O presente artigo, analisa o pensamento do neurobiólogo e filósofo chileno Humberto Maturana, que faleceu há poucos dias com 92 anos. É assinado por Antônio Sales Rio Neto, engenheiro,
ativista e colaborar de “Outras Palavras”. “Maturana - escreve o autor - influenciou as ciências sociais com seus estudos
sobre os seres vivos. Crítico das lógicas neoliberais, constatou,
pela teoria da autopoiese: a humanidade pode reconstruir o mundo, mas a evolução
só vem a partir do Cuidado.
Sabendo do interesse do leitor de se aprofundar naquilo que nos ajude a compreender o momento em que vivemos,
entendo que a leitura deste artigo será uma oportunidade preciosa. O texto tem nove páginas e se divide nos seguintes capítulos:
1) Apresentação do cientista e filósofo Humberto
Maturana e a sua
contribuição para a ciência que, segundo o autor, vem sofrendo graves ataques
nas últimas décadas.
2) Autopoiese e acoplamento estrutural: a dinâmica da
vida: “a necessidade do pensamento
complexo (que abraça as contradições) para compreendermos conceitos que
melhor explicam a complexidade inerente ao mundo real.”
3) Aceitação do outro: a origem do social - “uma sociedade que descarta indivíduos vivos
enquanto eles ainda estão vivos, e, portanto, atual ou potencialmente
produtivos (por meio de expedientes como produção de subjetividade, exclusão
social, guerras, genocídios e outras formas de violência), é automutiladora e,
portanto, patológica.” (Humberto Mariotti, médico e psicoterapeuta).
4) Negação da política: a origem da barbárie - “a
humanidade vive mais um processo de deterioração da política e, por
consequência, observamos o crescente esgarçamento do tecido social, que, via de
regra, descamba para os autoritarismos e nacionalismos acompanhados de extrema
violência contra a dignidade humana.”
Sem cooperação e alteridade não há futuro
Por: Antônio Sales
Rios Neto
Publicado: 07/05/2021
“A
aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade. H.Maturana
A Ciência, além dos frequentes ataques que vem sofrendo nas últimas décadas, em
decorrência de fenômenos como revisionismo histórico, negacionismo e outras
distorções cognitivas que alimentam as regressões do sombrio tempo atual,
perdeu, em 6/5/2021, um dos seus maiores expoentes, o neurobiólogo chileno
Humberto Maturana, que tinha 92 anos. Resgato aqui algumas ideias que escrevi
em setembro de 2020, num texto intitulado A biopolítica do desacoplamento, acerca
da genialidade e do espírito humanístico desse notável pensador.
Para quem conhece o extraordinário
legado de Maturana, não é necessário, portanto, muito esforço cognitivo para
percebermos que o atual modo de vida hegemônico da civilização é totalmente
insustentável, em qualquer perspectiva que o observemos. Essa incongruência
civilizatória tem a ver com as diversas visões de mundo que foram sendo
elaboradas e vivenciadas ao longo da história, até chegarmos à visão econômica
de mundo, que impera quase absoluta na época atual. Isso porque todas as
cosmovisões já experimentadas, desde o teocentrismo da idade média, passando
pelo antropocentrismo da cultura renascentista e moderna, que foi mesclado com
o mecanicismo determinista iniciado no século XVII e desembocou no economicismo
atual (e até mesmo a aposta no transumanismo proporcionado pelos algoritmos,
que alguns projetam para o futuro próximo), foram permeadas pela cultura patriarcal, a qual está amparada na apropriação da verdade de
que o mundo é uma grande arena regida pela ideia de luta, hierarquia, poder,
controle e extração de recursos naturais. E esta cultura patriarcal, em muitos
momentos da história da humanidade, desencadeou processos de profunda
regressão, porém nunca tão intensa e impactante quanto a que aparenta estar em
curso na contemporaneidade.
