Vanise Rezende - clique para ver seu perfil

UBUNTU - CULTIVANDO A TERRA EM COOPERAÇÃO

28 maio, 2021

Após vários anos escrevendo e reproduzindo  crônicas, artigos e entrevistas, neste espaço, o momento atual me sugere dar maior prioridade à publicação de experiências exitosas de cooperação, solidariedade e Justiça Social. As informações sobre o vaivém da política atual e a situação da pandemia, no Brasil e no mundo, têm sido divulgadas com seriedade por vários canais como, por exemplo, o de Eduardo Moreira, Opera Mundi,  IHU-Unisinos, TV 247, CIMI, e os jornais e revistas: El País Brasil, Carta Capital, Carta Maior e outras fontes alternativas confiáveis. Volto à ideia de Maturana, de quem falamos recentemente: “A humanidade pode reconstruir o mundo, mas a evolução só vem a partir do Cuidado”. 

Minha intensão é sair em busca de experiências inovadoras, notícias alentadoras para nos dar força a seguir em frente, que eu chamaria de Histórias Exemplares. A de hoje, nos chega de uma comunidade de trabalhadores da Agricultura Familiar do Município de Queimados no Polo Borborema,  situado na mesorregião do Agreste Paraibano e na Microrregião do Brejo Paraibano, Nordeste do Brasil. Conheceremos o impressionante trabalho do cultivo da terra e de um banco de sementes, para enfrentar os transgênicos. Um exemplo de trabalho em cooperação, com o espírito aberto para o outro.                      Para ajustar a longa entrevista a este espaço, tivemos que cortar alguns trechos, embora  mantendo a informação essencial.

              “Nenhum de nós é tão bom quanto

                         todos nós juntos”

Entrevistadores: 

Helena Rodrigues Lopes e  Gabriel Bianconi Fernandes,

Há poucos dias a AS-PTA -  Agricultura Familiar e Agroecologia, publicou uma entrevista realizada por  com Mateus Manassés Bezerra Nascimento, jovem agricultor de Queimadas,  integrante do Polo da Borborema, situado na mesorregião do Agreste Paraibano e na Microrregião do Brejo Paraibano. Durante a entrevista, Mateus falou sobre a mobilização no município e no território, em torno da utilização e da defesa das sementes crioulas, e sobre as formas de mobilização e de engajamento da juventude. Segue a entrevista.

Como acontece o trabalho de resgate, conservação e proteção das sementes crioulas na sua comunidade?

Na minha comunidade do sítio Soares, temos um banco de sementes criado em 2016. Eu tinha 18 anos, e fui eleito presidente do banco. Tivemos apoio da AS-PTA para equipar o banco com lona, estantes, peneiras e bombonas para guardar as sementes. Para guardar as sementes, ofereci a casa de barro onde moraram meus avós. A reforma e construção da casa foi feita com apoio da comunidade, uns dando materiais, outros ajudando na obra. Começamos com 15 sócios. Eu tinha receio de não saber se ia dar certo. Todos pegaram sementes, multiplicaram e devolveram. No segundo ano, conseguimos duplicar o quadro de sócios. Para celebrar, fizemos a festa da colheita com a comunidade. Cada um doou um pouco de alimentos e fizemos um jantar extraordinário. Teve banda de forró, as pessoas comeram, dançaram e curtiram mesmo. Na ocasião fizemos uma discussão sobre sementes crioulas. As pessoas sabiam o que era, mas não com esse nome. Todos tinham em casa essas sementes que vieram dos pais e dos avós. Assim o banco foi ficando conhecido.

Como se dá a mobilização quanto à ameaça dos transgênicos?

Nas campanhas sobre sementes, como, por exemplo a “Não Planto Transgênicos para não Apagar Minha História”, a gente explica para os agricultores o que é a transgenia. Uma coisa é explicar a questão para uma pessoa que teve acesso aos estudos. Outra é explicar para muitos agricultores que não tiveram a oportunidade da instrução, e gerar uma conscientização da importância de se plantar o milho livre de transgênico. O desafio é grande, mas estamos conseguindo, vamos explicando da forma mais didática possível.

Por que é importante que as sementes crioulas não fique só no roçado da família, mas seja uma opção coletiva da comunidade?

Um desafio grande que enfrentamos aqui é que as áreas dos agricultores são muito pequenas. Então, se um plantar livre de transgênico e o vizinho plantar contaminado, aí vai tudo por água abaixo. Aproveitamos um ano que boa parte das pessoas não tinha semente de milho por conta da seca. Essa foi a oportunidade para entrar com milho livre de transgênico. O Banco Comunitário tinha semente e fez o empréstimo para um grupo de pessoas. Elas plantaram e lucraram muito, deu boa produção. Além da semente, lucraram com a palha para os animais. Isso conquistou as pessoas. O segundo passo foi dizer que esse era o jabatão vermelho, um milho livre de transgênico. É um milho muito pesado. Com menos de quatro latas já dá um saco de 60 kg. Ainda não podemos dizer que 100% da comunidade é livre de transgênicos, pois tem grandes proprietários de terra na região e com esses é mais difícil o diálogo.

Como as famílias aumentam a diversidade cultivada?

Tem muitas sementes que as famílias não veem mais, e acham que estão perdidas, mas nas Festas Estaduais das Sementes da Paixão, organizadas pela ASA Paraíba, é possível recuperar. Na última festa, por exemplo, o pessoal voltou com sementes do jerimum pururu. (...) Outra semente resgatada foi a fava moita. Ela é como o feijão preto. Com as trocas de sementes recuperamos também o milho jabatão amarelo.

