
Tenho a convicção que a ética carece de um lastro de educação, não tanto aquela "ensinada" nas prescrições escolares ou na família, mas a educação do gesto cordial e do testemunho, em casa, na escola, no trabalho, nas instituições e nos serviços públicos e privados.
Isto vem a propósito do lançamento do filme ‘Que horas ela volta?’ da cineasta brasileira Anna Muylaert, de quem apresento trechos de uma entrevista aos jornalistas Claudia Rocha e Guilherme Weimann, reportada no site Brasil de Fato, em 18/09/2015.[1]

É extremamente verdadeiro o comentário dos jornalistas, quando dizem que o filme "coloca o dedo na ferida das relações entre empregados e patrões". Fiquei impressionada quando, no cinema do Plaza, em Recife, muitos espontaneamente bateram palmas de aprovação, ao terminar o filme.
Fui assistir com a minha empregada – uma estudante do último ano do magistério – a quem tenho apoiado para que possa concluir o curso médio após muitos anos longe da escola, embora as aulas sejam pela manhã.
Na minha decisão, não me pareceu haver diferença se os serviços da casa são feitos ao longo da manhã ou da tarde, especialmente se com este meu gesto o país ganha mais uma candidata à universidade e à profissão de educadora. Após o filme, ela me confirmou sua decisão de trazer sua única filha – que vive com a avó, no interior – para estudar no Recife. Há de se prever que ela entrará na faculdade.
O filme alcança um lugar especial ao lado de produções brasileiras como o “Central do Brasil” (Walter Salles – 1998) estrelado pela grande atriz Fernanda Montenegro. Considero que Regina Casé (a empregada Val, na história) por sua experiência artística, e também por ser uma nordestina enraizada, tenha contribuído para que a obra chegasse a um feliz resultado. Anna Muylaert conseguiu expressar a beleza e a força da cultura nordestina, e também os vícios do preconceito e da insensatez da classe alta encantada de si mesma.
Os comentários da mídia, por vezes enxerga em Jéssica – Camila Márdila, a filha de Val – uma pessoa metida, que não sabe perceber o seu lugar... A diretora do filme fala sobre isto, em alguns trechos da entrevista citada:
“Brasil de Fato SP - Quando você teve a ideia do filme, o objetivo era ter o foco no retrato das relações humanas ou a ideia já era debater questões políticas?

Durante muitos anos o caminho era igual, a filha vinha para cá ser cabeleireira e acabava como doméstica, assim como a mãe. Eu me determinei a mudar isso. A partir do primeiro dia em que apresentei a ideia, a associação com o retrato do período pós-Lula foi imediata. O filme estava mais enraizado na realidade do que eu achava. Ganhador do Festival de Berlim e com premiação também em Sundance (Sundance Festival Films – USA), o filme é a representação brasileira na disputa pelo Oscar.
Brasil de Fato SP - Falando um pouco sobre essa nova realidade, que foi alterada devido aos diversos programas sociais implantados na última década, você acredita que houve uma mudança na autoestima do brasileiro?

Brasil de Fato SP - Uma jovem, que também se chama Jéssica, publicou um artigo no blog “Nós da Periferia” relatando as semelhanças da sua história com a Jéssica do filme. Como está sendo a recepção do público?

No início, eu tinha a intenção de oferecer desconto para domésticas que apresentassem o cartão de trabalho. Mas, na primeira reunião, meu distribuidor descartou a ideia porque a patroa se sentiria mal em sentar ao lado da empregada. No mercado capitalista, Que horas ela volta? é um filme de arte. Apesar disso, estamos provando o contrário.
Brasil de Fato SP - Você afirmou em algumas entrevistas que o roteiro começou a ser elaborado logo após o nascimento do seu segundo filho. Como foi esse processo?
Anna Muylaert - O roteiro nasceu do amor pelo meu filho. Eu já tinha feito Castelo Rá-Tim-Bum e vários outros trabalhos, mas quando eu tive o bebê surgiu uma força que me fez decidir que não iria mais trabalhar por um tempo. Eu fiquei dois anos sem trabalhar, mas felizmente vieram os livros do Castelo Rá-Tim-Bum, que me renderam quatro ou cinco vezes mais do que o salário na TV Cultura, e me possibilitaram continuar trabalhando em casa. Eu senti que o processo da maternidade me faria crescer e me entreguei completamente. (...) Mas, por que a maternidade não é valorizada? Justamente porque a nossa sociedade exalta apenas o masculino. Muita mulher, e acho que eu não tive isso porque havia acabado de fazer sucesso, fica agoniada em casa enquanto o mundo lá fora está girando. Porque o sinônimo do mundo é sucesso, poder e riqueza, enquanto o da maternidade é amor, carinho e espiritualidade. Senti que isso é um tema muito forte, porque o mundo inteiro é regrado pelas leis masculinas, que são machistas”.
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A cineasta brasileira soube trabalhar com esse tema com apreciável solidariedade e profunda compreensão. Não só por ser mulher, mas por ter demonstrado profundeza, sensibilidade e sabedoria de enxergar os caminhos históricos e políticos que percorremos, no Brasil, um tempo em que os pobres estão podendo assumir suas escolhas - por eles próprios - e alcançar seus direitos antes negados. Assim, também eles estarão a contribuir - a partir de sua própria experiência - na construção da solidariedade e da fraternidade no mundo contemporâneo.
[1] www.brasildefato.com.br
Créditos imagens:
1. Foto de Anna Muylaert - Guilherme Weinmann
2. Fotos do filme - imagens de divulgação.
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