Em sua intensa e abrangente prática
científica, Maturana deixou para a humanidade, como veremos adiante,
contribuições relevantes para a compreensão do que seja a vida, em especial,
sobre os fundamentos biológicos que sustentam (ou deveriam sustentar) não só o
comportamento humano mas também o social. Diferentemente dos muitos pensadores
que, ao longo da história, fizeram e continuam fazendo, a partir das ciências
sociais, a crítica ao nosso sistema-mundo que está amparado na lógica de
mercado, Maturana desenvolveu ao longo da sua trajetória investigativa as
concepções biológicas que demonstram que estamos vivendo, há milênios, sob um
paradigma civilizacional totalmente incongruente com os processos de sustentação
da vida, que tem afetado as mais diversas dimensões da experiência humana:
científica, econômica, cultural, política, social, religiosa, dentre outras.
Humberto Maturana, de Santiago do Chile, doutorou-se em Biologia por
Harvard (1958), trabalhou em neurofisiologia no MIT (Massachusetts Institute of
Technology) e, também, transitou pela filosofia, antropologia e algumas áreas
específicas da medicina como anatomia, genética e cardiologia, com um interesse
permeado pela compreensão dos seres vivos e, especialmente, do humano e da
relação entre humanos. Maturana é reconhecido em vários países e em vastas
áreas do saber pelos seus estudos, tendo sido agraciado por diversos prêmios e
distinções como Doutor Honoris Causa pela Universidade Livre de Bruxelas e o
Prêmio McCulloch pela Sociedade Americana de Cibernética. Dos muitos livros que
escreveu, destacaria Autopoiesis and Cognition (Reidel, 1980)
e El Arbor del Conocimiento (Editorial Universitária, Chile,
1984), os dois escritos junto com o biólogo e filósofo chileno Francisco
Varela, falecido em 2001, com quem ele concebeu na década de 1970 a noção de
autopoiese (autoprodução, a criação de si), conceito que extrapolou o domínio
da biologia e foi incorporado em outras áreas da ciência e da filosofia, tendo sido
utilizado por nomes reconhecidos como Felix Guattari, Gilles Deleuze, Niklas
Luhmann, Antonio Negri e outros.
Embora sua atuação estivesse voltada
para a biologia, o trabalho de Maturana extrapolou para o campo da política.
Por meio das suas ideias foi possível refletir sobre a fenomenologia da
política a partir da fenomenologia da biologia e, assim, podermos perceber como
o biológico e o cultural se imbricam, por uma condição inerente à natureza dos
seres vivos, e como essa relação dissociou-se ao longo da história da
humanidade, contrariando os princípios que regem os metabolismos constituintes
da vida. Depois de Charles Darwin, cujas descobertas no campo das ciências
naturais (Teoria da Evolução das Espécies – 1859) pôs por terra a aura de
divindade em torno do homem até então, tornando-o mortal e colocando-o na mesma
categoria dos seus parentes animais, Maturana talvez tenha sido quem melhor
conseguiu ampliar a compreensão acerca da dinâmica da vida, inclusive
alcançando, por meio da biologia, uma melhor compreensão também acerca do
comportamento humano e da vida em sociedade.
Talvez a principal contribuição de
Maturana para a ciência tenha sido a ampliação do entendimento do que seja
conhecimento e realidade e qual a relação entre eles. Maturana concebe que a
vida, em suas mais variadas formas, trata-se de um processo de conhecimento
entrelaçado com a realidade. Nas palavras dele, “todo ato de conhecer
faz surgir um mundo”. Assim, a realidade na qual cada indivíduo vive é o
que ele constrói a partir da sua percepção, ou seja, da sua visão de mundo ou
modelo mental, ao mesmo tempo em que esta mesma realidade também retroage sobre
o indivíduo, construindo-o. Convencionou-se chamar esse campo de estudo de
biologia da cognição. Aliás, o que Maturana revelou pela fenomenologia
biológica, nomes como Nietzsche já intuíam pela via da filosofia, quando
enunciou: “Contra o positivismo, que para perante os fenômenos e diz:
‘Há apenas fatos’, eu digo: ‘Ao contrário, fatos é o que não há; há apenas
interpretações’. Não podemos constatar nenhum fato ‘em si’: talvez seja um
disparate querer algo assim. Tudo é subjetivo.” Lembrando que
Nietzsche, como grande parte dos notáveis de sua época, era um pensador mais
próximo da visão patriarcal, mas com bons insights não patriarcais.
Afinal de contas, por mais brilhante que seja uma mente em sua capacidade de
compreensão da complexidade do mundo real, não há como escapar totalmente dos
condicionamentos patriarcais estando imerso em um modo de vida que assim se
sustenta.
