Para
introduzir os dois textos sobre a questão do aborto, reproduzo, aqui, a
introdução feita por Leonardo Boff, sobre este assunto, no seu site.
Diante de um
assunto que causa tantos dissensos e incertezas – é sempre oportuno contar com fontes
confiáveis que podem apoiar a nossa reflexão, pois, como afirma Boff: “Não
há respostas únicas e uniformes. Mas temos critérios que nos podem ajudar a escolher
o caminho mais responsável e mais adequado à natureza da própria vida”.
As informações dos textos abaixo, nos colocam diante de
outras questões igualmente sérias, orientadas para a defesa da vida, dos direitos
humanos e do respeito às pessoas que desejam, com sinceridade, seriedade e autonomia, tomar as próprias próprias decisões.
Leonardo Boff escreve:
A questão do aborto gerou e gera, no mundo
inteiro, ásperas discussões. Não é sem relevância, pois se trata da vida, o dom
supremo de Deus e o ápice do processo cosmogênico, que culmina com a vida
humana.
Toda vida por minúscula que seja é
sagrada. Diante dela paramos com reverência e sumo respeito. Não apenas a vida
do embrião humano, mas a vida dos 60 mil assassinados no Brasil, a vida dos que
morrem de fome ou de doenças da fome nos fundos das favelas, as vidas
dizimadas, milhares e milhares em guerras cruéis hoje existentes, a vida
das mulheres que, infelizmente, morrem como consequência de abortos feitos sem
condições higiênicas e na clandestinidade.
O princípio de morte sempre acompanha
o princípio de vida, porque somos mortais, pois esta é a condição de nossa
história e de nossa própria existência. Mas há que optar pela vida. A última
palavra, assim cremos, não a tem a morte, mas a vida e a vida transfigurada.
Apesar de todos os esforços e da
criação de condições para que a vida viceje, ela sempre nos acompanha como uma
sombra, porque a morte pertence à vida. Não fomos criados para desaparecer
através da morte, mas para nos transfigurarmos numa forma de vida mais alta.
Falando na linguagem da fé cristã podemos dizer: Não vivemos para morrer. Morremos
para ressuscitar, para viver mais e melhor. Não obstante tudo isso, somos
confrontados, especialmente neste momento de eleições nacionais, com o tema
sempre suscitado do aborto. Não há
respostas únicas e uniformes. Mas temos critérios que nos podem ajudar a escolher
o caminho mais responsável e mais adequado à natureza da própria vida.
Apresentamos
aqui duas reflexões, como material de ilustração e de aprofundamento, uma de Frei Betto e outra de um conhecido
agente de pastoral e formado também em teologia, Roberto Malvezzi, que vive praticamente na maioria de seu tempo
junto ao povo e aos movimentos populares. Seu testemunho é aterrador. Mas nos
desafia a todos, também o Estado. O aborto, antes de mais nada, é um problema
de ética. Mas é também um problema de saúde pública a ser tomado a sério pela
sociedade e pelos órgãos do Estado. LBoff
ABORTO: UMA LEGISLAÇÃO EM DEFESA DA
VIDA
Por: Frei Betto
Ao
contrário do psicanalista ou da psicóloga que se depara com o drama de mulheres
que abortaram, como religioso tenho sido solicitado por aquelas que, diante de
uma gravidez indesejada, sofrem a atroz angústia da dúvida. E raramente elas
chegam acompanhadas por seus parceiros – o que não deixa de ser um preocupante
sintoma.
É espantoso que, às portas do século XXI, haja questões tão sérias, como o
aborto, que ainda são consideradas tabus indiscutíveis. O capitalismo erotiza a
cultura, através da reificação das relações humanas subjugadas aos imperativos
do consumo, e por isso mesmo mantém a censura em torno do tema da sexualidade.
Para o sistema, que depende da exacerbação do imaginário coletivo, só é
real o que não é racional. Seria inquietante se, por exemplo, os
movimentos feministas começassem a questionar o uso da mulher na publicidade.
Pelo mesmo motivo, impede-se que nas escolas se trate de questões de gênero e
de educação sexual (quando muito, há aulas de higiene corporal para se evitar
doenças sexualmente transmissíveis).
Devo acrescentar que lamento as dificuldades que a Igreja impõe à discussão em
torno do aborto. Se a Teologia é o esforço de apreensão racional das verdades
de fé, o teólogo tem, por dever de ofício, de se manter aberto a todos os temas
que dizem respeito à condição humana, mormente quando encerram implicações
morais. Aquilo sobre o qual ninguém fala ou escreve, não existe –
diz um personagem de Érico Veríssimo em Incidente em Antares.
Por isso mesmo, as instituições autoritárias preferem cobrir de silêncio
questões polêmicas que refletem incomensuráveis dramas humanos. A própria
Constituinte evitou o tema, preferindo adiá-lo para as leis complementares.
Embora eu seja contra o aborto, admito a sua descriminalização e sou
plenamente a favor da mais ampla discussão sobre o assunto, pois se trata
de um problema real, grave, que afeta a vida de milhares de pessoas. Desconfio,
entretanto, que há algo de verdade neste provérbio feminista: Se os
homens parissem, o aborto seria um sacramento.
