Vanise Rezende - clique para ver seu perfil

AS SOMBRAS POLÍTICAS DO BRASIL

27 março, 2016

Por motivo de férias, e também de trabalho, estive fora do país por mais de um mês. Agora, de volta, me deparo com uma onda de opiniões e – em alguns casos – desorientações, diante das bombásticas informações a cada momento derramadas pela mídia nacional e local. 

O “parece que”, “alguém disse”, “tudo indica” transforma-se em informação factual, com explicações coloridas por densos deslizes do respeito à veracidade comprovada. Assim foi e assim tem sido o comportamento da grande mídia nacional, sempre à mercê de interesses ora políticos, ora ideológicos, e por vezes exclusivamente privados.

Saí em busca de algumas opiniões – entre muitas – que brotassem de um olhar cuidadoso de quem preza pela justiça e pelo bem comum. E encontrei, num artigo publicado por Leonardo Boff, a clareza de uma visão aberta e carregada da grandeza humana, transparente e densa, de quem ama o nosso país e o seu povo, e está habituado a considerar os fatos cimentado nas razões da nossa história, e sempre a partir dos empobrecidos, sem se abater na desesperança ou na banalidade de quem vê apenas o próprio umbigo. No texto, os grifos são nossos.
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As sombras do Brasil

Leonardo Boff (*)

Em momentos de crise, assomam quatro sombras que
estigmatizam nossa história, cujos efeitos perduram até hoje.

A primeira sombra é o nosso passado colonial.

Todo processo colonialista é violento. Implica invadir terras, submeter os povos, obrigá-los a falar a língua do invasor, assumir as formas políticas do outro e submeter-se totalmente a ele. A consequência, no inconsciente coletivo de  povo dominado: sempre baixar a cabeça, levado a pensar que somente o que é estrangeiro é bom.


A segunda sombra foi o genocídio indígena. 

Eram mais de 4 milhões. Os massacres de Mem de Sá em 31 de maio de 1580, que liquidou com os Tupiniquim da Capitania de Ilhéus. 

Pior ainda: a guerra declarada oficialmente por Dom João VI - em 13 de maio de 1808 - que dizimou os Botocudos (Krenak), no vale do Rio Doce, manchará para sempre a memória nacional. 

Consequência: temos dificuldade de conviver com o diferente, entendendo-o como desigual. O índio não é ainda considerado plenamente “gente”, por isso suas terras são tomados, muitos são assassinados e para não morrerem, se suicidam. Há uma tradição de intolerância e negação do outro.















A terceira sombra, a mais nefasta de todas, foi a  escravidão. Entre 4-5 milhões foram trazidos da África como “peças” a serem negociadas no mercado para servirem nos engenhos ou nas cidades como escravos. 

Negamos-lhes humanidade e seus lamentos sob a chibata chegam ainda hoje ao céu. Criou-se a instituição da Casa Grande e da Senzala. Gilberto Freyre deixou claro que não se trata apenas de uma formação social patriarcal, mas de uma estrutura mental que penetrou nos comportamentos das classes senhoriais e, depois, dominantes. 

Consequência: não precisamos respeitar o outro; ele está aí para nos servir. Se lhe pagamos salario é caridade e não direito. Predominou o autoritarismo; o privilégio substitui o direito e criou-se um estado para servir aos interesses dos poderosos e não ao bem de todos e uma complicada burocracia que afasta o povo.

Raymundo Faoro ("Os donos do poder") e o historiador e acadêmico José Honório Rodrigues ("Conciliação e reforma no Brasil") nos têm narrado a violência com que o povo foi tratado para estabelecer o estado nacional, fruto da conciliação entre as classes opulentas sempre com a exclusão intencionada do povo. Assim, surgiu uma nação profundamente dividida entre poucos ricos e grandes maiorias pobres, um dos países mais desiguais do mundo, o que significa um país violento e cheio de injustiças sociais.

Uma sociedade montada sobre a injustiça social nunca criará uma coesão interna que lhe permitirá um salto rumo a formas mais civilizadas de convivência. 