Como você avalia as políticas públicas de sementes?

Estamos numa gravação em massa de vídeos pra fazer o recado chegar no Governo. Se a gente ficar calado, é como dizer que a gente gosta das políticas atuais. Os agricultores estão rejeitando a semente do governo, que vem de outra região e é tratada com agrotóxicos. Não se trata de ser contra a política pública. A política de distribuir de sementes é fantástica, mas desde que ela compre as sementes dos agricultores. Nós agricultores também não produzimos sementes? Então compre de nós pra distribuir para outros agricultores pequenos, como nós, e dá também pra esse povo a oportunidade de plantar uma semente de qualidade. Somos capazes de vender semente de qualidade para outros agricultores. Por que, então, comprar outra semente? Nesse governo atual eu não tenho a menor esperança. Ali não tem nenhuma boa vontade, nenhuma esperança de melhoria, especialmente que seja voltada para o Semiárido. Nos governos do PT e, em especial os do Lula, a gente teve um impulso muito forte para a agricultura. Quando você tem um governo que nega até a construção de cisternas para captação de água de chuva, aí você vê a desvalorização do governo para com nós agricultores.

Como construir políticas de Agroecologia nos municípios?

O município de Queimadas hoje tem uma visão diferenciada. Os pequenos agricultores já têm o apoio da prefeitura para preparar a terra. Temos projeto de palma forrageira e outro de melhoramento dos rebanhos. Então, eu vejo uma transformação no poder público municipal. Por mais que seja lenta e às vezes burocrática e não chegue a todos os agricultores, eu vejo uma transformação. O Conselho Municipal de Desenvolvimento Rural Sustentável se reúne todos os meses. Tem um representante da Câmara Municipal no Conselho. Três anos atrás, conseguimos que parte do dinheiro que vem para o município fosse usado para comprar sementes dos agricultores do município ou do território para reforçar os Bancos de Sementes ou para ajudar a criar outros. Mas não vimos essas sementes, nem sabemos onde elas foram parar. Mas o desafio é a nossa energia. Estamos na luta sempre para defender o que é nosso. Mesmo assim, considero que temos uma vitória no município.

As crianças estão também se envolvendo no tema das sementes?

Tem muitas comunidades aqui no território que trabalham as Cirandas da Borborema. São crianças que estão tendo a oportunidade de participar das discussões desde a infância. Está se tornando normal para elas. Hoje, já temos pessoas com 18, 19 anos que participaram das Cirandas e têm um olhar diferenciado da agricultura, para o meio ambiente e o planeta.

E qual o papel da juventude nos Fundos Rotativos Solidários?

Os FRS chegaram na nossa comunidade em 2017. A região de Queimadas é mais seca, então aqui o trabalho é mais forte com as criações do que com os roçados. A comunidade tinha a necessidade de criação de ovelhas. Os jovens sempre gostaram de criar ovelhas. E foi aí que veio o Fundo Rotativo. Foram cinco ovelhas e um reprodutor da raça “morada nova”, que é adaptada. Os jovens fizeram sorteio no grupo e cinco foram contemplados no primeiro ano. No segundo ano, todos os cinco fizeram repasse. No terceiro ano fizeram repasse de novo. Hoje, mais de 18 jovens já foram beneficiados e a perspectiva é passar de 24. É um sucesso na comunidade. Uma das beneficiárias tinha 10 anos quando recebeu sua ovelha. Isso motivou bastante outros jovens. Agora esses jovens podem vender uma ovelha para comprar um celular, comprar uma roupa no final do ano e mesmo ajudar em casa. É um modo de gerar renda na nossa comunidade. Hoje tem jovens com rebanhos de 5, 8 cabeças. Eram jovens que não tinham nada. A gente vê que do nada a gente pode transformar muita coisa. Os pais se surpreenderam com os próprios filhos. A partir daí foi lançado o Fundo Rotativo das mulheres. Muitas mulheres são dependentes da renda do marido. A Associação reuniu 20 pessoas, sendo eu e 19 mulheres. Isso foi em fevereiro de 2018. O combinado foi que cada um colocaria 10 reais por mês e esse dinheiro seria usado para comprar uma ovelha ou uma cabra e sorteá-la entre as mulheres. Alguns animais já vinham prenhes. Em agosto de 2019, todas as participantes já tinham cabras e ovelhas nas suas casas. Quando alguma dessas mulheres tem uma necessidade em casa, elas já têm de onde tirar o recurso. Aí, a gente volta no milho. A semente do milho é importante para produzir forragem para esses animais, na época de estiagem. É uma coisa ligada na outra, por isso que o trabalho dá certo. Se não for, não dá certo.

Como você entende a relação entre guardiões de sementes e o trabalho da juventude na conservação das sementes?

Os mais velhos se vão e os jovens ficam. Assim, são os jovens que devem assumir a responsabilidade de guardar as sementes para as gerações que ainda vão chegar. Antes, os jovens não se ligavam muito nisso porque não tinham espaço, era só o trabalho. O dinheiro ficava com os pais. A partir da nossa proposta de autonomia da juventude com os Fundos Rotativos, agora são os próprios jovens que estão encabeçando esse trabalho. São esses mesmos jovens que hoje me ligam e perguntam: “Mateus, tem semente? Pai quer comprar, mas eu já disse a ele que no Banco de Sementes tem”.  Ou seja, os próprios jovens estão preocupados com o tipo de semente que os pais vão plantar. Isso é uma recompensa muito forte. Vemos que o trabalho está fluindo. É uma ação transformadora. Esses jovens estão tendo a oportunidade de fazer alguma coisa diferente, seja para sua comunidade, seja para sua própria vida.