Dizer que cada indivíduo produz o
mundo e por ele é produzido, num processo recursivo e circular, vai de encontro
com a ideia ainda hoje predominante chamada “representacionismo”, na qual há
uma realidade objetiva independente do observador, que constitui a base da
cultura patriarcal. Nela, o mundo já é algo pré-dado em relação à experiência
humana, que nos faz adotar uma atitude passiva diante da realidade. É assim que
opera, por exemplo, a visão econômica de mundo, hoje, hegemônica, que nos impõe
como verdade a ideia de que o mundo é um grande mercado regido pela competição,
meritocracia, consumo e acumulação, por meio da qual se procura justificar que
não há outra forma de sociabilidade que não seja a que nós vivemos atualmente,
que tem como centralidade o capital.
Para uma melhor compreensão dessa
biologia do conhecer, segue uma tentativa de síntese dos principais conceitos e
estudos desenvolvidos por Maturana e Varela que melhor explicam os fundamentos
biológicos que sustentam a dinâmica da vida e do fenômeno social, os quais
servem de argumentos para entender que o comportamento humano foi moldado por
uma cultura patriarcal em desacordo com tais fundamentos, e que também nos
permite entender como, a partir dos séculos XVII e XVIII, o capitalismo foi gradualmente
engendrando uma biopolítica de desacoplamento crescente dos processos que
sustentam a vida no nosso planeta, que inclui as sociedades humanas.
Autopoiese
e acoplamento estrutural: a dinâmica da vida
O termo “autopoiese”, que vem do
grego poiesis, referente à produção, significa autoprodução.
Foi utilizado pela primeira vez no mundo acadêmico em 1974, em um artigo
escrito por Maturana, Varela e Ricardo Uribe (PhD em cibernética pela
Universidade Brunel, Londres) para explicar como os seres vivos produzem
continuamente a si mesmos. Como diz Maturana, a autopoiese é o “centro
da dinâmica constitutiva dos seres vivos”. Os organismos vivos, desde o
nível dos componentes celulares às comunidades de seres vivos, são, desse modo,
sistemas autônomos que se autoproduzem e se autorregulam. Entretanto,
paradoxalmente, eles também são dependentes, pois precisam recorrer aos
recursos disponíveis no meio ambiente para manter sua autopoiese. Daí a necessidade do pensamento complexo (que abraça
as contradições) para compreendermos conceitos que melhor explicam a
complexidade inerente ao mundo real.
Por outro lado, os organismos vivos
também estão determinados por sua estrutura, o que Maturana e Varela chamaram
de “determinismo estrutural”. Cada ser vivo tem uma organização que
o define, o modo como ele se configura, a qual é sustentada por uma estrutura
resultante da forma como seus componentes se interconectam e interagem sem que
a sua organização se altere. Ou seja, a estrutura muda o tempo todo para manter
sua organização, adaptando-se às modificações do seu ambiente, que também são
contínuas. O determinismo aqui, portanto, não se confunde com previsibilidade,
pois a estrutura está em constante mudança para manter sua congruência com o
meio, também em permanente mudança. Mais um paradoxo da dinâmica dos sistemas
vivos: estão em contínua desordem interna, no âmbito da estrutura, para manter
a ordem externa, no âmbito da organização. Dizendo de outro modo, os seres
vivos estão permanentemente em estado de entropia (degradação) e neguentropia
(regeneração). Esse fluxo, que é necessário e imprescindível para que o ser
vivo mantenha uma espécie de harmonia com o meio no qual está inserido, só
cessa com a perda da organização, ou seja, com a morte.
Daí vem a noção de “acoplamento
estrutural”, também desenvolvida por Maturana e Varela. O ser vivo, para
manter sua organização, precisa estar em um permanente estado de congruência
com o ambiente em seu entorno. O mundo vivo constitui-se, assim, de uma grande
comunidade com variadas formas de vida, todas em um contínuo estado de
interação, em diversas ordens de organização, cujos comportamentos afetam-se
mutuamente (ser vivo e meio) e, assim, vão estabelecendo consensos contextuais
que garantem a coexistência e a evolução de todos os integrantes dessa imensa
rede que é a comunidade de biodiversidade na qual estamos inseridos. Como diz
Maturana, “o que define uma espécie é o seu modo de vida, uma
configuração de relações variáveis entre organismo e meio”.
