Chegamos a 2020. No meu escritório organizo os meus papeis e tomo nota dos compromissos para o ano que se inicia. Reescrevo telefones e endereços nas novas agendas físicas, como todos os anos. Não as dispenso, mesmo reconhecendo a facilidade que nos traz as agendas virtuais.
Entre os papeis a organizar tive a alegria de encontrar um recorte de jornal amarelado. Era um texto de alguém que se foi, mas que ficou muito presente entre nós: Betinho - Herbert de Souza. Lendo-o, percebi que não poderia encontrar melhor presente de Ano Novo para os leitores do Espaço Poese. Parece-me algo escrito hoje, para os nossos dias, sem tirar nem pôr. Fala-nos do que acontecera décadas atrás – em tempos de ditadura e resistência. Em suas considerações, encontro recados também para os dias de hoje. Betinho nos comove na sua profundidade poética e no seu amor por este país, partícipe que é da sua história.
Vejo-o agora, a nos confirmar caminhos de resistência. Não é isso que muitos têm buscado, cotidianamente? Gente que reinventa gestos, ideias, músicas e tantas outras expressões artísticas, esforços de encontros e reencontros, em busca de refazer e de manter o delicado tecido da nossa cultura usurpada, abandonada, delapidada. E, igualmente, no mundo da Educação e da Comunicação.
Continuemos apoiando e participando desses tantos gestos, diálogos, filmes e teatros para os dias de agora, como então. Segue o texto.
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“Tudo se resolve na criação. É na invenção que o tempo volta atrás e o atrás vai para frente. (...) É onde eu sou Guimarães, você é Rosa. É onde fica como dantes ou tudo muda num átimo. (...) É pela brecha da cultura que podemos dar o salto para o reencontro do país com a sua cara.”
O PODER
TRANSFORMADOR
DA CULTURA
Por: Herbert de Souza - Betinho
Reprodução de artigo publicado na Folha de São Paulo, em 27/09/1993.
Primeiro tocou a orquestra. Depois as cortinas se abriram e comecei a cantar. Tinha nas mãos a letra de “Apesar de Você”, hino de resistência à ditadura que, em algum momento, todos nós tínhamos cantado nas ruas, nas praças, nos bares, nas esquinas. Difícil mesmo era entender, sob os holofotes do Teatro Municipal e à luz da razão, a emoção de estar ali.
Na coxia, mais de 500 artistas se preparavam para entrar em cena e, fosse por música, canto, dança, teatro, começar a mudar este país. Mudar no imaginário, na fantasia, na criação. Mudar no faz-de-conta, no palco, na loucura. Mas quanto há de loucura em querer mudar este país?
Durante as cinco horas de espetáculo que se seguiram, mudar se provou possível. Transformar na fantasia é o primeiro passo para transformar na realidade, é provar que recriar o Brasil é preciso e possível. Em cada cena, a cada um de nós, espectadores da imaginação alheia, nos encantávamos com um espetáculo que, além de todas as suas proezas, nos mostrava o quanto pode o mundo da cultura.
Estávamos em meados de maio quando, numa primeira reunião no restaurante do Teatro Municipal, cerca de 30 significativos representantes de todas as áreas aceitaram o desafio. Fazer arte contra a fome, fazer fome virar arte. Carregava então a mesma convicção que me move ainda. A de que um país muda pela sua cultura, não pela sua economia nem pela política, nem pela ciência.
Aos poucos, os artistas começaram a se organizar, discutir, divergir, construir e reconstruir ideias, vontades, desejos, sonhos. Foram meses de dedicação. Mas, mais importante do que o tempo entregue a cada discussão, foi dedicar cada arte, cada gesto, cada tom, cada som ao outro, à solidariedade. O gesto de dar, de entregar, de somar. Não apenas exibir, mas doar e oferecer.
A cultura está entre nós, sempre. É no campo da consciência que o mundo se faz ou se desfaz, é nesse universo da imagem, do som, da ação, da ideia. Tudo se resolve na criação. É na invenção que o tempo volta atrás e o atrás vai para frente. É onde o homem vira bicho, bicho conversa com gente. É onde eu sou Guimarães, você é Rosa. É onde fica como dantes ou tudo muda num átimo. É onde você se entrega de mãos amarradas ou se rebela de faca no dente. É onde o silêncio vira pedra ou o grito rompe tudo e esparrama vida por todos os poros. E onde o risco chora e o choro é o começo da cura.
Foi o mundo da cultura que primeiro aceitou o desafio de mudar. De criar um outro Brasil. Sem pobreza e sem a arrogância dos ricos. Um Brasil totalmente simples, mas radicalmente humano. Um Brasil onde todos comam todos os dias, trabalhem, ganhem salários, voltem para casa e possam rir, beijar a mulher que ama, a filha que emociona, abraçar o amigo na esquina, se ver no espelho sem chorar pelo que não realizou.
Esta mudança começou a ser feita. Com sons, imagens, ações, ideias, emoções. Esta mudança começou a ser feita com gente. E gente é, antes de tudo, cultura. Caldo de gente é cultura. Sumo de gente é esta parte divina que cada diabo carrega dentro de si. O mundo imaginário é onde, do duelo entre Deus e o diabo, não é possível prever o resultado. E é pela brecha da cultura que podemos dar o salto para o reencontro do país com a sua cara. Buscar o que é grande em cada um, buscar a possibilidade de fazer a felicidade o pão nosso de cada dia. É esta a vida e a nossa busca. É esta a fome e a nossa morte.
A cultura apareceu para construir no campo arrasado, para levantar do chão tudo que foi deitado. E descobrir, enquanto é tempo, que o importante é ser cidadão, é ser gente. O que importa é alimentar gente, educar gente, empregar gente. História é gente. Brasil é gente. E descobrir e reinventar gente é a grande obra da cultura. Uma obra que será nossa. Será porque a cultura continua a pensar, discutir, reunir, transformar. A arte tem o poder de transformar, nem que seja primeiro na ficção, na imaginação.
Terminado o espetáculo, de volta aos bastidores, o mundo da cultura está desafiado a continuar pensando, fazendo, mexendo, revolucionando. Até aqui, foi grande. Mas o grito deve ecoar sem parar, o gesto feito deve continuar entrelaçando ações, abraçando em solidariedade.
Uma nova consciência deve criar o mundo novo e enterrar a miséria e a exclusão para sempre. Uma cultura que busque no fim de cada atalho uma reta. Que busque em cada ponta de sofrimento uma alegria. Que busque em cada despedida o reencontro.
O Brasil está aí para ser criado, recriado. Esta criação apenas começou. E a ação de criar e recriar é a nossa cultura.
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Crédito das imagens:
1. O Brasil de Betinho - Símbolo de cidadania - https://ibase.br/pt/betinho/
2. Betinho - www.pt.wikipedia.org.jpg
3. Circo Voador - www.ctb.org.br.jpg
4. Sesc - www.issuu.com.jpg
5. Betinho - www.nossacausa.com.jpg
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