Como as atividades se integram nas redes de Agroecologia? 

Eu defino o movimento aqui da região em uma palavra só: Ubuntu.   "Ubuntu"  significa nenhum de nós é tão bom quanto todos nós juntos. Ou seja, quando a gente tem um movimento de base sólido, dificilmente as coisas dão errado. É uma força motivadora. Quando uma das comissões temáticas do Polo da Borborema está enfraquecendo, vem outra comissão e levanta ela pra cima de novo. Esse trabalho só está dando certo até hoje porque é um trabalho em conjunto. O jovem pode fazer de tudo e passar por todas as comissões, assim como as mulheres, os idosos e os homens. Se fosse isolado, a gente já tinha enfraquecido. No momento em que tem um Banco de Sementes, no momento em que tem uma Associação, no momento em que tem um Sindicato atuante, no momento em que tem um conjunto de Sindicatos, que é o Polo da Borborema, dificilmente vai dar errado. Tem muita gente pra nos ajudar. E a gente também pode ajudar muita gente. É dessa forma que podemos prosperar.

Qual o aprendizado que você destaca desse trabalho?

Eu aprendi que todos nós somos capazes de mudar. Também somos um agente transformador, assim como também nós somos transformados. Pessoas que eu vi e pensei que nunca adeririam ao trabalho, que nunca entrariam na Associação, que nunca iam valorizar um Sindicato, hoje defendem de unha e garra todos esses projetos, como os FRS. O aprendizado que eu tiro é que a gente é capaz de mudar e é capaz de ser mudado por outro alguém. Ninguém tem o conhecimento consolidado e não tem ninguém que não possa contribuir com um pouco. Sempre vai ter essa dinâmica na vida da gente. Nada está concluído, sempre a gente está em busca de transformação. Isso é muito gratificante. Quando você lida com pessoas, você lida com surpresas todos os dias. Um reage de uma forma, outro reage de outra. Uns te botam pra baixo, outros te jogam pra cima e tu decolas como um balão. É nesse equilíbrio da vida que a gente tá conseguindo transformar um pouco da realidade que a gente vive. É com essa força motivadora que a gente acorda todos os dias e nos mantém na luta. Se a gente for só olhar pro negativo do mundo, pro negativo do governo, pra negatividade da pandemia, a gente cruza os braços e desiste. Sempre tem que ter esperança. Como dizia o saudoso Paulo Freire, não a esperança de se sentar e esperar que esteja tudo transformado, ou por outras pessoas ou por Deus, como o povo costuma dizer. Todo mundo só bota a culpa em Deus, se Deus quiser, Deus vai fazer. Mas Deus usa as pessoas e essas pessoas somos nós. Se a gente está insatisfeito com a nossa realidade, a gente tenta transformar ela. Nem que seja só tirar uma pedrinha do caminho pra quando outra pessoa for passar não tropeçar, mas que faça. E que faça todos os dias. Se todos os dias da sua vida você puder fazer alguma coisa que lhe ajude e ajude os outros, faça. Por mais simples que seja, mas faça. No somatório disso tudo a gente vai desmanchando um paradigma que foi criado e a gente vai criando outros conceitos e outras forças motivadoras.

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Fonte da entrevista: http://www.ihu.unisinos.br/609640-nenhum-de-nos-e-tao-bom-quanto-todos-nos-juntos   - Publicado em: 27/05/2021

Veja o vídeo - https://youtu.be/Z2izELh-qqA

Trata-se de um vídeo premiado, do trabalho de Maria do Socorro Cavalcante, com galinhas de capoeira, no Sítio Bento, em Boqueirão da Paraíba, no Nordeste. 

(*) Os temas das comissões do Polo da Borborema: Sementes, Água, Mercado, Saúde e Alimentação, Criação Animal, Juventude, Infância e Educação.

Crédito das Imagens:

1. Comunidade no sítio Soares (Foto: AS-PTA)

2. Mateus Manassés Bezerra Nascimento (Foto: AS-PTA)

3. Agricultor do município de Queimadas (Foto: AS-PTA)

4. Pequenos agricultores do município de Queimadas (Foto: AS-PTA)   

Nota - As imagens publicadas nesta postagem pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma delas e deseja retirá-la, por favor envie-nos um comentário.

MATURANA: SEM COOPERAÇÃO E ALTERIDADE NÃO HÁ FUTURO

12 maio, 2021

O presente artigo, analisa o pensamento do  neurobiólogo e filósofo chileno Humberto Maturana, que faleceu há poucos dias com 92 anos. É assinado por Antônio Sales Rio Neto, engenheiro, ativista e colaborar de “Outras Palavras”. Maturana - escreve o autor - influenciou as ciências sociais com seus estudos sobre os seres vivos. Crítico das lógicas neoliberais, constatou, pela teoria da autopoiese:  a humanidade pode reconstruir o mundo, mas a evolução só vem a partir do Cuidado. 

Sabendo do interesse do leitor de se aprofundar naquilo que nos ajude a compreender o momento em que vivemos, entendo que a leitura deste artigo será uma oportunidade preciosa. O texto tem nove páginas e se divide nos seguintes capítulos:

1)  Apresentação do cientista e filósofo Humberto Maturana e a sua contribuição para a ciência que, segundo o autor, vem sofrendo graves ataques nas últimas décadas.

