“A esperança é o único antídoto contra o que nos sufoca”, diz Rosana Pinheiro-Machado no seu livro “Amanhã vai ser maior.
Cientista social e
antropóloga, Rosana Pinheiro-Machado pesquisa economia informal, pobreza
e desenvolvimento na China e no Brasil. É colunista do jornal The Intercept
e atualmente leciona
no Departamento de Ciência Política e Sociais da Universidade de Bath, no Reino
Unido. Escreve textos de
opinião sobre a conjuntura social e política do Brasil. É uma
acadêmica feminista e luta por um ensino superior livre de abusos, mais
justo, horizontal e inclusivo. Publica textos de opinião em jornais e revistas,
e tem uma incrível presença nas redes sociais. Ainda desenvolve projetos
sociais nas periferias como, por exemplo, a fundação na Escola Comum, visando desenvolver
capital humano entre jovens de baixa renda.
O texto abaixo é
do último capítulo do livro lançado em 2019: “Amanhã vai ser maior”, Editora
Planeta. Para manter o padrão do número de páginas das nossas postagens, em
raros casos cortamos alguns trechos.
QUANDO NOAM CHOMSKY foi
questionado se ainda era possível ser otimista sobre o futuro da humanidade,
ele respondeu que podemos ser pessimistas, desistir e esperar que o pior
aconteça. Outra opção – a dele – é aproveitar as oportunidades que de fato
existem e ajudar a fazer o mundo um lugar melhor para se viver. Assim como a
raiva e a agressão são expressões da natureza humana, a simpatia, a
solidariedade, a gentileza e a preocupação com os outros também são. Há muita
resistência contra a brutalidade humana e contra o autoritarismo. Tal
resistência, segundo ele, precisa crescer e se tornar uma fonte de esperança
para a nossa espécie.
No Brasil de
hoje, o derrotismo tende a tomar conta de todas as esferas da vida social.
Lamentamos a vitória da extrema-direita, não enxergamos saídas e deixamos que
essa angústia nos imobilize. Uma alternativa – apontada no livro – é transmutar
a dor em luta, e fazer da esperança uma opção política. A sensação de derrota é
inevitável, porque é real e necessária, para a reflexão de como chegamos até
aqui. O livro tenta fornecer algumas pistas sobre uma tragédia que já estava em
curso. Todavia, o que ocorreu no Brasil não se deu em função de um surto
coletivo, mas de um não rompimento com nosso passado autoritário e com as
estruturas que perpetuam a desigualdade. Não fizemos o debate necessário sobre
memória e justiça das atrocidades da ditadura e não diminuímos a brutal
distância que separa pobres e ricos no país (apesar de termos avançado de
maneira significativa na redução da pobreza e na mobilidade social).
A esperança é o
único antídoto contra o que nos sufoca. Como colocou o filósofo Ernst Bloch - na
abertura de sua obra “The Principles of Hope” (Os princípios da esperança) - a
esperança é algo que precisa ser aprendido. Ao contrário do medo, ela é
apaixonada pelo sucesso de uma causa, não pelo fracasso. É superior ao medo,
pois não é passiva. A emoção da esperança, ao invés de confinar, amplia os
sujeitos.
Um dos
intelectuais que melhor falou sobre esse tema foi aquele cuja memória é hoje
atacada, cujo legado gigante se tenta apagar e criminalizar. “Pedagogia
da Esperança” é uma das últimas obras escritas “com raiva e com amor”
por Paulo Freire, em 1992. No seu livro, ele se recusa a se
acomodar aos discursos pragmáticos da economia e se adaptar aos fatos,
especialmente diante daqueles que diziam que sonho e utopia eram inúteis e
inoportunos. Quando perguntado como ter esperança num mundo que nos asfixia,
ele respondeu que a democratização da sem-vergonhice - que tomava conta do país
e que desrespeitava a coisa pública – produzia o efeito reverso: jovens
começavam a protestar por todos os lados, tomando as praças públicas. Ele era
capaz de ver esperança nas ruas, nos corpos e em cada um de nós.
