivemos? São questões complexas, e cada uma pode ser abordada por diversos pontos
de vista: da investigação biológica da origem da sexualidade à discussão
estética da obra audiovisual; da função social da arte à relação cultural única
dos brasileiros com a teledramaturgia, etc.
Talvez seja impossível ser objetivo, neutro, isento ou categórico quanto
a o que é certo ou errado em relação ao direito, onde todas as palavras
expressam subjetividade, uma visão de mundo, uma escolha de lados. Mas é
possível buscar uma interpretação adequada a partir dos termos da legislação
vigente.
Assim, uma análise da relação entre o beijo gay na TV e as religiões não
pode ignorar os seguintes dispositivos da Constituição Federal de 1988: artigos
1º, III e parágrafo único; 3º, I e IV; 5º, V, VI, VIII, X, XLI, XXXV; e 21,
XVI; bem como à Lei nº 7.717/1989, artigos 1º e 20. A partir de tais
dispositivos, a reflexão jurídica sobre os limites das garantias da liberdade
religiosa e da liberdade sexual se ancora no direito fundamental à igualdade,
bem como no objetivo comum a todos os brasileiros de construir uma sociedade
solidária.
O compromisso estatal de promover a solidariedade toma corpo com o
objetivo fundamental de promover o bem de todos, sem preconceitos de qualquer
forma. Nessa linha, no exercício de sua função democrática, cabe ao Poder
Legislativo produzir leis que punam qualquer discriminação contra direitos e
liberdades fundamentais; ao Poder Judiciário, apreciar as ameaças ou lesão a
direitos; e ao Poder Executivo, implementar políticas públicas de igualdade.
Esses papéis não são meras promessas de um mundo futuro ideal. São
deveres dos quais os entes públicos não podem se desviar. E se solidariedade é
eliminar todos os preconceitos para a questão do beijo gay e os limites da
liberdade de crença, algumas respostas podem ser encontradas em termos de
igualdade.
Certamente que dar um beijo na boca da pessoa amada se enquadra como
parte da liberdade sexual de homens e mulheres adultos. Especificamente para os
gays, se são dados tantos beijos entre mocinhos e mocinhas, mocinhos e mocinhos
merecem tratamento em pé de igualdade. Mesmo que eventual discriminação venha
travestida de um viés religioso.
Lembro que todos os credos têm suas diferenças internas. A hermenêutica
jurídica como escola de pensamento tem raiz direta nos questionamentos filosóficos
sobre como interpretar corretamente a Bíblia. Todavia, extrapola a discussão
jurídica querer investigar a história ou as bases doutrinárias para o pecado,
para a proibição da relação homoafetiva ou para o próprio tabu em relação ao
sexo, condenado como prática prazerosa entre pessoas, e valorizado de forma
exclusiva como meio para a procriação. Condutas como as dos deputados citados
no início, portanto, são inconstitucionais, pois efetivamente induzem à
discriminação e ao preconceito, jamais à promoção da solidariedade.
Professar uma religião não confere “licença para odiar”. É garantido que
ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa, salvo se as
invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta. Em outras palavras, a
pessoa que invoca sua crença como razão para descumprir uma obrigação prevista
em lei pode, sim, ser privada de direitos. O respeito à sexualidade alheia é
uma imposição constitucional, a qual deve ser observada inclusive para fins
religiosos.
Nem seria suficiente se o Estado coibisse somente as ações de violência
física (coisa que já não faz). Também as violências verbais são
inconstitucionais. Mesmo antes de uma prática de discriminação, o preconceito
em si também é crime, previsto em lei. Homossexuais, mais que “tolerados”,
“aceitos” e “admitidos”, devem ser respeitados de verdade em sua diferença, em
sua característica de identidade como ser humano. Assim, fere a dignidade de
alguém lhe dizer que sua identidade é uma passagem para o inferno, que o
exercício de sua liberdade sexual é pecado.
Proponho uma analogia. Se uma religião milenar classificasse “ser negro”
como um pecado, você acha que esse aspecto teria amparo na nossa Constituição
Federal e mereceria proteção jurídica como parte da liberdade religiosa? Ora,
se religiões não podem ser racistas, tampouco podem ser homofóbicas. Não em um
país regulado pelo respeito à liberdade, à igualdade e à solidariedade.
Nenhuma fé afasta o dever de respeitar as demais pessoas, inclusive
quanto às opiniões sobre a homossexualidade. A tradição religiosa que mal julgue
a homossexualidade, nesse aspecto, não conta com a proteção jurídica da
liberdade de crença. Afinal, se ter preconceito é crime, respeitar é um dever
legal.
(*)
Paulo Rená da Silva Santarém é Mestre em
Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, integra o grupo
de pesquisa Cultura Digital e Democracia e dirige o Instituto Beta Para
Internet e Democracia. É fundador do Partido Pirata do Brasil e foi gestor do
projeto de elaboração do Marco Civil da Internet no Ministério da Justiça.
Crédito Imagem - www.canstockphoto.com.br
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