Dando continuidade ao nosso intento de construção e de afirmação do pensamento democrático brasileiro, reproduzimos, aqui, um artigo que lembra uma figura expoente no âmbito da educação inclusiva e libertadora da contemporaneidade. A influência de Paulo Freire ainda é tão expressiva e incomodativa, que nesses tempos sombrios e autoritários volta a sofrer perseguição de pessoas ignorantes e inexpressivas no âmbito cultural e político do país. Segue o artigo.
O DEMÔNIO USA BARBA
Por: Nirlando Beirão
Carta Capital 20/02/19
NO BRASIL DE 2019, O GRANDE VILÃO – DEPOIS DE
LULA –
É PAULO FREIRE
O
educador e essa perniciosa ideia de que quem estuda deve aprender a pensar por
conta própria
A educação pode reprimir ou
libertar. Pode incentivar a busca da verdade ou impor um acervo de dogmas. Pode
ensinar-lhe o respeito a opiniões diferentes da sua ou transformar você numa
criatura autoritária e insensível. É, a educação inclui o risco de forjar
cidadãos e de difundir o vírus da democracia. Por isso é que no Brasil 2019 o
grande vilão, depois de Lula, é Paulo Freire. A barbárie tratou de retirar o
educador cosmopolita e consagrado de seu nicho pedagógico para expô-lo à
execração pública como subliminar porta-voz do comunismo ateu – agora, enfim,
como prometem as autoridades, em vias de extinção em terras de Pindorama.
Paulo
Freire, morto em 1997, assombra bolsotários instrumentalizados pelos charlatães evangélicos (*) e pelas pregações obscenas do astrólogo Olavo de
Carvalho. A ironia é que, para Paulo Freire, educar é encaminhar o aluno em
direção às múltiplas escolhas do livre-arbítrio.
O pastor, o padre, o Sagrado
Testamento que fiquem longe das salas de aula. Um dos livros de Paulo Freire é
intitulado Educação como Prática da Liberdade (Editora Paz e
Terra, 1967). Mas o tal comunismo supostamente professado por ele não é, como
dizem os inimigos, a supressão da liberdade? Seria este mais um despiste dos
vermelhos? Como formar disciplinados servidores do Partido incentivando neles o
senso crítico e o apreço à divergência? Chamem Olavo de Carvalho para decifrar
o enigma.
Era cristão, foi preso e exilado porque propunha
a liberdade em primeiro lugar
“Vou
entrar com um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro”,
prometeu o candidato da extrema-direita na campanha eleitoral. Ele jamais leu
uma linha que seja escrita pelo educador, tampouco o fizeram os que se apressam
em imitar o incendiário, atiçando contra Paulo Freire a fogueira do auto de fé.
Para eles, a Pedagogia do Oprimido – título da obra mais conhecida do professor
pernambucano, nascido em 1921 – está no mesmo escaninho dos malditos
imaginários, como o marxismo cultural, a evolução das espécies e Jean Wyllys.
O
próprio Paulo Freire já vaticinava, em 1968, em seu exílio no Chile, que não
seria fácil o embate contra os trogloditas aliterados – tais como os que
assumiriam o poder no Brasil, meio século depois.
“Nunca
pensei ingenuamente”, escreveu, “que a defesa e a prática de uma educação que
respeitasse no homem a sua ontológica vocação de ser sujeito pudesse ser aceita
por aquelas forças cujo interesse básico estava na alienação do homem e da
sociedade brasileira. Na manutenção desta alienação. Daí que coerentemente se
arregimentassem – usando todas as armas contra qualquer tentativa de
aclaramento das consciências, vista sempre como séria ameaça a seus
privilégios.
É
bem verdade que, ao fazerem isso, ontem, hoje e amanhã, ali ou em qualquer
parte, essas forças distorcem sempre a realidade e insistem em aparecer como
defensoras do Homem, de sua dignidade, de sua liberdade, apontando os esforços
de verdadeira libertação como ‘perigosa subversão’, como ‘massificação’, como
‘lavagem cerebral’ – tudo isso produto de demônios, inimigos do homem e da
civilização ocidental cristã.
Na
verdade, elas é que massificam, na medida em que domesticam e,
endemoniadamente, se ‘apoderam’ das camadas mais ingênuas da sociedade. Na
medida em que deixam em cada homem a sombra da opressão que o esmaga. Expulsar
esta sombra pela conscientização é uma das fundamentais tarefas de uma educação
realmente liberadora.”
Realidade. Os milicianos da ignorância, hoje instalados no poder, denunciam que por trás desta cena está o comunismo. (Foto: FSP).
