Para manter o espírito democrático — enquanto o país ainda está nas mãos de políticos insensatos, que dão as costas ao diálogo e à opinião dos cidadãos — reproduzimos o registro de uma palestra da respeitada economista, Maria da Conceição Tavares, publicado pela redação do Jornal Grande Bahia, em 18/02/2018.
A sua análise reclama maior atenção aos caminhos preparatórios às eleições de 2018. Se quisermos dizer um basta ao golpe da "democracia interrompida", está na hora de nos encorajar a encontrar nomes para a mudança do Congresso Nacional. A nossa força estará na busca de novas opções e na estratégia de consagrar indicações que mereçam o nosso apoio.
“Nunca houve elite tão ruim" — nem na ditadura. Executivo e Congresso corromperam-se, e a economia foi capturada pelas finanças. Resta
reinventar a política a partir de propostas como a Renda Cidadã".
Vivemos sob a penumbra da
mais grave crise da história do Brasil, uma crise econômica, social e política.
Enfrentamos um cenário que vai além da democracia interrompida. A meu ver,
trata-se de uma democracia subtraída pela simbiose de interesses de uma classe
política degradada e de uma elite egocêntrica, sem qualquer compromisso com um
projeto de reconstrução nacional — o que, inclusive, praticamente aniquila
qualquer possibilidade de pactuação.
Hoje,
citar um político de envergadura com notória capacidade de pensar o país é um
exercício exaustivo. O Congresso é tenebroso. A maioria está lá sabe-se bem com
que fins. O elenco de governadores é igualmente terrível — não há um que se
sobressaia. E não vou nem citar o caso do Rio porque aí é covardia. O “novo” na
política, ou o que tem a petulância de se apresentar como tal, é João Dória, na
verdade um representante da velha extrema direita.
A
ditadura — a qual devemos repudiar por outros motivos — não era tão ordinária
nesse sentido. Não sofríamos com essa escassez de quadros que vemos hoje. O
mesmo se aplica a nossos dirigentes empresariais, terra da qual não se vê
brotar uma liderança. A velha burguesia nacional foi aniquilada.
Eu nunca vi uma elite tão ruim quanto esta aqui. E no meio dessa barafunda ainda temos a Lava Jato, uma operação que começou com os melhores propósitos, e se tornou uma ação autoritária, arbitrária, que atenta contra as justiças democráticas, para não citar o rastro de desemprego que deixou em importantes setores da economia.
Eu nunca vi uma elite tão ruim quanto esta aqui. E no meio dessa barafunda ainda temos a Lava Jato, uma operação que começou com os melhores propósitos, e se tornou uma ação autoritária, arbitrária, que atenta contra as justiças democráticas, para não citar o rastro de desemprego que deixou em importantes setores da economia.
É de
infernizar a paciência que a Lava Jato tenha se tornado símbolo da moralização.
Mas por quê? Porque nada está funcionando. Ela é uma resposta à inação
política. Conseguiram transformar a democracia em uma esbórnia, em que ninguém
é responsável por nada. Não há lei ou preceitos do estado de direito que
estejam salvaguardados. O futuro foi criminalizado.
Não estou
dizendo que o cenário internacional seja um oásis. O resto do mundo não está
nenhuma maravilha, a começar pelos Estados Unidos.
Convenhamos, não é qualquer país que é capaz de produzir um Trump. Eles capricharam. Na Europa, como um todo, a situação também é desoladora. E a China, bem, a China é sempre uma incógnita… Mas, voltando ao nosso quintal, o centro medíocre se ampliou de uma maneira bárbara no Brasil.
Não há produção de pensamento contra a mediocridade, de lado algum, nem da direita, nem da esquerda. Faltam causas, bandeiras, propósitos, falta até mesmo um slogan que cole na sociedade. O mais impressionante é que não estamos falando de um processo longo, de uma ou duas décadas, mas, sim, de um quadro de rápida deterioração em um espaço razoavelmente curto de tempo. Estou no Brasil desde 1954, e jamais vi tamanho estado de letargia. Na ditadura, havia protesto. Hoje, mal se ouve um sussurro.