Quando apreciamos a harmonia e a
exuberância de uma grande floresta amazônica, por exemplo, na verdade estamos
observando uma imensa rede de biodiversidade em acoplamentos estruturais, entre
um número incalculável de seres vivos, em processos adaptativos complexos de
coexistência. Só no corpo humano, segundo os microbiologistas, coexiste uma
comunidade da ordem de trilhões de bactérias e micro-organismos. Conforme
Maturana e Varela, “a contínua mudança estrutural dos seres vivos com
conservação de sua autopoiese acontece a cada instante, incessantemente e de
muitas maneiras simultâneas. É o palpitar da vida”.
Aceitação do outro: a origem do
social
A partir desses conceitos como autopoiese
e acoplamento estrutural, a visão da chamada biologia moderna (século VII), que
entendia a evolução a partir das configurações genéticas que se conservam na
história reprodutiva dos seres vivos, dá um enorme salto de compreensão acerca
da dinâmica da vida. Nessa nova perspectiva, a explicação do fenômeno da
evolução, segundo Maturana, “está na mudança do modo de vida, e em sua
conservação na construção de uma linhagem de organismos congruentes com sua
circunstância, e não em desacordo com ela”. No caso dos seres humanos,
Maturana sustenta, com base em estudo de registros fósseis de 3,5 milhões de
anos, que a origem do humano está no surgimento da linguagem e no seu
entrelaçamento com a emoção, a qual constitui a base das ações humanas, ao
contrário do que pensa o senso comum que dá centralidade à razão e à
objetividade nas nossas ações, entendimento que constituiu a base do
desenvolvimento da ciência moderna, surgida nos séculos XVI e XVII na Europa.
Como ele mesmo diz, “todo sistema racional tem um fundamento
emocional”. No entanto, “pertencemos a uma cultura que dá ao
racional uma validade transcendente, e ao que provém de nossas emoções, um
caráter arbitrário.”
Maturana também sustenta que, do
ponto de vista biológico, a aceitação do outro é o que dá origem ao social como
acontece em qualquer comunidade de seres vivos. Entretanto, não é isso que
ocorre entre os humanos. As sociedades humanas funcionam a partir de uma
dinâmica de comportamentos forçados, que é o padrão da cultura patriarcal, na
qual se sustenta a visão econômica de mundo. Esse padrão de comportamento foi
reforçado ainda mais pelo chamado darwinismo social, que traz a noção de que o
mundo é uma grande arena, ideia concebida pelo filósofo, biólogo e antropólogo
inglês, Herbert Spencer, por alguns considerado o profeta do capitalismo laissez-faire,
que cunhou a expressão “sobrevivência do mais apto”. Essa é
uma versão da teoria evolutiva da seleção natural, não aceita
totalmente pelo próprio Darwin, que ultrapassou o domínio da biologia, e estendeu-se
até o âmbito cultural.
A noção de autopoiese, da mesma forma
que explica a dinâmica de qualquer comunidade de seres vivos, também deveria se
estender aos agrupamentos humanos. No entanto, a cultura patriarcal subverteu
essa dinâmica da vida e, assim, vivemos uma sociabilidade patológica nesse
sentido, uma vez que ela privilegia uma ínfima minoria da espécie humana em
detrimento de um enorme contingente de indivíduos. Nas palavras do escritor e
médico psicoterapeuta Humberto Mariotti, “uma sociedade só poderia ser
vista como autopoiética se satisfizesse a autopoiese de todos os seus
indivíduos. Logo, uma sociedade que descarta indivíduos
vivos enquanto eles ainda estão vivos, e, portanto, atual ou potencialmente
produtivos (por meio de expedientes como produção de subjetividade, exclusão
social, guerras, genocídios e outras formas de violência), é automutiladora e
portanto patológica.” Dizendo
de outro modo, somos culturalmente condicionados a viver em competição, e não
raro de forma predatória, que nega a presença do outro, enquanto biologicamente
só podemos manter nossa autopoiese e nossa congruência com o meio se aceitarmos
o outro como legítimo outro na convivência.
