
O autor do artigo é o jornalista Andre Oliveira.
Convidada da Flip, a poetisa Maria Teresa Horta, fundiu a luta feminista à sua literatura.
Na altura de lançar seu primeiro livro de poesias, 'Espelho Inicial', em 1960, a escritora portuguesa Maria Teresa Horta ouviu de seu pai: “Tem cuidado com o que vais publicar, porque usas o meu nome”. Foi aí, talvez, que ela descobriu, pela primeira vez, que às mulheres nem o nome era permitido e que ser autora já representava uma transgressão por si só, no Portugal salazarista em que vivia. Hoje, aos 80 anos, Teresa Horta tem mais de duas dezenas de livros entre poesia e ficção publicados, continua trabalhando incansavelmente e é também a mais nova autora anunciada na programação da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que acontece no final de julho.
“Foi a primeira pessoa que tentamos trazer para a Flip deste ano, em uma mesa especial, um encontro com a autora para falar sobre sua trajetória. Infelizmente, ela não pode viajar de avião por questões de saúde, então decidimos fazer sua participação via vídeo”, diz Josélia Aguiar, curadora do evento literário.
O encontro terá a presença de outras duas
escritoras, ainda não divulgadas, que irão dialogar com Teresa Horta
através de vídeos previamente gravados em Lisboa, onde vive a
escritora. “Será uma mesa sobre a poesia de Maria Teresa, sobre ela e sobre a
conexão poética entre Brasil e Portugal”, diz Aguiar.
Pouco conhecida por leitores
brasileiros e com apenas alguns livros publicados no país – como Cem Poemas [antologia pessoal + 22 inéditos], da
editora 7 Letras, e o de contos Azul Cobalto, da
Oficina Raquel – Teresa Horta, além de amplamente estudada na academia, é uma
das poetisas (como ela própria gosta de ser chamada, em oposição a poeta) portuguesas, mais conhecidas internacionalmente.
Com uma carreira literária que
se confunde com sua atuação feminista e política,
tem também diversos pontos de contato e semelhanças com Hilda Hilst, a
poetisa homenageada nesta 16ª edição da Flip. “Elas operam em uma dimensão
muito parecida. Seu último livro, Anunciações [de
2016], por exemplo, conta a história do encontro amoroso entre Maria e o anjo
Gabriel, algo que poderia ter sido facilmente escrito por Hilda”.

Em 1972, ainda sob o salazarismo, Maria Teresa Horta, ao lado de duas amigas também escritoras, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa – as três Marias –, ficou famosa depois da publicação do livro Novas Cartas Portuguesas, um libelo literário feminista contra o fascismo e o patriarcado, composto por cinco cartas com uma narrativa não-linear.
“O Novas Cartas faz
referência às cartas de amor de Mariana Alcoforado, uma freira do século 17, ao
seu amante, um soldado francês”, diz Raquel Menezes, editora da Oficina Raquel.
Escritas a três mãos, as novas cartas acabaram por se transformar em um símbolo
da queda do regime salazarista – comandado, então, por Marcelo Caetano – que
aconteceria dois anos depois.
“O texto não era bem vindo porque
discutia patriarcado, paternidade, feminismo. Recuperaram essa personagem,
Mariana, enclausurada em um convento do século XVII, muito provavelmente contra
sua vontade, para falar do enclausuramento português do século XX”, diz
Menezes.
“Após a publicação, aconteceu o que esperávamos: perseguição política,
proibição de venda da obra, passaportes apreendidos, idas à Polícia Judiciária
e o processo posto pelo Governo de Marcelo Caetano, por obscenidade,
pornografia e atentado aos bons costumes”, conta Teresa Horta em entrevista ao
EL PAÍS por telefone. Omitindo a autoria dos trechos do livro, as três Marias
enfrentaram a perseguição com o apoio internacional de figuras como Simone de Beauvoir,
Marguerite Duras e Christiane Rochefort. “Foi o maior movimento de
solidariedade feminina internacional de que há memória”, diz a escritora.
Nessa época, contudo, Teresa Horta já
era uma autora conhecida e perseguida pelo regime português. “A explosão
do Novas Cartas, foi antecipada pela publicação de Minha Senhora de Mim, de 1971, em que Maria Teresa
revisitou a lírica tradicional portuguesa ao escrever poesias com fundo
erótico”, diz Ana Maria Domingues, doutora em Letras pela Universidade São
Paulo (USP).

