num artigo publicado no site "outras palavras.net", faz uma análise pós greve dos caminhoneiros. Seu texto considera as apreensões dos que estão comprometidos com o bem-estar do povo brasileiro, e aponta novas possibilidades de superação das pedras do caminho.
Segue o texto.
A greve dos caminhoneiros foi um símbolo do Brasil com as entranhas à mostra. Mas os dias conturbados apontaram novas possibilidades de vida com
menos carros, menos poluição, menos consumo e mais solidariedade.
Estamos engolindo sapos há anos, e em algum momento
iríamos ter prisão de ventre ou uma diarreia monumental. A greve dos
caminhoneiros foi esse momento em que nossas veias pátrias, as estradas,
colapsaram, deixando de irrigar nosso organismo já adoentado. Tudo de ruim veio
à tona numa energia nauseabunda em que até marchas pela intervenção militar
puderam ser vistas. Nossas entranhas ficaram à mostra, revelando suas
sombras.
Os brasileiros e brasileiras estão fartos, tendo
que aguentar o massacre diário de notícias ruins, da corrupção à violência, que
dão ânsias de vômito. Temos que olhar pra cara de um presidente odioso, de
ministros que dão náuseas, e de ver, ler e escutar uma mídia que dá raiva de
tão parcial e ultrapassada.
Poderíamos ter vivido uma greve geral dos lixeiros,
ou um desabastecimento geral de água, ou qualquer coisa que nos fizesse encarar
a energia parada e doentia que atormenta o Brasil. Foram os caminhoneiros que
nos mostraram o quão mal estamos, mas que nos mostraram também sinais de esperança.
A mídia ficou atarantada. Diante da maior
desestabilização dos fluxos internos da história do Brasil, os pomposos
analistas ficaram perdidos. Com seus esquemas de interpretação atrasados, estão
desarmados para ver o mundo em tempos de ação em rede e o fim dos esquemas
centralizados de liderança, de intensa e instantânea conexão comunicativa e
intersubjetiva.
Sem saber tomar o pulso do país, os analistas atiram às cegas,
falam de manipulação sem saber de quem exatamente, até que só restaram aqueles poucos
ignorantes históricos, manifestantes saudosos da ditadura. Que bom, nessa hora
quase todo o espectro político e toda a mídia defendeu a democracia, o que é um
avanço nesse país partido.
Para ir no ponto, no momento de incertezas em que
vive o Brasil, nem mesmo os caminhoneiros tinham qualquer entendimento global
ou controle da greve iniciada por eles. Por essa greve ser tido a capacidade de
entrar na frequência energética de um país que está paralisado, esperando uma
eleição completamente confusa e indefinida, ela espelha nossas entranhas. Os
efeitos que revela são desabastecimento de esperança e caos de
interpretações, beirando ao desespero. O país enfim explodiu sua dor, como
numa crise de choro ou agressividade que causa estragos, mas dificulta que um
câncer insidioso desenvolva-se silenciosamente, no organismo sofrido.
É a febre causada pelos sapos engolidos e remoídos,
pelo ataque ao processo democrático que construímos, com tanto esforço, do país
que assistiu a uma calhorda parlamentar tirar da presidência uma mulher honesta,
e eleita, e colocar um energúmeno estúpido e corrupto até a alma. De algum modo
a cidadania brasileira percebeu que eram sadios esses doloridos dias em que
tudo que é sólido desmanchou no ar, como as certezas cotidianas do botijão de
gás no depósito ou das bananas frescas nos supermercados. O apoio à greve, dado
pela imensa maioria da população brasileira, mesmo protestando contra seus
excessos, foi um bom sinal de maturidade.
Ultrapassamos esses fatos tumultuosos com grandes
perdas, mas com a resiliência adulta de quem se recompõe após um grande
tropeço. Esses dias de desabastecimento apontaram novas possibilidades de
vida com menos carros, menos poluição, menos consumo e mais solidariedade.
Caminhamos para a maturidade cívica e são poucos os que estão buscando
salvadores da pátria, de farda ou civis.
Nessa hora, o que nos resta de pessoas
honestas na velha política fariam um grande favor à nação se pedissem desculpas
por seus erros passados. Se os candidatos às próximas eleições se mostrassem
humildes e reconhecessem as imensas dificuldades de governar esse país,
complexo e continental, dispondo-se a governar de modo mais participativo,
honrariam essa maturidade que vem crescendo.
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Publicado em 12.06.2018
Débora Nunes
- Débora Nunes
é arquiteta, doutora em Urbanismo, com pós-doutorado em Extensão Universitária
pela Universidade Lumière Lyon II (2008) e em História das Cidades e Cidades do
Futuro pela Bangalore University, India (2015). É coordenadora da Escola de
Sustentabilidade Integral e professora titular da Universidade do Estado da
Bahia, no Curso de Urbanismo.
Crédito das Imagens
As imagens são do artigo citado em: https://www.outraspalavras.net/brasil/
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