A posição da lei brasileira
Ninguém aborta pelo prazer de fazê-lo. É sempre uma opção difícil, traumática,
sob toda sorte de pressões e angústias. Dados da Pesquisa Nacional do Aborto
(PNA), divulgada em 2016 (O Globo, 1.8.2018) indicam que 503 mil
mulheres realizaram aborto no Brasil, em 2015. Costuma-se afirmar que, desses
milhares de abortos praticados a cada ano no Brasil, a consequência imediata
seria a morte de inúmeras mulheres, em geral negras e pobres.
Se infelizmente existem casais – pois o aborto não é uma questão exclusiva da
mulher – que comparam o aborto a uma extração de dente, não há dúvida de que
ele deixa sequelas físicas, psíquicas e morais em inúmeras pessoas. A atual
legislação brasileira (artigos 124 a 128 do Código Penal) o considera crime –
tanto da parte da gestante, quanto dos médicos, das enfermeiras e das curiosas
que dele participam. A lei faz exceção aos casos de gravidez decorrente de
estupro ou agressão sexual, bem como por razões terapêuticas, quando há risco
de vida para a mãe (cardiopatias e tuberculose, por exemplo).
A
posição da Igreja
No decorrer de sua história, a Igreja Católica nunca chegou a uma posição
unânime e definitiva. Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo
em certas fases da gravidez. Atrás dessa diferença de opiniões situava-se a
discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado um
ser humano. Até hoje, nem a ciência, nem a teologia, têm uma resposta
exata. A questão permanece em aberto.
Santo Agostinho (sec. IV) dizia que só a partir de 40 dias após a fecundação,
quando se pode falar em pessoa (unidade corpo-espírito). Assim mesmo para os
fetos masculinos, já que se considerava que a hominização do feto feminino
exigia o dobro do tempo…
Santo Tomás de Aquino (séc. XIII) reafirmou que não se pode reconhecer como
humano o embrião que ainda não completou 40 dias, quando então lhe é infundida
a “alma racional”. Esta posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a
partir do Concílio de Trento (encerrado em 1563).
Mesmo assim, sempre foi contestada por outros teólogos que, baseados na
autoridade de Tertuliano (séc. III) e de Santo Alberto Magno (séc. XIII),
defendiam a hominização imediata, ou seja, desde a fecundação trata-se
de um ser humano em processo.
Santo Afonso de Ligório (+1787)
admitia o aborto terapêutico, caso a vida da mãe corresse risco imediato.
Contudo, essa discussão sobre feto “inanimado” (que ainda não teria alma) ou
“animado” (já com alma), encerra-se oficialmente com a divulgação da encíclica
Apostolica Sedis, em 1869, na qual o papa Pio IX condena toda e qualquer
interrupção voluntária da gravidez.
No século XX, introduz-se novamente a discussão entre aborto direto e indireto.
Roma passa a admitir o aborto indireto, em caso de gravidez tubária ou de
câncer no útero. Mas não admite o aborto direto nem mesmo em caso de estupro. E
não fez exceção quando um grupo de freiras do Congo sofreu violação.
A posição atual dos teólogos mais
qualificados não coincide com a de Roma. O redentorista Bernhard Haering, um
dos mais renomados moralistas católicos, admite o aborto quando se trata de
preservar o útero para futuras gestações ou quando o dano moral e psicológico
causado pelo estupro impossibilita a mulher de aceitar a gravidez. É o que a
Teologia Moral denomina ignorância invencível. Nem a Igreja tem o
direito moral de exigir sempre, de seus fiéis, atitudes heroicas. É o que a
ética chama de conflito de valores e deveres. E o próprio papa reconhece que,
inclusive na questão do aborto, a responsabilidade moral pertence, em última
instância, ao inviolável reduto da consciência humana e só pode ser julgado por
Deus.
Limites
da posição da Igreja
Roma é contra a descriminalização do aborto, baseada no princípio de que não se
pode legalizar algo que é ilegítimo e imoral: a supressão voluntária de uma
vida humana. Mesmo defendendo tal princípio, a história demonstra que nem
sempre a Igreja o aplicou com igual rigor a outras esferas do conflito social.
Defende a legitimidade da “guerra justa” e a revolução popular em caso de
tirania prolongada e inamovível por outros meios. É o princípio tomista do mal
menor. Em muitos países, a Igreja aceitava ainda a pena de morte para
criminosos comuns e políticos, posição somente agora revogada pelo papa Francisco,
até porque se a pena de morte não existisse Jesus não teria sido executado na
cruz. E a própria Igreja já patrocinou, na Inquisição, a eliminação física de
pessoas consideradas hereges ou inimigas da fé católica.
Embora a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião em potência, a partir
da fecundação, jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem
prescreveu rituais fúnebres ou batismo in extremis para os
fetos abortados.
O
direito ao uso do próprio corpo
É preciso encarar com muita seriedade as razões que induzem uma gestante ao
aborto. Ao falar do direito ao uso do próprio corpo, nem todas as mulheres são
movidas pela racionalização burguesa semelhante à concepção do direito de
propriedade, ius utendi et abutendi (direito de uso e abuso).