2)  Autopoiese e acoplamento estrutural: a dinâmica da vida: “a necessidade do pensamento complexo (que abraça as contradições) para compreendermos conceitos que melhor explicam a complexidade inerente ao mundo real.”

3)  Aceitação do outro: a origem do social - “uma sociedade que descarta indivíduos vivos enquanto eles ainda estão vivos, e, portanto, atual ou potencialmente produtivos (por meio de expedientes como produção de subjetividade, exclusão social, guerras, genocídios e outras formas de violência), é automutiladora e, portanto, patológica.” (Humberto Mariotti, médico e psicoterapeuta).

4)  Negação da política: a origem da barbárie - a humanidade vive mais um processo de deterioração da política e, por consequência, observamos o crescente esgarçamento do tecido social, que, via de regra, descamba para os autoritarismos e nacionalismos acompanhados de extrema violência contra a dignidade humana.”

Sem cooperação e alteridade não há futuro

Por: Antônio Sales Rios Neto

Publicado: 07/05/2021

 “A aceitação do outro junto a nós na  convivência, é o fundamento   biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há  socialização, e sem esta não há humanidade. H.Maturana                           

A Ciência, além dos frequentes ataques que vem sofrendo nas últimas décadas, em decorrência de fenômenos como revisionismo histórico, negacionismo e outras distorções cognitivas que alimentam as regressões do sombrio tempo atual, perdeu, em 6/5/2021, um dos seus maiores expoentes, o neurobiólogo chileno Humberto Maturana, que tinha 92 anos. Resgato aqui algumas ideias que escrevi em setembro de 2020, num texto intitulado A biopolítica do desacoplamento, acerca da genialidade e do espírito humanístico desse notável pensador.

Para quem conhece o extraordinário legado de Maturana, não é necessário, portanto, muito esforço cognitivo para percebermos que o atual modo de vida hegemônico da civilização é totalmente insustentável, em qualquer perspectiva que o observemos. Essa incongruência civilizatória tem a ver com as diversas visões de mundo que foram sendo elaboradas e vivenciadas ao longo da história, até chegarmos à visão econômica de mundo, que impera quase absoluta na época atual. Isso porque todas as cosmovisões já experimentadas, desde o teocentrismo da idade média, passando pelo antropocentrismo da cultura renascentista e moderna, que foi mesclado com o mecanicismo determinista iniciado no século XVII e desembocou no economicismo atual (e até mesmo a aposta no transumanismo proporcionado pelos algoritmos, que alguns projetam para o futuro próximo), foram permeadas pela cultura patriarcal, a qual está amparada na apropriação da verdade de que o mundo é uma grande arena regida pela ideia de luta, hierarquia, poder, controle e extração de recursos naturais. E esta cultura patriarcal, em muitos momentos da história da humanidade, desencadeou processos de profunda regressão, porém nunca tão intensa e impactante quanto a que aparenta estar em curso na contemporaneidade.

Em sua intensa e abrangente prática científica, Maturana deixou para a humanidade, como veremos adiante, contribuições relevantes para a compreensão do que seja a vida, em especial, sobre os fundamentos biológicos que sustentam (ou deveriam sustentar) não só o comportamento humano mas também o social. Diferentemente dos muitos pensadores que, ao longo da história, fizeram e continuam fazendo, a partir das ciências sociais, a crítica ao nosso sistema-mundo que está amparado na lógica de mercado, Maturana desenvolveu ao longo da sua trajetória investigativa as concepções biológicas que demonstram que estamos vivendo, há milênios, sob um paradigma civilizacional totalmente incongruente com os processos de sustentação da vida, que tem afetado as mais diversas dimensões da experiência humana: científica, econômica, cultural, política, social, religiosa, dentre outras.

Humberto Maturana, de Santiago do Chile, doutorou-se em Biologia por Harvard (1958), trabalhou em neurofisiologia no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e, também, transitou pela filosofia, antropologia e algumas áreas específicas da medicina como anatomia, genética e cardiologia, com um interesse permeado pela compreensão dos seres vivos e, especialmente, do humano e da relação entre humanos. Maturana é reconhecido em vários países e em vastas áreas do saber pelos seus estudos, tendo sido agraciado por diversos prêmios e distinções como Doutor Honoris Causa pela Universidade Livre de Bruxelas e o Prêmio McCulloch pela Sociedade Americana de Cibernética. Dos muitos livros que escreveu, destacaria Autopoiesis and Cognition (Reidel, 1980) e El Arbor del Conocimiento (Editorial Universitária, Chile, 1984), os dois escritos junto com o biólogo e filósofo chileno Francisco Varela, falecido em 2001, com quem ele concebeu na década de 1970 a noção de autopoiese (autoprodução, a criação de si), conceito que extrapolou o domínio da biologia e foi incorporado em outras áreas da ciência e da filosofia, tendo sido utilizado por nomes reconhecidos como Felix Guattari, Gilles Deleuze, Niklas Luhmann, Antonio Negri e outros.

Embora sua atuação estivesse voltada para a biologia, o trabalho de Maturana extrapolou para o campo da política. Por meio das suas ideias foi possível refletir sobre a fenomenologia da política a partir da fenomenologia da biologia e, assim, podermos perceber como o biológico e o cultural se imbricam, por uma condição inerente à natureza dos seres vivos, e como essa relação dissociou-se ao longo da história da humanidade, contrariando os princípios que regem os metabolismos constituintes da vida. Depois de Charles Darwin, cujas descobertas no campo das ciências naturais (Teoria da Evolução das Espécies – 1859) pôs por terra a aura de divindade em torno do homem até então, tornando-o mortal e colocando-o na mesma categoria dos seus parentes animais, Maturana talvez tenha sido quem melhor conseguiu ampliar a compreensão acerca da dinâmica da vida, inclusive alcançando, por meio da biologia, uma melhor compreensão também acerca do comportamento humano e da vida em sociedade.