Para Paulo
Freire, é preciso reconhecer a desesperança como algo concreto, bem como
entender as razões históricas, econômicas e sociais que a produzem: os abusos
de poder, extorsões, os ganhos ilícitos, os tráficos de influências, o uso do
cargo para satisfação de interesses pessoais. Mas Freire segue lembrando que a
esperança é uma necessidade vital. A existência humana e a luta por uma
sociedade melhor não podem ocorrer sem esperança e sem sonho. A desesperança é
esperança que perdeu o rumo. Como programa, a desesperança imobiliza e faz
sucumbir no fatalismo, impossibilitando de juntar as forças indispensáveis ao
embate político.
Paulo Freire falava da juventude nas ruas
como um sinal de uma nova geração mais comprometida. Como ele escreveu em 1992,
é possível supor que se referia às manifestações pelo impeachment de Fernando
Collor. A conclusão mais óbvia que podemos tirar disso é que uma juventude
progressista por si só não é suficiente para mudar o conservadorismo. Ou seja,
os jovens crescem e muitas vezes se ajustam às estruturas dominantes do país.
Isso não é uma inverdade. Estamos aqui, quase três décadas depois, vivenciando
as consequências de um golpe que depôs a primeira presidenta a governar o país,
culminando em um dos governos mais reacionários de nossa história.
Eu comecei a ir
às ruas sem a presença de meus pais em 1992. Penso que a geração pós-junho de
2013 é muito mais politizada e radical do que a que marchou comigo em minha
adolescência. Se antes tínhamos um grêmio estudantil por escola e um Diretório
Central dos Estudantes (DCE) por universidade, hoje temos uma quantidade
infindável de coletivos em cada instituição de ensino. Via organização on-line
e off-line, os jovens de hoje são mais sensíveis e mobilizados nas questões de
raça, gênero e sexualidade. Eles também são mais radicalmente afetivos,
contestando as estruturas de opressão que se reproduzem entre os próprios
aliados, colegas e companheiros. Contudo, como já comentei, a pura fé na
próxima geração não se sustenta. De um lado, grupos organizados como o MBL
disputam espaço de maneira feroz nos grêmios estudantis do Brasil. De outro
lado, o próprio processo de ajustamento à vida adulta – o trabalho e a família
– é alienante. Por isso é tão importante que todos lutemos em todas as frentes
para garantir o futuro desses jovens em uma democracia. (...)
Minha forma de
traduzir o pensamento sobre esperança para o Brasil de hoje é fincando o pé na
terra firme, e em tudo o que já existe em forma de luta e de arte. Fortalecendo
e articulando os antigos movimentos e os novos coletivos, e, também, criando
novos espaços para reforçar o cordão de resistência democrática. Não é preciso
reinventar a roda, mas é crucial rever nossas vanguardas.
Frequentemente,
eu escuto que o povo brasileiro já deveria ter tomado as ruas, que estamos
imobilizados. Eu não concordo com essa afirmação. Grandes marchas, ainda que
fundamentais, não são a única forma de resistir. Professores, estudantes,
artistas, movimentos camponeses, quilombolas, indígenas, coletivos de favelas,
funcionários públicos…
Por todos os
lados, encontramos atos, protestos, indignação, reação e renovação. Em plena
aliança de Bolsonaro com os grandes proprietários rurais, a Marcha das
Margaridas de 2019 reuniu 100 mil mulheres camponesas em Brasília. Quando a
prefeitura do Rio de Janeiro censurou os livros de temática LGBT na Bienal do
Livro de 2019, uma multidão de jovens reagiu e – com a ajuda do youtuber
Felipe Neto, que comprou 14 mil exemplares – transmutou um ato de censura
em um ato de protesto, afeto e amor aos livros. A iniciativa #TinderDosLivros,
de Winnie Bueno, já doou cerca de 1000 livros a estudantes negros
em uma rede descentralizada e autogestada, movida exclusivamente pela solidariedade.
Os programas educacionais Rede Emancipa e o Emancipa Mulher
atraem milhares de alunos que buscam formação pré-vestibular ou feminista e
antirracista. Há slams surgindo em todas as quebradas. (...)
Não se cria um mundo novo sem reverter a pane de imaginação que
o neoliberalismo e o autoritarismo provocam.