Nesse sentido, o que há na natureza é
uma grande coexistência de variadas formas de vida que interagem entre si e a melhor
forma para compreender essa dinâmica é por meio da noção de cooperação. No
entanto, quando à natureza se junta à cultura, esta pode se sobrepor àquela, o
que parece ter ocorrido com os seres humanos quando a cultura patriarcal se
instalou desde o neolítico. Mariotti descreve bem como tentamos inutilmente nos
projetar na natureza: “quando o homem chama determinados animais de
predadores está antropomorfizando-os, ou seja, projetando neles uma condição
que lhe é peculiar. Como não competem entre si, os sistemas vivos não-humanos
não ‘ditam’ uns aos outros normas de conduta. Mantidas as condições naturais,
entre eles não há comandos autoritários nem obediência irrestrita. Os seres
vivos são sistemas autônomos, que determinam o seu comportamento a partir de
seus próprios referenciais, isto é, a partir de como interpretam as influências
que recebem do meio. Se tal não acontecesse, seriam sistemas sujeitados,
obedientes a determinações vindas de fora.”
Portanto, a competição é um fenômeno
que pertence ao âmbito cultural. O que dá origem ao social é a aceitação da
legitimidade da existência do outro, sem a qual não poderia haver convivência
humana. Maturana, além de afirmar que “a origem antropológica do Homo
sapiens não se deu através da competição, mas sim através da cooperação”,
ainda vai mais longe quando diz que “o amor é a emoção central na
história evolutiva humana desde o início”. A palavra amor aqui está mais
associada à noção de cuidado mútuo do que a qualquer conotação cristã ou
romantizada que ela enseja no senso comum, ou seja, diz respeito à “emoção
que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da
aceitação do outro como legítimo outro na convivência”. Por isso é que
Maturana afirma, com base na biologia, que 99% das enfermidades humanas estão
relacionadas à negação do amor, na medida em que a aceitação do outro é o
fundamento biológico do fenômeno social. Como também reforça Gray, “a
saúde pode ser a condição natural das outras espécies, mas no caso dos homens o
normal é a doença. Estar cronicamente doente é parte do que significa ser
humano”.
Negação da política: a origem da
barbárie
Hoje, como já é quase um continuum na
História, a humanidade vive mais um processo de deterioração da política e, por
consequência, observamos o crescente esgarçamento do tecido social, que, via de
regra, descamba para os autoritarismos e nacionalismos acompanhados de extrema
violência contra a dignidade humana. Os horrores do século XX confirmam isso.
Aliás, segundo o historiador inglês Eric Hobsbawm, “a história é o
registro dos crimes e loucuras da humanidade”. E não poderíamos
esperar algo diferente se a cultura que permeou toda a trajetória humana nos
últimos seis ou sete mil anos foi a patriarcal.
No fundo, a humanidade é refém de uma
espécie de autobloqueio cultural, que a aprisiona em sua própria cultura e
assim não consegue ver outra forma de sociabilidade. Isso tem a ver com aquela
afirmação atribuída a Einstein de que “nós não podemos resolver um
problema, com o mesmo estado mental que o criou”. Em outras palavras,
encaramos de um modo muito natural e, portanto, sem qualquer questionamento, a
cultura em que nascemos e nos desenvolvemos, sem perceber que estamos
incongruentes com a própria condição humana, a qual nos permitiu, ao longo do
processo evolutivo do Homo sapiens, que durou em torno de 350 mil
anos, chegar até aqui. A normalização da negação do outro e, no extremo, a
banalização da violência que essa normalização gera é o padrão de sociabilidade
da cultura patriarcal. Maturana vincula esse condicionamento cultural à atual
crise civilizatória nos seguintes termos: “para os membros da
comunidade que a vivem, uma cultura é um âmbito de verdades evidentes. Elas não
requerem justificação e seu fundamento não se vê nem se investiga, a menos que
no futuro dessa comunidade surja um conflito cultural que leve a tal reflexão.
Esta última é a nossa situação atual.”
