Em "Carta
ao Povo de Deus", 152 bispos criticam "incapacidade" de Jair
Bolsonaro
O documento é assinado pela ala
progressista da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
Da: Redação Brasil de Fato
| São Paulo (SP) | 27 de Julho de 2020
Há duas semanas, dois bispos escutados pela reportagem do Brasil de Fato falaram sobre a existência de uma articulação entre os integrantes da ala progressista da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) visando a criação de uma frente para que a entidade tenha “influência” no debate contra o governo de Jair Bolsonaro.
Hoje,
152 bispos, arcebispos e bispos eméritos brasileiros divulgaram um documento
denominado Carta ao Povo de Deus,
no qual fazem duras críticas ao capitão reformado, principalmente diante da
pandemia de covid-19, e ao bolsonarismo. "Analisando o cenário político,
sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas
crises", afirmam no documento.
“Assistimos,
sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou
normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela covid-19 (...) e os conchavos
políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não
se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com
a Tradição e a Doutrina Social da Igreja”, afirmam os integrantes da ala
progressista.
De
acordo com os bispos, essa movimentação não está restrita à CNBB, mas tem
encontrado eco em paróquias e igrejas pelo país, onde padres reclamam de perseguição política, por conta das críticas
feitas ao governo de Bolsonaro nas missas ou em conversas com fiéis.
O texto é
assinado, entre outros, pelo arcebispo emérito de São Paulo, dom Claudio
Hummes, pelo bispo emérito de Blumenau, dom Angélico Sandalo Bernardino, pelo
bispo de São Gabriel da Cachoeira (AM), dom Edson Taschetto Damian, pelo
arcebispo de Belém (PA), dom Alberto Taveira Corrêa, pelo bispo prelado emérito
do Xingu (PA), dom Erwin Krautler, pelo bispo auxiliar de Belo Horizonte (MG),
dom Joaquim Giovani Mol, e pelo arcebispo de Manaus (AM) e ex-secretário-geral
da CNBB dom Leonardi Ulrich.
Leia a "Carta ao Povo de Deus" na íntegra:
"Somos bispos da Igreja
Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco
e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na
defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de
Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao
Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam
ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão própria
da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o
Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de
que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A
nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos
gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados [...], uma série de
ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o
Reino de Deus [...] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí
a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos
posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses
político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza.
Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida
em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna
e solidária, como uma civilização do amor.
O Brasil atravessa um dos
períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita”
que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a
combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da
economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República,
provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da
sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.
Este cenário de perigosos
impasses, que colocam nosso país à prova, exige de suas instituições, líderes e
organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados.
Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à
superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos
mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta
e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.
É dever de quem se coloca na
defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As
escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a
complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia
e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro.
Mazelas que se abatem também
sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de
madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um
desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não
podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas
à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da
Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
Todos, pessoas e instituições,
seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador.
Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam
naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela covid-19, tratando-o
como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se
avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos
meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer
preço.
Esse discurso não se baseia nos
princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a
Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham
vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Analisando o cenário político,
sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo
Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária,
tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas
que precarizaram ainda mais a vida do povo.
É verdade que o Brasil
necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos
resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o
uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e,
por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma
economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos
grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.
O sistema do atual governo não
coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente
dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada
no mercado e no lucro a qualquer preço.
Convivemos, assim, com a
incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações,
agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e
municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e
utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a
democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo
pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações
de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores
radicais.
O desprezo pela educação,
cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível
nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias
obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros
erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário
da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de
importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e
pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações
diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um
dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem,
sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão
com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia;
na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo
coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços
para salvar vidas.
No plano econômico, o ministro
da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos
empregos no país, privilegiando apenas grandes grupos econômicos,
concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão
que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de
brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as
políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel.
O Presidente da República, há
poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à covid-19, aprovado no
legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre
outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de
leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de
oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades
tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional,
13/07/2020).
Até a religião é utilizada para
manipular sentimentos e crenças, provocar divisões, difundir o ódio, criar
tensões entre igrejas e seus líderes. Ressalte-se o quanto é perniciosa toda
associação entre religião e poder no Estado laico, especialmente a associação
entre grupos religiosos fundamentalistas e a manutenção do poder autoritário.
Como não ficarmos indignados
diante do uso do nome de Deus e de sua Santa Palavra, misturados a falas e
posturas preconceituosas, que incitam ao ódio, ao invés de pregar o amor, para
legitimar práticas que não condizem com o Reino de Deus e sua justiça?
O momento é de unidade no
respeito à pluralidade! Por isso, propomos um amplo diálogo nacional que
envolva humanistas, os comprometidos com a democracia, movimentos sociais,
homens e mulheres de boa vontade, para que seja restabelecido o respeito à
Constituição Federal e ao Estado Democrático de Direito, com ética na política,
com transparência das informações e dos gastos públicos, com uma economia que
vise ao bem comum, com justiça socioambiental, com “terra, teto e trabalho”,
com alegria e proteção da família, com educação e saúde integrais e de
qualidade para todos.
Estamos comprometidos com o
recente “Pacto pela vida e pelo Brasil”, da CNBB e entidades da sociedade civil
brasileira, e em sintonia com o Papa Francisco, que convoca a humanidade para
pensar um novo “Pacto Educativo Global” e a nova “Economia de Francisco e
Clara”, bem como, unimo-nos aos movimentos eclesiais e populares que buscam
novas e urgentes alternativas para o Brasil.
Neste tempo da pandemia que nos
obriga ao distanciamento social e nos ensina um “novo normal”, estamos
redescobrindo nossas casas e famílias como nossa Igreja doméstica, um espaço do
encontro com Deus e com os irmãos e irmãs. É sobretudo nesse ambiente que deve
brilhar a luz do Evangelho que nos faz compreender que este tempo não é para a
indiferença, para egoísmos, para divisões nem para o esquecimento (cf. Papa
Francisco, Mensagem Urbi et Orbi, 12/4/20).
Despertemo-nos, portanto, do
sono que nos imobiliza e nos faz meros espectadores da realidade de milhares de
mortes e da violência que nos assolam. Com o apóstolo São Paulo, alertamos que
“a noite vai avançada e o dia se aproxima; rejeitemos as obras das trevas e
vistamos a armadura da luz” (Rm 13,12).
O Senhor vos abençoe e vos guarde.
Ele vos mostre a sua face e se compadeça de vós.
O Senhor volte para vós o seu olhar e vos dê a sua paz! (Nm 6,24-26).
Edição: Leandro Melito
Fonte da Informação:
https://www.brasildefato.com.br/2020/07/27/em-carta-ao-povo-de-deus-152-bispos-criticam-incapacidade-de-jair-bolsonaro