Há algo muito
potente – e inspirador – na rejeição dessas mulheres à figura do presidente.
Intelectuais como Patrícia Hill Collins e Angela Davis, entre
muitas outras, vêm
chamando atenção para a importância da articulação com as mulheres negras, por
exemplo, porque são elas as mais vulneráveis e oprimidas pelo sistema
dominante. Na mesma direção, a pesquisadora e ativista Winnie Bueno
defende que os processos de resistência constituídos por essas mulheres são
fundamentais para a construção de mudanças sociais eficazes para a
transformação social. Portanto, é junto a elas que precisamos resistir em
tempos de profunda crise.
O mesmo pode ser
dito sobre os indígenas – que hoje são os grupos tidos como inimigo
número um de Bolsonaro. A ex-candidata a vice-presidente da república pelo
PSOL, Sônia Guajajara, ao mesmo tempo em que tem alertado para o
crescente extermínio dos povos indígenas no atual governo, reforça sempre a
importância de renovar estratégias de lutas, como articular apoio internacional
e incentivar boicote à produtos do agronegócio.
Diante de todos
esses exemplos, penso que a esquerda institucional precisa de um horizonte
para sonhar e, consequentemente, construir. Talvez falte à essa
esquerda investir na potencialidade das minas dos slams, nas novas
lideranças eleitas, nos frutos de Marielle. Talvez falte ceder lugar a
novas práticas políticas e figuras da política que estejam conectadas com as
formas de luta emergentes do século 21. Talvez falte simplesmente deixar que o
novo assuma o seu lugar.
A deputada
federal Áurea Carolina, do PSOL de Minas Gerais, em uma
coluna para o Nexo, em agosto de 2019, escreveu que o movimento vira-voto
nas eleições de 2018 foi um exercício de cura da pulsão bolsonarista.
Com humildade, saímos às ruas para uma conversa desarmada com as pessoas.
Rompemos com a lamentação e assumimos nossa responsabilidade de ação. Não foi
suficiente para reverter a vitória de Jair Bolsonaro, mas algo se criou na
própria disposição ao diálogo. Áurea Carolina reflete sobre a
importância de sair da lamúria e do adoecimento a partir de um comprometimento
prático e propositivo, que deve ter o espírito do “vira-voto” que rompeu
com a ordem individualista e competitiva e restabeleceu o princípio democrático
de amor e convivência na diversidade.
A esquerda
institucional precisa de um horizonte para sonhar e, consequentemente,
construir.
Mataram Marielle,
é verdade. E nada pode ser, simultaneamente, tão concreto e simbólico da mais
opaca e brutal realidade de nossos tempos. Mas sua irmã, Anielle Franco,
e sua família estão incansavelmente, todos os dias, resistindo em plena dor
para resgatar e dar continuidade ao seu legado de lutas. Quais razões temos
para não fazer o mesmo?
As acadêmicas
feministas e ativistas Lola Aronovich e Debora Diniz são todos os
dias perseguidas e ameaçadas de morte da forma mais vil que se pode imaginar
por grupos masculinistas de extrema-direita. Elas seguem na luta mais do que
nunca. Quais razões temos para não fazer o mesmo?
Em tempos sombrios de avanço
conservador, de alienação, de medo do autoritarismo e de individualismo atroz
que causa uma crise de autovalor e de sentido nos indivíduos, estar no
coletivo é uma forma de resistir, de lembrar que, apesar de tudo, somos
animais sociais. Juntos nos fazemos vivos e lutamos contra a vontade de
morte, arma e tortura. Estamos respirando, com nossos sentidos e senso de
justiça aguçados.
Do colapso, reconstroem-se
mundos e modos de vida. Enquanto estivermos em pé, nossa utopia se chamará
esperança, a esperança se transformará em luta e a luta será o próprio amanhã
maior e melhor.
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Fonte do texto: https://theintercept.com/2019/11/26/esperanca-antidoto-extrema-direita-amanha-vai-ser-maior/?utm_source=
Crédito das Imagens:
1. Foto da autora - www.brasil.elpais.com
2. Imagem manifestação de mulheres - Carta Capital - 08.03.2019
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