O pensamento crítico, em que a dúvida seja sempre mais ampla do que
a certeza, é a antítese de todo e qualquer sectarismo. Paulo Freire era, sim,
um homem de esquerda, na medida em que se ofendia com o capitalismo bárbaro e
sonhava com um Estado de Bem-Estar Social próximo dos países avançados da
Europa setentrional. Mas a paranoia persistente dos que confundem isso com o
comunismo, que se agudizou durante a ditadura civil-militar, levou-o a um longo
exílio, depois de ter sido preso pelos militares. Pode experimentar seus
ensinamentos no Chile de Allende, na África Negra em momento fecundo de
descolonização, e em dois países de “inclinação bolchevique”, a Suíça e os
Estados Unidos. Só em 1988 é que ele teve a oportunidade de botar a teoria em
prática como secretário da Educação da prefeita Luiza Erundina, em São Paulo.
“Paulo Freire era um cristão que tinha um profundo
compromisso ético com a defesa da vida do ser humano em sua plenitude”, defende
seu biógrafo, Sérgio Haddad. “Portanto, era contrário a qualquer regime que
violava direitos fundamentais do ser humano, seja ele de qualquer natureza. Nos
seus últimos escritos apontava sobre a crueldade de um capitalismo que desistia
de melhorar a vida das pessoas para se transformar apenas em uma competição
desregulamentada por mais lucro, assim como foi crítico dos regimes socialistas
que haviam desistido da liberdade e da democracia. Todos, para ele, regimes
violadores dos direitos humanos.”
A brigada da "Escola sem Partido" promete botar fogo em Paulo Freire, mas a resistência já começou (Foto: Lula Marques)
De Mordaça. Se fosse vivo, Freire estaria na
trincheira oposta à do atual bloco do poder. Ter virado o bode expiatório da
turma do mandamento e da tutela, disposta a patrulhar o comportamento dos
professores em sala de aula em nome de uma determinada “Escola sem Partido”,
não é exatamente o tratamento merecido por aquele que é uma referência capital,
em todo o mundo, para trabalhos acadêmicos na área de humanidades.
Pedagogia do Oprimido é a terceira obra mais citada, segundo um
levantamento feito no Google Scholar, ferramenta de pesquisa dedicada à
literatura acadêmica. O professor associado da London School of Economics, Elliott Green, analisou as menções nos
trabalhos disponíveis na ferramenta, criada em 2004. Segundo ela, Freire é
citado 72.359 vezes, atrás do filósofo americano Thomas Kuhn (81.311) e do
sociólogo, também americano, Everett Rogers (72.780). Bate pensadores radicais
como Michel Foucault (60.700) e Karl Marx (40.237).
A pesquisa desconhece Olavo de Carvalho, o xamã do fascismo tropical. O Google Scholar, provavelmente, deve ser
outra das muitas fachadas enganosas do tal “marxismo cultural”.
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Fonte
do texto: https://www.cartacapital.com.br/educacao/no-brasil-de-2019-o-grande-vilao-depois-de-lula-e-paulo-freire/
Notas deste blog :
(*) Tomei a liberdade de editar a apresentação do artigo de Nirlando Beirão, na Carta Capital, utilizando negritos e trazendo novas imagens. Quanto ao comentário do autor sobre "bolsotários instrumentalizados pelos charlatães evangélicos", não vejo oportuno a generalização da questão, por entender que há comunidades e pessoas de Igrejas "evangélicas" que não se deixam instrumentalizar, e se mantêm fiéis aos princípios e valores revolucionários de Jesus Cristo.
Gostaria de anotar ainda que, em 14/12/2017, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado rejeitou uma sugestão legislativa (SUG 47/2017) para retirar de Paulo Freire o título de “Patrono da Educação Brasileira”. Os senadores consideraram a proposta fruto de ignorância sobre o legado do educador. A Lei 12.612, aprovada pelo Congresso e sancionada em 2012, declarou Paulo Freire “Patrono da Educação Brasileira”, em reconhecimento à vida e obra do educador. No site do Senado é lembrado que "Freire esteve à frente de políticas como o Programa Nacional de Alfabetização e a Educação de Jovens e Adultos e foi consultor de projetos internacionais de educação na África pós-colonial".
Crédito das Imagens:
1. Paulo Freire - www.escoladainteligencia.com.br
2. Paulo Freire - www.paulofreire.marceloauler.com.br
3. Realidade das escolas públicas no Brasil - foto da FSP.
4. Mordaça - Foto de Lula Marques
5. Paulo Freire é a segunda figura, da esq. para a dir., nesta escultura de 1976 de Nye Engström. A obra fica em Estocolmo, na Suécia. Foto: BBC NEWS BRASIL/bergnt oberger/ CC BY-SA 3.0/ PAULO FREIRE FINLAND
Nota: As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores, conforme créditos acima. Se alguém possui direitos de uma delas e deseja removê-la deste espaço, por favor envie-nos um comentário.