Talvez a principal contribuição de Maturana para a ciência tenha sido a ampliação do entendimento do que seja conhecimento e realidade e qual a relação entre eles. Maturana concebe que a vida, em suas mais variadas formas, trata-se de um processo de conhecimento entrelaçado com a realidade. Nas palavras dele, “todo ato de conhecer faz surgir um mundo”. Assim, a realidade na qual cada indivíduo vive é o que ele constrói a partir da sua percepção, ou seja, da sua visão de mundo ou modelo mental, ao mesmo tempo em que esta mesma realidade também retroage sobre o indivíduo, construindo-o. Convencionou-se chamar esse campo de estudo de biologia da cognição. Aliás, o que Maturana revelou pela fenomenologia biológica, nomes como Nietzsche já intuíam pela via da filosofia, quando enunciou: “Contra o positivismo, que para perante os fenômenos e diz: ‘Há apenas fatos’, eu digo: ‘Ao contrário, fatos é o que não há; há apenas interpretações’. Não podemos constatar nenhum fato ‘em si’: talvez seja um disparate querer algo assim. Tudo é subjetivo.” Lembrando que Nietzsche, como grande parte dos notáveis de sua época, era um pensador mais próximo da visão patriarcal, mas com bons insights não patriarcais. Afinal de contas, por mais brilhante que seja uma mente em sua capacidade de compreensão da complexidade do mundo real, não há como escapar totalmente dos condicionamentos patriarcais estando imerso em um modo de vida que assim se sustenta.

Dizer que cada indivíduo produz o mundo e por ele é produzido, num processo recursivo e circular, vai de encontro com a ideia ainda hoje predominante chamada “representacionismo”, na qual há uma realidade objetiva independente do observador, que constitui a base da cultura patriarcal. Nela, o mundo já é algo pré-dado em relação à experiência humana, que nos faz adotar uma atitude passiva diante da realidade. É assim que opera, por exemplo, a visão econômica de mundo, hoje, hegemônica, que nos impõe como verdade a ideia de que o mundo é um grande mercado regido pela competição, meritocracia, consumo e acumulação, por meio da qual se procura justificar que não há outra forma de sociabilidade que não seja a que nós vivemos atualmente, que tem como centralidade o capital.

Para uma melhor compreensão dessa biologia do conhecer, segue uma tentativa de síntese dos principais conceitos e estudos desenvolvidos por Maturana e Varela que melhor explicam os fundamentos biológicos que sustentam a dinâmica da vida e do fenômeno social, os quais servem de argumentos para entender que o comportamento humano foi moldado por uma cultura patriarcal em desacordo com tais fundamentos, e que também nos permite entender como, a partir dos séculos XVII e XVIII, o capitalismo foi gradualmente engendrando uma biopolítica de desacoplamento crescente dos processos que sustentam a vida no nosso planeta, que inclui as sociedades humanas.

Autopoiese e acoplamento estrutural: a dinâmica da vida

O termo “autopoiese”, que vem do grego poiesis, referente à produção, significa autoprodução. Foi utilizado pela primeira vez no mundo acadêmico em 1974, em um artigo escrito por Maturana, Varela e Ricardo Uribe (PhD em cibernética pela Universidade Brunel, Londres) para explicar como os seres vivos produzem continuamente a si mesmos. Como diz Maturana, a autopoiese é o “centro da dinâmica constitutiva dos seres vivos”. Os organismos vivos, desde o nível dos componentes celulares às comunidades de seres vivos, são, desse modo, sistemas autônomos que se autoproduzem e se autorregulam. Entretanto, paradoxalmente, eles também são dependentes, pois precisam recorrer aos recursos disponíveis no meio ambiente para manter sua autopoiese. Daí a necessidade do pensamento complexo (que abraça as contradições) para compreendermos conceitos que melhor explicam a complexidade inerente ao mundo real.

Por outro lado, os organismos vivos também estão determinados por sua estrutura, o que Maturana e Varela chamaram de “determinismo estrutural”. Cada ser vivo tem uma organização que o define, o modo como ele se configura, a qual é sustentada por uma estrutura resultante da forma como seus componentes se interconectam e interagem sem que a sua organização se altere. Ou seja, a estrutura muda o tempo todo para manter sua organização, adaptando-se às modificações do seu ambiente, que também são contínuas. O determinismo aqui, portanto, não se confunde com previsibilidade, pois a estrutura está em constante mudança para manter sua congruência com o meio, também em permanente mudança. Mais um paradoxo da dinâmica dos sistemas vivos: estão em contínua desordem interna, no âmbito da estrutura, para manter a ordem externa, no âmbito da organização. Dizendo de outro modo, os seres vivos estão permanentemente em estado de entropia (degradação) e neguentropia (regeneração). Esse fluxo, que é necessário e imprescindível para que o ser vivo mantenha uma espécie de harmonia com o meio no qual está inserido, só cessa com a perda da organização, ou seja, com a morte.