Aqui imperou sempre um capitalismo selvagem que nunca conseguiu ser civilizado. Mas, depois de muitas dificuldades e derrotas, conseguiu-se um avanço: a irrupção de todo tipo de movimentos sociais que se articularam entre si. Nasceu uma força social poderosa que desembocou numa força político-partidária. O Partido dos Trabalhadores e outros afins, nasceram deste esforço titânico, sempre vigiados, satanizados, perseguidos e alguns presos e mortos.

A coligação de partidos hegemonizados pelo PT conseguiu chegar ao poder central. Fez-se o que nunca foi pensado e feito antes: conferir centralidade ao pobre e ao marginalizado. Em função deles se organizaram, como cunhas no sistema dominante, políticas sociais que permitiram a milhões saírem da miséria e terem os benefícios mínimos da cidadania e da dignidade.


Mas, uma quarta sombra obnubila uma realidade que parecia tão promissora: a corrupção. Corrupção sempre houve entre nós em todas as esferas. Negá-lo seria hipocrisia. Basta lembrar os discursos contundentes e memoráveis de Ruy Barbosa no Parlamento. Setores importantes do PT deixaram-se morder pela mosca azul do poder e se corromperam. Isso jamais poderia ter acontecido, dado os propósitos iniciais do partido. Devem ser julgados e punidos.

A justiça focou-se quase só neles e mostrou-se muitas vezes parcial e com clara vontade persecutória. Os vazamentos ilegais, permitidos pelo juiz Sérgio Moro, forneceram munição à imprensa oposicionista e aos grupos que sempre dominaram a cena política e que agora querem voltar ao poder com um projeto velhista, neoliberal e insensível à injustiça social. Estes conseguiram mobilizar multidões, conclamando o impedimento da Presidenta Dilma, mesmo sem suficiente fundamento legal como afirmam notáveis juristas. Mas o PT respondeu à altura.

As quatro sombras recobrem a nossa realidade social e dificultam uma síntese integradora. Elas pesam enormemente e vêm à tona em tempos de crise como agora, manifestando-se como ódio, raiva, intolerância e violência simbólica e real contra opositores. Temos que integrar essa sombra, como diria C.G.Jung, para que a dimensão de luz possa predominar e liberar nosso caminho de obstáculos.

Nunca fui filiado ao PT. Mas apesar de seus erros, a causa que defende será sempre válida: fazer uma política integradora dos excluídos e humanizar nossas relações sociais para tornar a nossa sociedade menos malvada.

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(*) Artigo publicado no site leonardoboff.wordpress.com em 27/03/2016.

Crédito das imagens:


1. Primeira Missa no Brasil - Tela de Portinari/1948 -www.museus.gov.br  
                  
2. Pintura do Massacre de povos indígenas do Brasil -  www.nodeoito.com/povos indígenas/massacre

3. Comemoração do dia da raça negra - foto divulgação.

4.Movimento Sem Teto faz manifestação defronte à Caixa, em 5/10/2015 - www.ultimosegundo.ig.com.br

5. Corrupção - imagem deste blog - www.canstockphoto.com.br

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LEITURAS DE VIAGEM

03 março, 2016

Quando a viagem é longa, a escolha de boas leituras, ou a sorte de ter ao lado alguém que  estabeleça  uma conversa que torne a viagem  agradável é coisa   fundamental. 

Num longo percurso até mesmo os bons de conversa e de leitura também aproveitam o tempo para atualizar seus e-mails, ou escrever anotações de viagem.

Enquanto atravessava o oceano Atlântico da cidade do Recife à Lisboa, tive uma surpresa inesperada: na revista da companhia aérea encontrei um excelente artigo assinado por Gonçalo M. Tavares, intitulado: "Zurique e as rugas, Dublin e o respeito pela leitura"


Faço aqui uma síntese do que apreendi:

1. Em Zurique existe um contador de rugas (chamam-lhe o contabilista de rugas ou o contabilista facial dos dias). A cidade atribuiu um prêmio  que nada tem a ver com a idade cronológica. Ganha quem tiver o maior número de rugas. Valoriza-se isto: a paciência. Uma paciência facial.

