Vanise Rezende - clique para ver seu perfil

A OUTRA MÃE DAS MINHAS FILHAS

15 fevereiro, 2015


Sempre que nos encontrávamos ela me fazia um sorriso largo e amigo e me perguntava, amável: 

– Como vão “nossas” filhas? 

Sabia que ela as amava como eu, e as conhecia por suas diferentes características e suas preferências culinárias. Desde cedo percebemos a sua forma de cativar, o seu jeito afetuoso e discreto quando chegou para trabalhar em minha casa. De mim ela recebia orientações de como manter os horários das refeições das crianças e dos programas infantis de televisão. Era ela quem promovia bem-estar e alegria quando elas voltavam da escola, e ainda as acompanhava às aulas de balé e de natação. 

Conhecemos as experiências que vivera no meio rural pernambucano. Ainda criança, já cuidava da roça: todas as manhãs, colhia o milho para o cuscuz da família e ordenhava o leite quentinho das cabras, pois eram trabalhadores rurais, mas sequer puderam ter uma vaca. 


Era um membro constituinte da nossa família: iniciara a trabalhar em nossa casa, com seu jeito afetuoso e discreto, logo que a minha primeira filha fizera um ano, o que me permitiu manter um trabalho social intenso, nas atividades do movimento popular dos anos setenta, sob a orientação de Dom Hélder Câmara e, depois, de Dom José Maria Pires, como secretária da presidência da CNBB NE-II. Assim, sua presença nos foi indispensável para os cuidados cotidianos das “nossas filhas”.

Recordo quando a conheci: o nosso foi um encontro não programado, mas definitivo. Entre várias mulheres presentes - na instituição em que ela se inscrevera para o seu primeiro emprego – notei sua expressão luminosa e contida, como uma flor a proteger-se em suas pétalas fechadas para esconder a sua firmeza, a sua coragem e a grandeza de pessoa que era. Ao observar o seu rosto cheio, o seu olhar definido e vivaz e aquela sua expressão carismática que difundia segurança e tranquilidade – por trás de uma aparente timidez – logo compreendi que ela era a melhor escolha que eu tinha a fazer. Assim, já no dia seguinte cuidamos do registro do seu contrato de trabalho.


A partir do nascimento da minha segunda filha, foi necessário contratar uma babá para ajudá-la nas muitas tarefas. Mas, as crianças continuavam a preferir estar com ela, mesmo que tivessem que ficar a brincar na copa enquanto ela preparava as refeições da família. 
Mesmo quando se passaram dez, vinte, trinta anos de vida em comum, ela jamais assumiu outra atitude senão a de uma colaboradora efetiva, empenhada, amorosa e eficaz. Chegou até a vir morar conosco por um período, após a separação do seu primeiro marido. 



Insistiu em permanecer trabalhando conosco mesmo depois de obter a sua merecida aposentadoria. De ambos os lados precisávamos de algum tempo para ensaiar o momento do seu afastamento. Iniciamos estipulando o seu trabalho somente em meio expediente e, mais tarde, em dias alternados, até chegar o momento da sua saída. Era um passo difícil para todos nós: certos dias, ao chegar do meu trabalho, encontrava uma das meninas, agora crescidas, a ajudá-la na limpeza por baixo dos armários da cozinha ou acima das prateleiras de livros. Também ela estava muito ligada à convivência com esse outro expressivo núcleo da sua família.  


A essa altura, com as suas próprias economias, havia conseguido comprar e, mais tarde, reformar a sua própria casa que, para sua alegria, tinha um pequeno jardim de frente e um bom quintal. Depois que nos deixou, nos víamos vez por outra, nas visitas recíprocas que fazíamos - ela já tinha assento à nossa mesa como uma querida amiga, com quem ficávamos a jogar conversa fora. Convivemos como duas amigas que se reconheciam e se respeitavam. Era uma presença certa em todas as nossas comemorações familiares, não esquecia os aniversários, e preparava um lauto almoço quando íamos comemorar o seu. Exultou de alegria com o nascimento do meu neto, e o visitava frequentemente.


Quando ainda trabalhava teve o seguro saúde privado, que continuamos a pagar também depois que nos deixou. Vivenciamos com ela a sua luta vitoriosa contra um câncer que conseguiu superar com coragem e tenacidade. Nos nossos encontros, depois de por em dia nossas notícias pessoais, era prazeroso voltar aos tempos idos e ouvir dela as histórias das meninas, das quais eu já não lembrava... Mas ela as trazia no coração.

Nesses dias, nos surpreendeu com a sua partida definitiva, do jeito silencioso, sem incomodar ninguém, como sempre fez. Despetalou-se no outono da vida, e nos deixou uma intensa sensação de vazio e a doce lembrança de quanto ela foi importante para nós, para seus filhos e netos e, de um modo especial para sua única filha, que sempre a acompanhou com imenso carinho. Deixou-nos a sua lição de vida: foi uma mulher autônima, sensata e livre, cheia de encantos para os que a amaram, e carregada de afeto e de cuidados com quem, na família, precisasse do seu apoio. 

Ontem, caminhando sobre uma das pontes que cortam o rio Capibaribe, o correr das águas me lembraram uma citação que li recentemente, de Heráclito de Éfeso: "Não cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que nele correm". 

As águas me disseram que Lourdes foi o dom que me foi dado, sem o qual eu não teria podido ser aquela que fui, e minhas filhas não teriam tido uma infância tão engendrada de atenção e afeto, na ausência necessária de seus pais.

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