Daí vem a noção de “acoplamento estrutural”, também desenvolvida por Maturana e Varela. O ser vivo, para manter sua organização, precisa estar em um permanente estado de congruência com o ambiente em seu entorno. O mundo vivo constitui-se, assim, de uma grande comunidade com variadas formas de vida, todas em um contínuo estado de interação, em diversas ordens de organização, cujos comportamentos afetam-se mutuamente (ser vivo e meio) e, assim, vão estabelecendo consensos contextuais que garantem a coexistência e a evolução de todos os integrantes dessa imensa rede que é a comunidade de biodiversidade na qual estamos inseridos. Como diz Maturana, “o que define uma espécie é o seu modo de vida, uma configuração de relações variáveis entre organismo e meio”.

Quando apreciamos a harmonia e a exuberância de uma grande floresta amazônica, por exemplo, na verdade estamos observando uma imensa rede de biodiversidade em acoplamentos estruturais, entre um número incalculável de seres vivos, em processos adaptativos complexos de coexistência. Só no corpo humano, segundo os microbiologistas, coexiste uma comunidade da ordem de trilhões de bactérias e micro-organismos. Conforme Maturana e Varela, “a contínua mudança estrutural dos seres vivos com conservação de sua autopoiese acontece a cada instante, incessantemente e de muitas maneiras simultâneas. É o palpitar da vida”.

Aceitação do outro: a origem do social

A partir desses conceitos como autopoiese e acoplamento estrutural, a visão da chamada biologia moderna (século VII), que entendia a evolução a partir das configurações genéticas que se conservam na história reprodutiva dos seres vivos, dá um enorme salto de compreensão acerca da dinâmica da vida. Nessa nova perspectiva, a explicação do fenômeno da evolução, segundo Maturana, “está na mudança do modo de vida, e em sua conservação na construção de uma linhagem de organismos congruentes com sua circunstância, e não em desacordo com ela”. No caso dos seres humanos, Maturana sustenta, com base em estudo de registros fósseis de 3,5 milhões de anos, que a origem do humano está no surgimento da linguagem e no seu entrelaçamento com a emoção, a qual constitui a base das ações humanas, ao contrário do que pensa o senso comum que dá centralidade à razão e à objetividade nas nossas ações, entendimento que constituiu a base do desenvolvimento da ciência moderna, surgida nos séculos XVI e XVII na Europa. Como ele mesmo diz, “todo sistema racional tem um fundamento emocional”. No entanto, “pertencemos a uma cultura que dá ao racional uma validade transcendente, e ao que provém de nossas emoções, um caráter arbitrário.”

Maturana também sustenta que, do ponto de vista biológico, a aceitação do outro é o que dá origem ao social como acontece em qualquer comunidade de seres vivos. Entretanto, não é isso que ocorre entre os humanos. As sociedades humanas funcionam a partir de uma dinâmica de comportamentos forçados, que é o padrão da cultura patriarcal, na qual se sustenta a visão econômica de mundo. Esse padrão de comportamento foi reforçado ainda mais pelo chamado darwinismo social, que traz a noção de que o mundo é uma grande arena, ideia concebida pelo filósofo, biólogo e antropólogo inglês, Herbert Spencer, por alguns considerado o profeta do capitalismo laissez-faire, que cunhou a expressão “sobrevivência do mais apto”. Essa é uma versão da teoria evolutiva da seleção natural, não aceita totalmente pelo próprio Darwin, que ultrapassou o domínio da biologia, e estendeu-se até o âmbito cultural.

A noção de autopoiese, da mesma forma que explica a dinâmica de qualquer comunidade de seres vivos, também deveria se estender aos agrupamentos humanos. No entanto, a cultura patriarcal subverteu essa dinâmica da vida e, assim, vivemos uma sociabilidade patológica nesse sentido, uma vez que ela privilegia uma ínfima minoria da espécie humana em detrimento de um enorme contingente de indivíduos. Nas palavras do escritor e médico psicoterapeuta Humberto Mariotti, “uma sociedade só poderia ser vista como autopoiética se satisfizesse a autopoiese de todos os seus indivíduos. Logo, uma sociedade que descarta indivíduos vivos enquanto eles ainda estão vivos, e, portanto, atual ou potencialmente produtivos (por meio de expedientes como produção de subjetividade, exclusão social, guerras, genocídios e outras formas de violência), é automutiladora e portanto patológica.” Dizendo de outro modo, somos culturalmente condicionados a viver em competição, e não raro de forma predatória, que nega a presença do outro, enquanto biologicamente só podemos manter nossa autopoiese e nossa congruência com o meio se aceitarmos o outro como legítimo outro na convivência.

Nesse sentido, o que há na natureza é uma grande coexistência de variadas formas de vida que interagem entre si e a melhor forma para compreender essa dinâmica é por meio da noção de cooperação. No entanto, quando à natureza se junta à cultura, esta pode se sobrepor àquela, o que parece ter ocorrido com os seres humanos quando a cultura patriarcal se instalou desde o neolítico. Mariotti descreve bem como tentamos inutilmente nos projetar na natureza: “quando o homem chama determinados animais de predadores está antropomorfizando-os, ou seja, projetando neles uma condição que lhe é peculiar. Como não competem entre si, os sistemas vivos não-humanos não ‘ditam’ uns aos outros normas de conduta. Mantidas as condições naturais, entre eles não há comandos autoritários nem obediência irrestrita. Os seres vivos são sistemas autônomos, que determinam o seu comportamento a partir de seus próprios referenciais, isto é, a partir de como interpretam as influências que recebem do meio. Se tal não acontecesse, seriam sistemas sujeitados, obedientes a determinações vindas de fora.”