O fato é que a negação da política
está atualmente em acelerada expansão, em várias partes do mundo, como reflexo
do exarcerbamento do capitalismo por meio da doutrina neoliberal em curso nos
últimos cinquenta anos. O movimento do capitalismo a partir
desse ideário neoliberal, impulsionado pelo desenvolvimento tecnológico,
consiste, de um lado, em desarticular e suprimir as forças do Estado e, de
outro, impor o padrão empresa de sociabilidade ou, como prefere Maturana,
estamos vivenciando a “abertura para a tirania empresarial”. Por
isso é que o neoliberalismo deve ser compreendido como uma nova forma de totalitarismo, que agora se dá invertido, ou seja, sob uma
ditadura de mercado, como sustenta a filósofa Marilena Chauí. E como tal,
revela-se uma doutrina econômica fadada ao fracasso, mas não sem antes produzir
uma profunda regressão civilizatória, tendente a ser muito mais avassaladora do
que outras registradas na história, uma vez que há dois componentes novos que
potencializam e amplificam assustadoramente seus efeitos: as mudanças
climáticas e o desmoronamento dos Estados-nação, os dois fenômenos de
abrangência global. Na verdade, a humanidade coloca-se de frente com a sua
primeira crise de alcance planetário, o que leva muitos pensadores mais atentos
às múltiplas dimensões da atual crise civilizatória compararem o antropoceno
como mais um dos processos de extinção em massa que a Terra teve no passado, em
face da acentuada e acelerada perda de biodiversidade que vem sendo constatada
pela ciência nas últimas décadas.
Gray afirma que “novas
espécies de despotismos surgem em muitas partes do mundo. Governos recorrem às
mais recentes tecnologias para desenvolver técnicas hipermodernas de controle
muito mais invasivas que das tiranias tradicionais.” A nova
biopolítica que opera no tempo atual ajuda a compreender essas mudanças em
curso no sistema do capital. Com o neoliberalismo iniciado nos anos 1970,
associado à revolução dos algoritmos, que fez emergir o fenômeno da
globalização, financeirização e transnacionalização do capital, esse metabolismo
desencadeou um processo quase imperceptível de reformulação da democracia de mercado dos últimos quatrocentos anos, ampliando
ainda mais a incongruência do sistema capitalista. Estamos vivenciando, de um
lado, o declínio das democracias liberais e, de outro, o provável advento de
um capitalismo de hipervigilância como desdobramento da simbiose entre mercado
e tecnologia.
Em uma recente entrevista ao jornal
chileno La Tercera, em 30/4/2020, Maturana mostrou-se bastante
preocupado com a atual crise sanitária e ecológica e foi muito contundente em
afirmar que se não nos escutarmos e não nos encontrarmos na mútua aceitação e
na colaboração, por meio da convivência democrática, “não geraremos
mudança alguma orientada para o bem-estar da humanidade, sem pandemia viral ou
com ela, iremos direto à nossa extinção”. O sistema capitalista não só é
incompatível com a dinâmica da natureza como está deteriorando de forma muito
acelerada essa dinâmica. Na visão de Mariotti, “uma sociedade
verdadeiramente autopoiética não pode coexistir com o capitalismo de competição
predatória e de índole excludente que hoje predomina no mundo. O mesmo vale, é
claro, para o capitalismo de Estado, pelo menos o que se tem posto em prática
até agora, em regimes que não primam pelo respeito à diversidade de ideias. Se
somos determinados a partir de dentro, qualquer forma de autoritarismo é e
sempre será uma agressão.” Daí o impasse entre a biopolítica de
sustentação do capital e a dinâmica da imensa comunidade de vida, da qual nós
humanos fazemos parte, que se sustenta numa delicada teia de acoplamentos estruturais,
os quais vêm sendo rompidos desde quando inauguramos o antropoceno.
Infelizmente, a ciência e a história
não avançam de forma harmoniosa. Não é porque Maturana e outros, antes e depois
dele, descobriram melhores fundamentos para explicar a condição humana e a
realidade na qual ela se insere que o nosso modo de viver será ressignificado
para melhor. Os avanços e retrocessos que a humanidade experimentou não foram
impulsionados pela ciência e sim pela visão de mundo hegemônica em cada época histórica, a qual sempre se apropriou da ciência da forma
que melhor lhe convém para se impor, como foi o caso do darwinismo social
citado anteriormente. Como afirma Gray, “a ciência é um método de
investigação, e não uma visão de mundo”. O motor da história, desde quando
o capital tornou-se o eixo estruturador da civilização, tem sido a liberdade da
política e do mercado, este sempre submetendo aquela e, por vezes, chegando a
anulá-la. E não há sinais de que haverá uma inversão dessa dinâmica em um
horizonte próximo.