Convenhamos, não é qualquer país que é capaz de produzir um Trump. Eles capricharam. Na Europa, como um todo, a situação também é desoladora. E a China, bem, a China é sempre uma incógnita… Mas, voltando ao nosso quintal, o centro medíocre se ampliou de uma maneira bárbara no Brasil.
Não há produção de pensamento contra a mediocridade, de lado algum, nem da direita, nem da esquerda. Faltam causas, bandeiras, propósitos, falta até mesmo um slogan que cole na sociedade. O mais impressionante é que não estamos falando de um processo longo, de uma ou duas décadas, mas, sim, de um quadro de rápida deterioração em um espaço razoavelmente curto de tempo. Estou no Brasil desde 1954, e jamais vi tamanho estado de letargia. Na ditadura, havia protesto. Hoje, mal se ouve um sussurro.
Por outro
lado, também não se acham soluções pela economia, notadamente o setor
produtivo. A indústria brasileira “africanizou”, como há muito já previra o
saudoso Arthur Candal. Rendemo-nos à financeirização, sem qualquer resistência.
A ideia do Estado indutor do desenvolvimento foi finalmente ferida de morte
pela religião de que o Estado mínimo nos levará a um estado de graça da
economia. Puro dogma. Estamos destruindo as últimas forças motrizes do
crescimento econômico, e da intervenção inclusiva e igualitária no social.
Essa
minha indignação — por vezes misturada a um indesejável, mas inevitável estado
de pessimismo — poderia ser atribuída a minha velhice. Mas não acho que seja
não. Estou velha há muito tempo. Luto para não me deixar levar pelo ceticismo.
Não é simples pelo que está diante de meus olhos.
Lamento,
mas não me dobro; sofro, mas não me entrego. Jamais fugi ao bom combate e não
seria agora que iria fazê-lo. Há saídas para esse quadro de entropia nacional e
estou convicta de que elas passam pelas novas gerações. Como diria Sartre, não
podemos acabar com as ilusões da juventude. Pelo contrário, temos de
estimulá-las, incuti-las. Por ilusão, em um sentido não literal — entenda-se a
capacidade de mirar novos cenários — a profissão de fé de que é possível, sim,
interferir no status quo vigente o forte desejo de mudança, associado ao
frescor, ao ímpeto e ao poder de mobilização necessário para que ela ocorra. Só
consigo enxergar alguma possibilidade de cura desse estado de astenia, e de
reordenação das bases democráticas, a partir de uma maciça convocação e ação dos
jovens.
Por mais
íngreme que seja a caminhada, não vislumbro saídas que não pela própria
sociedade, notadamente pelos nossos jovens. Não os jovens de cabeça feita,
pré-moldada, como se fossem blocos de concreto empilhados por mãos alheias.
Esses, mal chegaram e já estão a um passo da senectude. Estou me referindo a
uma juventude sem vícios, sem amarras, de mente aberta, capaz de se indignar e de construir um saudável contraponto a essa torrente de reacionarismo que se
espraia pelo país. Há que se começar o trabalho de sensibilização já, mas
sabendo que o tempo de mudança serão décadas, sabe-se lá quantas gerações.
Não consigo
vislumbrar outra possibilidade para sairmos dessa geleia geral, dessa ausência
de movimentos de qualquer lado, qualquer origem, seja de natureza política,
econômica, religiosa, senão por uma convocatória aos jovens. Até porque, se não
for a juventude, vai se falar para quem? Para a oligarquia que está no poder?
Para a burguesia cosmopolita — que foi a que sobrou — com sua conveniente e
perversa indiferença? Para uma elite intelectual rarefeita e um tanto quanto
aparvalhada?
Ao mesmo
tempo, qualquer projeto de costura dos tecidos do país passa, obrigatoriamente, pela restauração do Estado. É urgente um processo de rearrumação do aparelho
público, de preenchimentos das graves lacunas pensantes. Nossa própria história
nos reserva episódios didáticos, exemplos a serem revisitados.
Na década de 30 — durante o primeiro governo de Getúlio Vargas — guardadas as devidas proporções, também vivíamos uma dura crise. Não íamos a lugar algum. Ainda assim, surgiram medidas de grande impacto para a modernização do Estado, como, por exemplo, a criação do Dasp - Departamento Administrativo do Serviço Público, comandado por Luis Simões Lopes.