Portanto, a competição é um fenômeno que pertence ao âmbito cultural. O que dá origem ao social é a aceitação da legitimidade da existência do outro, sem a qual não poderia haver convivência humana. Maturana, além de afirmar que “a origem antropológica do Homo sapiens não se deu através da competição, mas sim através da cooperação”, ainda vai mais longe quando diz que “o amor é a emoção central na história evolutiva humana desde o início”. A palavra amor aqui está mais associada à noção de cuidado mútuo do que a qualquer conotação cristã ou romantizada que ela enseja no senso comum, ou seja, diz respeito à “emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência”. Por isso é que Maturana afirma, com base na biologia, que 99% das enfermidades humanas estão relacionadas à negação do amor, na medida em que a aceitação do outro é o fundamento biológico do fenômeno social. Como também reforça Gray, “a saúde pode ser a condição natural das outras espécies, mas no caso dos homens o normal é a doença. Estar cronicamente doente é parte do que significa ser humano”.

Negação da política: a origem da barbárie

Hoje, como já é quase um continuum na História, a humanidade vive mais um processo de deterioração da política e, por consequência, observamos o crescente esgarçamento do tecido social, que, via de regra, descamba para os autoritarismos e nacionalismos acompanhados de extrema violência contra a dignidade humana. Os horrores do século XX confirmam isso. Aliás, segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm, “a história é o registro dos crimes e loucuras da humanidade”. E não poderíamos esperar algo diferente se a cultura que permeou toda a trajetória humana nos últimos seis ou sete mil anos foi a patriarcal.

No fundo, a humanidade é refém de uma espécie de autobloqueio cultural, que a aprisiona em sua própria cultura e assim não consegue ver outra forma de sociabilidade. Isso tem a ver com aquela afirmação atribuída a Einstein de que “nós não podemos resolver um problema, com o mesmo estado mental que o criou”. Em outras palavras, encaramos de um modo muito natural e, portanto, sem qualquer questionamento, a cultura em que nascemos e nos desenvolvemos, sem perceber que estamos incongruentes com a própria condição humana, a qual nos permitiu, ao longo do processo evolutivo do Homo sapiens, que durou em torno de 350 mil anos, chegar até aqui. A normalização da negação do outro e, no extremo, a banalização da violência que essa normalização gera é o padrão de sociabilidade da cultura patriarcal. Maturana vincula esse condicionamento cultural à atual crise civilizatória nos seguintes termos: “para os membros da comunidade que a vivem, uma cultura é um âmbito de verdades evidentes. Elas não requerem justificação e seu fundamento não se vê nem se investiga, a menos que no futuro dessa comunidade surja um conflito cultural que leve a tal reflexão. Esta última é a nossa situação atual.”

O fato é que a negação da política está atualmente em acelerada expansão, em várias partes do mundo, como reflexo do exarcerbamento do capitalismo por meio da doutrina neoliberal em curso nos últimos cinquenta anos. O movimento do capitalismo a partir desse ideário neoliberal, impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico, consiste, de um lado, em desarticular e suprimir as forças do Estado e, de outro, impor o padrão empresa de sociabilidade ou, como prefere Maturana, estamos vivenciando a “abertura para a tirania empresarial”. Por isso é que o neoliberalismo deve ser compreendido como uma nova forma de totalitarismo, que agora se dá invertido, ou seja, sob uma ditadura de mercado, como sustenta a filósofa Marilena Chauí. E como tal, revela-se uma doutrina econômica fadada ao fracasso, mas não sem antes produzir uma profunda regressão civilizatória, tendente a ser muito mais avassaladora do que outras registradas na história, uma vez que há dois componentes novos que potencializam e amplificam assustadoramente seus efeitos: as mudanças climáticas e o desmoronamento dos Estados-nação, os dois fenômenos de abrangência global. Na verdade, a humanidade coloca-se de frente com a sua primeira crise de alcance planetário, o que leva muitos pensadores mais atentos às múltiplas dimensões da atual crise civilizatória compararem o antropoceno como mais um dos processos de extinção em massa que a Terra teve no passado, em face da acentuada e acelerada perda de biodiversidade que vem sendo constatada pela ciência nas últimas décadas.

Gray afirma que “novas espécies de despotismos surgem em muitas partes do mundo. Governos recorrem às mais recentes tecnologias para desenvolver técnicas hipermodernas de controle muito mais invasivas que das tiranias tradicionais.” A nova biopolítica que opera no tempo atual ajuda a compreender essas mudanças em curso no sistema do capital. Com o neoliberalismo iniciado nos anos 1970, associado à revolução dos algoritmos, que fez emergir o fenômeno da globalização, financeirização e transnacionalização do capital, esse metabolismo desencadeou um processo quase imperceptível de reformulação da democracia de mercado dos últimos quatrocentos anos, ampliando ainda mais a incongruência do sistema capitalista. Estamos vivenciando, de um lado, o declínio das democracias liberais e, de outro, o provável advento de um capitalismo de hipervigilância como desdobramento da simbiose entre mercado e tecnologia.