Segundo a socióloga austríaca Riane
Eisler, a partir de algum momento do neolítico, quando houve a grande
bifurcação cultural do Ocidente, os povos guerreiros indo-europeus fizeram uso
das armas para promover a passagem da “sociedade de parceria”, até
então predominante, para a “sociedade de dominação” (O
Cálice e a Espada: nossa história, nosso futuro, Palas Athena, 2008). Por
isso, talvez seja mais razoável e proveitoso compreendermos e aceitarmos que a
história da humanidade coincide com a história das regressões impostas pelo
patriarcado e, provavelmente, terá seu ápice e esgotamento na
contemporaneidade. Não há como o antropoceno ter vida longa diante dos
desacoplamentos que estão em curso.
Se os achados científicos de Maturana e de muitos outros, nessa linha
investigativa em torno da fenomenologia social, não estão sendo incorporados
pela política e pelo mercado, e tudo indica que não o serão, pelo menos nos servirão
para fornecer os fundamentos biológicos, para compreendermos a barbárie e o
colapso climático para os quais a civilização está deslizando. Com a crescente
anulação da política, já há fortes indícios de que estamos inaugurando uma fase
muito sombria da história em que o ego humano,
em suas mais destrutivas expressões, ameaça reinar absoluto, sem contrapesos
para contê-lo ou pelo menos mitigá-lo. Por isso vale sempre lembrar a
advertência do neuropsiquiatra austríaco Viktor Frankl, que sentiu na pele os
horrores do nazismo: “Portanto, fiquemos alerta — alerta em duplo
sentido: Desde Auschwitz nós sabemos do que o ser humano é capaz. E desde
Hiroshima nós sabemos o que está em jogo.”.
Segundo o poeta Thomas Eliot, “a
humanidade não suporta muita realidade”. Vista de uma certa
perspectiva, tal afirmativa não deixa de ser um grande alento. Isso porque
talvez a nova biopolítica que está sendo gestada pelas forças do capital,
lastreada nos algoritmos, que alguns acham mais adequado chamar de
tanatopolítica ou necropolítica, como o faz o filósofo camaronês Achille
Mbembe, nos conduzirá a uma realidade tão distópica e, por isso, tão insuportável
que, no fim das contas, esse esvaziamento do humano, do vital, da política, da
reflexão, da contemplação, talvez represente uma preparação para a travessia da
difícil metamorfose que poderá nos permitir resgatar a nossa humanidade
perdida. Quem sabe, uma última chance de redenção, um fragmento de esperança de
que a cultura patriarcal e os conflitos internos que ela infligiu aos humanos
seja, finalmente, dissipada e regresse ao seu estado contingencial, e que a
comunidade de vida e o amor que lhe dá sustentação retornem, depois de um longo
tempo, ao seu curso natural, como nos ensinou Humberto Maturana!
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Fonte
do artigo:
https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/maturana-sem-cooperacao-e-alteridade-nao-ha-futuro/
Crédito das Imagens
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5. Maturana
- www.sbbmch.cl.pmg
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Referências
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nosso futuro. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2007.
· FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicólogo
no campo de concentração. Tradução: Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. 2ª
ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1991.
· GRAY, John. A alma da marionete: um breve ensaio
sobre a liberdade humana. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record,
2018.
· GRAY, John. O silêncio dos animais: sobre o
progresso e outros mitos modernos. Tradução: Clóvis Marques. Rio de Janeiro:
Record, 2019.
· HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século
XX: 1914-1991. Tradução: Marcos Santarrita. 2ª ed. São Paulo: Companhia das
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· MATURANA, Humberto R. A ontologia da realidade.
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· MATURANA, Humberto R. Conversações matrísticas e
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esquecidos do humano. Tradução de Humberto Mariotti e Lia Diskin. São Paulo:
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· MATURANA, Humberto R. Emoções e linguagem na
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· MATURANA, Humberto R. Reportagem de Paulina
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<http://www.ihu.unisinos.br/598691-sem-escuta-respeito-mutuo-e-colaboracao-iremos-direto-a-nossa-extincao-adverte-humberto-maturana>
· MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J. A árvore
do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas
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· NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos: 1885 –
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