Na década de 30 — durante o primeiro governo de Getúlio Vargas — guardadas as devidas proporções, também vivíamos uma dura crise. Não íamos a lugar algum. Ainda assim, surgiram medidas de grande impacto para a modernização do Estado, como, por exemplo, a criação do Dasp - Departamento Administrativo do Serviço Público, comandado por Luis Simões Lopes.
Na
esteira do Dasp, cabe lembrar, vieram os concursos públicos para cargos no
governo federal, o primeiro estatuto dos funcionários públicos do Brasil, a
fiscalização do Orçamento. Foi um soco no estômago do clientelismo e do
patrimonialismo. O Dasp imprimiu um novo modus operandi de organização
administrativa, com a centralização das reformas em ministérios e departamentos, e a modernização do aparato administrativo. Diminuiu também a influência dos
poderes e interesses locais. Isso para não falar do surgimento, nas fileiras do
Departamento, de uma elite especializada, que combinou altíssimo valor e
conhecimento técnico ao comprometimento com uma visão reformista da gestão da
coisa pública.
Faço esse
pequeno passeio no tempo para reforçar que nunca fizemos nada sem o Estado. Não
somos uma democracia espontânea. O fato é que, hoje, o nosso Estado está muito
arrebentado. Dessa forma, é muito difícil fazer uma política social mais ativa.
Não é só falta de dinheiro. O mais grave é a falta de capital humano. O que se
assiste, hoje, é um projeto satânico de desconstrução do Estado, vide Eletrobras,
Petrobras, BNDES…
RESTAURAÇÃO
O Estado
sempre foi a nobreza do capital intelectual, da qualidade técnica, da capacidade de formular políticas públicas transformadoras. O que se fez no
Brasil é assustador, uma calamidade. É necessário um profundo plano de
reorganização do Estado— até para que se possa fazer políticas sociais mais
agudas.
Chegamos, a meu ver, a um ponto de bifurcação da história: ou temos um movimento reformista ou uma revolução. A primeira via me soa mais eficiente e menos traumática. Ainda assim, reconheço, precisaremos de doses cavalares do medicamento para enfrentarmos tão grave enfermidade. Os sintomas são de barbárie. Parece um fim de século, embora estejamos no raiar de um. Em uma comparação ligeira, lembra o começo do século XX. Os fatos levaram às duas Guerras Mundiais. Aliás, a guerra, ainda que indesejável, é uma maneira de sair do impasse.
Chegamos, a meu ver, a um ponto de bifurcação da história: ou temos um movimento reformista ou uma revolução. A primeira via me soa mais eficiente e menos traumática. Ainda assim, reconheço, precisaremos de doses cavalares do medicamento para enfrentarmos tão grave enfermidade. Os sintomas são de barbárie. Parece um fim de século, embora estejamos no raiar de um. Em uma comparação ligeira, lembra o começo do século XX. Os fatos levaram às duas Guerras Mundiais. Aliás, a guerra, ainda que indesejável, é uma maneira de sair do impasse.
Por isso,
repito: precisamos de uma ação restauradora. O que temos hoje, no Brasil, não é
uma feridinha à toa que possa ser tratada com um pouco de mertiolate ou coberta
com um esparadrapo. O Estado e a sociedade brasileira estão em uma mesa de
cirurgia. O corte é profundo, órgãos vitais foram atingidos, o sangramento é
dramático. Este rissorgimento não deverá vir das urnas. Não
vejo a eleição como um evento potencialmente restaurador, capaz de virar a
página, de ser um marco da reconstrução.
Com o
neoliberalismo não vamos a lugar algum. Sobretudo porque, repito:
historicamente o Brasil nunca deu saltos, senão com impulsos do próprio Estado. Os últimos dois anos têm sido pavorosos, do ponto de vista econômico, social
e político. Todas as reformas propostas são reacionárias, da trabalhista à
previdenciária. Vivemos um momento de “acerto de contas” com Getúlio, com uma
sanha inquisidora de direitos sem precedentes.
Trata-se
de um ajuste feito em cima dos desfavorecidos, da renda do trabalho, da
contribuição previdenciária, da mão de obra. O Brasil
virou uma economia de rentistas, o que eu mais temia. É necessário fazer uma
eutanásia no rentismo, a forma mais eficaz e perversa de concentração de
riquezas.