2. Em Dublin, comemora-se o teatro de uma forma efusiva, no meio da rua, com os passantes da cidade. Seu povo tem adoração pelo livro, e respeito pelo ato da leitura. No entanto, por vezes o que acontece, em tempos aparentemente comuns, parece pertencer a uma peça teatral ou a um sonho.

Consideremos um fato trazido pelo jornalista da revista: no centro de Dublin uma multidão avança em silêncio. Estão ali pessoas bem diferentes, mas vemos que nas suas costas há algo em comum. Todos têm um papel colado com fita colante. E' uma brincadeira? Alguém lhes colou algo nas costas sem eles o notarem? Não sabemos. Mas sim, agora está claro: são páginas de uma história, de um romance policial. Observando com mais atenção vemos que as páginas estão numeradas, no entanto há algo que parece tornar difícil a possibilidade de ler este livro. Cada homem e cada mulher da multidão tem uma página colada às costas, mas a página 4 pode estar ao lado, por assim dizer, da página 76.

De fato, a multidão é, por definição, um agregado desorganizado de pessoas e isso ali é evidente. Porém, nas ruas de Dublin, subitamente, alguém se afirma como leitor. Eu sou leitor! E levanta o braço. Eu quero ler o livro que está nas vossas costas. Quero saber qual o crime e quem o cometeu! E assim, sem se saber bem porque, e qual a autoridade que o justifica - se não essa, a de ser leitor, a de querer ler aquele livro - subitamente, então, aquele homem, aquele leitor, começa a impor ordem à multidão; ou melhor, a por a multidão na ordem sequencial. O leitor vai passando pelas costas das pessoas e vai dizendo: tu para aqui, tu para ali. O leitor vai então pondo em ordem as páginas do livro que as pessoas levam nas costas. 

E,  em cerca de vinte minutos, o trabalho está feito. O homem com a página 1 nas costas está ao lado do homem com a página 2 nas costas que, por sua vez, está ao lado esquerdo da mulher com a página 3 nas costas. E assim sucessivamente. 

O leitor, ou podemos chamar-lhe o pequeno ditador? Pois sim, o leitor pediu há pouco, exigiu! a imobilidade daquelas páginas. Ele não consegue ler em andamento, explicou. E assim estamos. Há uma multidão de homens e mulheres livres que ali estão, parados, imóveis, enquanto o leitor vai passando,  bem lentamente, pelas suas costas. Chama-se a isto: respeito pelo livro, respeito pelo leitor, respeito reverencial pela leitura. 

As páginas já lidas vão sendo libertadas. E é essa a sensação, de fato, a de libertação - como um leitor que rasga a página que acabou de ler e a atira para o ar num dia de grande vento. Pode ir - diz o leitor para a página 9. Já te li. E a página 9 afasta-se do grupo; dá uns passos, primeiro lentos, mas depois aumenta o ritmo. Quase salta. Pode ir para casa. Está contente.

O leitor, esse, vai avançando; lendo atenta e lentamente as costas de cada um. O crime já foi cometido (na página 8). Falta saber quem é o criminoso e isso só se saberá, como é de bom costume nas novelas policiais, na última linha. A última página do livro, essa, então, está lá atrás, bem lá atrás, e já puxou de uma cadeira. Um pequeno protesto manso, tranquilo. Não se vai embora, mas mexe-se ligeiramente - o que é já quase, nas condições gerais, um ato de insubordinação.

Em menos de duas horas, o leitor não estará por ali, nas suas redondezas, nas suas costas. Ele pode, então, descansar. E' a página decisiva, não fará a desfeita de, por impaciência, estragar o ato de leitura. Mas esperará sentado pelo leitor. Tem direito a isso, mesmo em Dublin.

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Créditos imagens:  www.viajeibonito.com.br/wp-content/uploads/2015


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