Depois da publicação de Minha Senhora de Mim, o livro foi apreendido, a editora
Dom Quixote foi ameaçada de fechamento caso publicasse a poetisa novamente e
ela própria foi vítima de atentados. Primeiro começaram a telefonar em sua casa
e para o jornal em que trabalhava, depois, um dia, foi espancada por três
homens que a atiraram no chão e, sem parar de bater, gritavam: “isto é para
aprenderes a não escrever como escreves”.
Não funcionou. “Se eu tivesse ficado
com medo, nunca teria escrito o Novas Cartas, que
nós três resolvemos escrever justamente por causa da repercussão de Minha Senhora de Mim. Há pessoas que não se calam e eu
não nasci para me calar”, diz Teresa Horta.
Em 25 de abril de 1974, poucos dias
antes de uma audiência judicial que julgaria as três Marias aconteceu a Revolução dos Cravos –
“o dia mais feliz da minha vida depois do nascimento do meu filho”, diz a
autora –, Marcelo Caetano, que em sua juventude nos anos 1920 já havia
perseguido outra poetisa, Judite Teixeira, caiu; o regime acabou; o processo
contra elas foi extinto; e Teresa Horta deixou de ser uma autora perseguida em
Portugal para se tornar um símbolo literário e de resistência do país.
“Dos 15
anos até o 25 de abril, eu só fiz lutar contra o fascismo. Meus livros depois
do 25 de abril são outros e diferentes entre si, mas têm uma raiz idêntica, que
são as coisas que eu reflito sobre a vida. Minha poesia nunca deixou de ser uma
arma”, diz.
Por trás das possíveis razões de
Maria Teresa Horta chegar a 2018 como uma autora pouco conhecida na Flip, está
o próprio quinhão brasileiro de fascismo. Em 1974, quando o mundo parava para
assistir a Revolução dos Cravos e comentava sobre as Novas Cartas Portuguesas, o Brasil vivia os anos de
chumbo da ditadura civil militar.
Assim, em dezembro do mesmo ano, quando Teresa Horta veio pela primeira vez ao
país, foi aconselhada a ser mais cautelosa em seus discursos, a falar mais
baixo, a dissimular. Alguém de cima poderia se irritar. Anos mais tarde, em
2007, de visita ao país para um encontro literário na USP, lembrou um episódio
acontecido na viagem anterior: “Por último, quando já na pista do aeroporto ia
embarcar no avião, de regresso ao Rio, fui barrada por dois indivíduos que se
identificaram como sendo da polícia política e me ‘aconselharam’ a voltar no
dia seguinte para Portugal”. Claro, ela não obedeceu: “Voltei quando era de
voltar”.

Hoje, anos depois, fala que é
necessário ainda estar atenta ao “buraquinho” que o fascismo sempre espreita
para regressar. E, por isso, diz-se feliz com os rumos do atual Governo de
Portugal, encabeçado pelo primeiro-ministro socialista António Costa. “Somos um
dos únicos Governos de esquerda em um mundo que está a ver renascer muito do
fascismo”. Gostaria de ser até mais atuante, mas expressa seu contentamento com
a primavera feminista do mundo e apoia os protestos das atrizes de
Hollywood.
“Estou contrária às francesas. Elas estão a ver se ganham
a simpatia dos homens? É muito feio e muito triste”. diz. A simpatia ou
aprovação de ninguém, ecoando a frase do pai que se preocupava com a própria
honra na estreia literária da filha, nunca foi necessária, porque não deveria
existir.
De sua casa, com caneta em punho,
porque só escreve à mão – “uma vez tentei escrever no computador e a poesia
desapareceu imediatamente” –, Teresa Horta ama seu passado – “viver em
democracia é um sonho realizado para mim e eu vivo de sonhos” –, mas não teme o
porvir. Ela, que explica não ter rotina, “porque a rotina é uma coisa
anti-poesia”, escreve incessantemente. Ana Maria Domingues conta que em uma
viagem pelo interior de Minas Gerais, a poetisa
não parava de anotar em um moleskine por
nenhum segundo, estivesse sentada ou em pé, andando ou parada.

Entre a (falta de) rotina imposta
pela poesia, a autora ainda trava suas próprias batalhas. Em 2017, rejeitou uma
indicação ao quarto lugar do Prêmio Oceanos que dividiria com o escritor
brasileiro Bernardo Carvalho. Em uma carta, disse repudiar a classificação dada
ao seu romance Anunciações e falou que não o
aceitaria “por respeito pela Literatura, por respeito pelas minhas leitoras e
os meus leitores, e sobre sobretudo pelo respeito que devo a mim própria e à
minha já longa obra”. Na época, a romancista Inês Pedrosa disse sobre a
questão: “Atribuir a Maria Teresa Horta, em 2017, o quarto lugar ex-aequo do prêmio representa uma forma de assédio
moral, uma humilhação que a obra da autora de Minha Senhora de Mim e As Luzes de Leonor de forma alguma merece, e a que
as regras mínimas da mais elementar educação deviam tê-la poupado”.
Ao EL PAÍS, no final do telefonema,
disse, como num último recado: “eu sou minha própria poesia”. A frase, que
condensa seu trabalho, vida e batalhas, faz lembrar os versos de Ponto de Honra, em Minha Senhora de Mim:
"Desassossego a paixão
espaço aberto nos meus braços
espaço aberto nos meus braços
Insubordino o amor
desobedeço e desfaço
Desacerto o meu limite
incendeio o tempo todo
incendeio o tempo todo
Vou traçando o feminino
tomo rasgo e desatino
tomo rasgo e desatino
Contrario o meu destino
digo o oposto do que ouço
digo o oposto do que ouço
Invento troco disponho
Recuso ser meu avesso
matando aquilo que sonho
matando aquilo que sonho
Salto ao eixo da quimera
saio voando no gosto
saio voando no gosto
Sou bruxaSou feiticeira
Sou poetisa e desato
Escrevo
e cuspo na fogueira".
e cuspo na fogueira".
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Fonte do Texto, em 4 de maio de 2018:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/03/cultura/1525377618_072656.html
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/03/cultura/1525377618_072656.html
São Paulo - 4 de maio, 2018
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Crédito das Imagens:
1. Maria Tereza Horta - foto divulgação
2. As três Marias - foto do artigo aqui reproduzido: Maria Velho da Costa, Maria Isabel Barreno e Maria Teresa Horta.
3. As capas dos livros são reproduções.
Nota: Todas as imagens, aqui publicadas, pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma delas e deseja que seja removida desse espaço, por favor entre em contato com: vrblog@hotmail.com