RENDA MÍNIMA
Causa-me
espanto que nenhum dos principais candidatos à Presidência esteja tratando de
uma questão visceral, como a renda mínima, proposta que sempre teve no
ex-senador Eduardo Suplicy, seu mais ferrenho defensor e propagandista no
Brasil. Suplicy foi ridicularizado, espezinhado por muitos, chamado de um
político de uma nota só. Não era, mas, ainda que fosse, seria uma nota que
daria um novo tom à mais trágica de nossas sinfonias nacionais: a miséria e
desigualdade.
Mais uma
vez, estamos na contramão do mundo, ao menos do mundo que se deve almejar. Se,
no Brasil, a renda mínima é apedrejada por muitos, mais e mais países centrais
adotam a medida. No Canadá, a província de Ontário deu a partida, no ano passado, a um projeto piloto de renda mínima para todos os cidadãos, empregados ou não.
A Finlândia foi pelo mesmo caminho, e começou a testar um programa também em
2017. Ao que se sabe, cerca de dois mil finlandeses passaram a receber algo em
torno de 500 euros por mês. Na Holanda, cerca de 300 moradores da região de
Utrecht passaram a receber de 900 euros a 1,3 mil euros por mês. O nome do
programa holandês é sugestivo: Weten Wat Werkt (“Saber o que funciona”).
Funcionaria para o Brasil, tenho certeza.
O modelo
encontrou acolhida até nos Estados Unidos. Desde a década de 80, o Alasca paga
a cada um de seus 700 mil habitantes um rendimento mínimo chamado Alaska
Permanent Fund Dividend. Os recursos vêm de um fundo de investimento lastreado
nos royalties do petróleo. É bom que se diga que dois dos fundamentalistas do
liberalismo, os economistas F. A. Hayek e Milton Friedman, eram defensores da
renda básica e até disputavam a primazia pela paternidade da ideia. Friedman
dizia que a medida substituiria outras ações assistencialistas dispersas.
No
Brasil, o debate sobre a renda básica prima pela sua circularidade. O
Bolsa-Família foi uma proxy de uma construção que não avançou. Segundo o FMI, a
distribuição de 4,6% do PIB reduziria a pobreza brasileira em espetaculares
11%.
Essa é
uma ideia que precisa ser resgatada, uma bandeira à espera de uma mão. Entre os
candidatos à presidência, só consigo enxergar o Lula como alguém identificado
com a proposta. Se bem que a coisa está tão ruim que, mesmo que ele possa se
candidatar e seja eleito, teria enorme dificuldade de emplacar projetos
realmente transformadores. O PT não tem a força suficiente; os outros partidos
de esquerda não reagem.
Lula sempre foi um grande
conciliador. Mas um conciliador perde o seu maior poder quando não há
conflitos. E uma das raízes da nossa pasmaceira, desta letargia, é justamente a
ausência de conflitos, de contrapontos. Não tem nada para conciliar. Mais do
que conflitiva, a sociedade está anestesiada, quase em coma induzido. O que faz
um pacificador quando não há o que pacificar?
Créditos das imagens
1 - Foto na UFMG.org - www.noticias.uol.com.br/album/2012/12/19
2 - Foto do texto reproduzido - de Antônio Pinheiro
3 - Foto de Jane Araújo - Jornal de Brasília
4 - www.oglobo.globo.com
5 - Foto em: www.interprestesdobrasil.org/site
6- A economista, com a então presidente Dilma Rousseff, em: Pensata - Rodrigo Almeida.
7 - Com o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, no Rio de Janeiro - foto de Ricardo Stuckert - 21/06/2016.
2 - Foto do texto reproduzido - de Antônio Pinheiro
3 - Foto de Jane Araújo - Jornal de Brasília
4 - www.oglobo.globo.com
5 - Foto em: www.interprestesdobrasil.org/site
6- A economista, com a então presidente Dilma Rousseff, em: Pensata - Rodrigo Almeida.
7 - Com o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, no Rio de Janeiro - foto de Ricardo Stuckert - 21/06/2016.
Nota: As imagens aqui publicadas pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma delas e deseja que seja removida deste espaço, por favor entre em contato com: vrblog@hotmail.com