Em uma recente entrevista ao jornal chileno La Tercera, em 30/4/2020, Maturana mostrou-se bastante preocupado com a atual crise sanitária e ecológica e foi muito contundente em afirmar que se não nos escutarmos e não nos encontrarmos na mútua aceitação e na colaboração, por meio da convivência democrática, “não geraremos mudança alguma orientada para o bem-estar da humanidade, sem pandemia viral ou com ela, iremos direto à nossa extinção”. O sistema capitalista não só é incompatível com a dinâmica da natureza como está deteriorando de forma muito acelerada essa dinâmica. Na visão de Mariotti, “uma sociedade verdadeiramente autopoiética não pode coexistir com o capitalismo de competição predatória e de índole excludente que hoje predomina no mundo. O mesmo vale, é claro, para o capitalismo de Estado, pelo menos o que se tem posto em prática até agora, em regimes que não primam pelo respeito à diversidade de ideias. Se somos determinados a partir de dentro, qualquer forma de autoritarismo é e sempre será uma agressão.” Daí o impasse entre a biopolítica de sustentação do capital e a dinâmica da imensa comunidade de vida, da qual nós humanos fazemos parte, que se sustenta numa delicada teia de acoplamentos estruturais, os quais vêm sendo rompidos desde quando inauguramos o antropoceno.

Infelizmente, a ciência e a história não avançam de forma harmoniosa. Não é porque Maturana e outros, antes e depois dele, descobriram melhores fundamentos para explicar a condição humana e a realidade na qual ela se insere que o nosso modo de viver será ressignificado para melhor. Os avanços e retrocessos que a humanidade experimentou não foram impulsionados pela ciência e sim pela visão de mundo hegemônica em cada época histórica, a qual sempre se apropriou da ciência da forma que melhor lhe convém para se impor, como foi o caso do darwinismo social citado anteriormente. Como afirma Gray, “a ciência é um método de investigação, e não uma visão de mundo”. O motor da história, desde quando o capital tornou-se o eixo estruturador da civilização, tem sido a liberdade da política e do mercado, este sempre submetendo aquela e, por vezes, chegando a anulá-la. E não há sinais de que haverá uma inversão dessa dinâmica em um horizonte próximo.

Segundo a socióloga austríaca Riane Eisler, a partir de algum momento do neolítico, quando houve a grande bifurcação cultural do Ocidente, os povos guerreiros indo-europeus fizeram uso das armas para promover a passagem da “sociedade de parceria”, até então predominante, para a “sociedade de dominação” (O Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro, Palas Athena, 2008). Por isso, talvez seja mais razoável e proveitoso compreendermos e aceitarmos que a história da humanidade coincide com a história das regressões impostas pelo patriarcado e, provavelmente, terá seu ápice e esgotamento na contemporaneidade. Não há como o antropoceno ter vida longa diante dos desacoplamentos que estão em curso.

Se os achados científicos de Maturana e de muitos outros, nessa linha investigativa em torno da fenomenologia social, não estão sendo incorporados pela política e pelo mercado, e tudo indica que não o serão, pelo menos nos servirão para fornecer os fundamentos biológicos, para compreendermos a barbárie e o colapso climático para os quais a civilização está deslizando. Com a crescente anulação da política, já há fortes indícios de que estamos inaugurando uma fase muito sombria da história em que o ego humano, em suas mais destrutivas expressões, ameaça reinar absoluto, sem contrapesos para contê-lo ou pelo menos mitigá-lo. Por isso vale sempre lembrar a advertência do neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl, que sentiu na pele os horrores do nazismo: “Portanto, fiquemos alerta — alerta em duplo sentido: Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. E desde Hiroshima nós sabemos o que está em jogo.”.

Segundo o poeta Thomas Eliot, “a humanidade não suporta muita realidade”. Vista de uma certa perspectiva, tal afirmativa não deixa de ser um grande alento. Isso porque talvez a nova biopolítica que está sendo gestada pelas forças do capital, lastreada nos algoritmos, que alguns acham mais adequado chamar de tanatopolítica ou necropolítica, como o faz o filósofo camaronês Achille Mbembe, nos conduzirá a uma realidade tão distópica e, por isso, tão insuportável que, no fim das contas, esse esvaziamento do humano, do vital, da política, da reflexão, da contemplação, talvez represente uma preparação para a travessia da difícil metamorfose que poderá nos permitir resgatar a nossa humanidade perdida. Quem sabe, uma última chance de redenção, um fragmento de esperança de que a cultura patriarcal e os conflitos internos que ela infligiu aos humanos seja, finalmente, dissipada e regresse ao seu estado contingencial, e que a comunidade de vida e o amor que lhe dá sustentação retornem, depois de um longo tempo, ao seu curso natural, como nos ensinou Humberto Maturana!

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Fonte do artigo: 

https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/maturana-sem-cooperacao-e-alteridade-nao-ha-futuro/

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 Referências

·  EISLER, Riane. O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2007.

·  FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração. Tradução: Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 2ª ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1991.

·  GRAY, John. A alma da marionete: um breve ensaio sobre a liberdade humana. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2018.

·  GRAY, John. O silêncio dos animais: sobre o progresso e outros mitos modernos. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2019.

·  HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução: Marcos Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

·  MARIOTTI, Humberto. Autopoiese, cultura e sociedade. 1999. Disponível em: <http://escoladedialogo.com.br/escoladedialogo/index.php/biblioteca/artigos/autopoiese-cultura-e-sociedade/>.

·  MATURANA, Humberto R. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

·  MATURANA, Humberto R. Conversações matrísticas e patriarcais. In: ______; VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo: Palas Athena, 2004.

·  MATURANA, Humberto R. Emoções e linguagem na educação e na política. Tradução: José Fernando Camos Fortes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

·  MATURANA, Humberto R. Reportagem de Paulina Sepúlveda, publicada por La Tercera, 30 de abril de 2020. A tradução é do Cepat. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/598691-sem-escuta-respeito-mutuo-e-colaboracao-iremos-direto-a-nossa-extincao-adverte-humberto-maturana>

·  MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena, 2010.

·  NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos: 1885 – 1887: volume VI. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

  

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