É bem conhecido o resultado de tal concepção…
Assim como o direito de propriedade encerra uma intrínseca função social, o
direito sobre o corpo não pode prescindir de sua natureza social. Este é um dos
princípios que fundamentam o movimento ecológico, pois homem algum é
uma ilha. Não há nada que uma pessoa faça com o seu próprio corpo que não
tenha reflexos em seu relacionamento social. Até o modo como o alimentamos ou
vestimos influi em nossa postura em relação aos outros. Do ponto de vista
moral, não se pode aceitar, como direito, a autodestruição física ou
psicológica.
A opção de abortar é moral e política. Pode ser encarada pelo ângulo do poder
do mais forte sobre aquele que é completamente frágil. Tão frágil que podem ser
encontradas justificativas científicas para negar-lhe o título de humano.
Para a genética, o feto é humano a partir da segmentação. Para a
ginecologia-obstetrícia, desde a nidação, a implantação no útero. Para a
neurofisiologia, só quando se forma o cérebro. E para a psicossociologia,
quando há relacionamento personalizado.
Em suma, o fato é que o feto é uma espécie de subproletário biológico. Tão
reduzido à sua impotência, que não tem como protestar ou rebelar-se. A Bíblia
adverte que a grande tentação do ser humano é querer “fazer de sua força a
norma da justiça” (Sabedoria 2, 11). E, em muitos casos de aborto,
o feto paga pela rejeição que a mulher tem ao homem que a fecundou ou pelos
preconceitos que a atemorizam e a tornam tão escrava de conveniências sociais
que, paradoxalmente, ela decide extraí-lo em nome de sua suposta liberdade.
Liberdade que ela teme e da qual foge quando se trata de admitir uma relação
adúltera, assumir-se como mãe solteira ou exigir de seu parceiro, ainda que
casado com outra mulher, que ele seja companheiro e pai face à evidência de uma
vida em processo.
Há casos em que o aborto é a culminância de um ciclo desprovido de coerência
moral. Vive-se uma ambiguidade que nega o mínimo de respeito à dignidade
alheia. A falsidade como cúmplice da conveniência. Homens que na vida social
defendem as mais avançadas ideias, quando confrontados com uma inesperada
gravidez reagem com uma covardia inominável, como se o problema fosse exclusivo
da mulher. E, o que é pior, há mulheres coniventes com a omissão masculina, não
raro por se verem tendo que optar entre o feto e o afeto…
Engels, em A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada,
denuncia o mercantilismo que afeta as relações humanas nas classes dominantes,
onde as pessoas valem pelo que têm e não pelo que são. Quem se empenha na
transformação da sociedade capitalista deve saber que o único capital que
jamais pode ser perdido é o moral. Pode-se perder a liberdade e, inclusive, a
vida. A perda da moral implica o descrédito da própria causa que se defende e
representa, de fato, uma vitória do inimigo.
As
situações-limites
Permanece em aberto a discussão sobre o momento em que o feto pode ser
considerado humano. Partilho a opinião de que, desde a fecundação, já há vida
com destino humano e, portanto, histórico. Sob as óticas cristãs e marxistas, a
dignidade de um ser não deriva daquilo que ele é e sim do que pode vir a ser.
Por isso, cristianismo e marxismo defendem os direitos inalienáveis dos que se
situam no último degrau da escala humana e social.
É interessante observar que, na história, sempre se pôs em xeque a plena
dignidade de pessoas que eram mantidas na opressão: índios, mulheres, negros…
Hoje, o debate sobre se o ser embrionário merece ou não o reconhecimento de tal
dignidade, não deve induzir ao moralismo intolerante, que ignora o drama de
mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou
conveniência social. Trata-se de mulheres muito pobres, que objetiva e
subjetivamente não têm condições de assumir aquele filho, naquele momento; de
menores de idade que sofrem violação, como aconteceu no Recife com uma menina
de 9 anos; de mulheres mentalmente enfermas, incapacitadas para cuidar de uma
criança; ou de mulheres que engravidam involuntariamente após os 40 anos,
quando a possibilidade de nascer um filho com sequelas aumenta de 1/2500 para
1/100, sendo de 1/45 para mulheres que já atingiram 45 anos.
Enfim, há uma série de situações humanamente dramáticas, geradas por pobreza,
ignorância, opressão social, violência, que não podem ser encaradas sob o olhar
altivo do moralismo farisaico.
Em
princípio, devemos lutar para que tais situações não se apresentem no futuro,
erradicando suas causas sociais. E pouco adiantam os remendos legais que
procuram encobrir suas contradições. Por esta via, em breve se discutirá o
projeto de lei de eliminação dos mendigos, como hoje se discute a redução da
maioridade penal.
Frente à gravidade de inúmeros casos atuais, não basta aguardar aquele futuro
em que as mulheres não temerão pelo nascimento de seus filhos e quando o aborto
já não será necessário. Não se deve também ceder à hipocrisia da direita,
interessada em manter a criminalização do aborto para favorecer as “fábricas de
anjinhos” – as clínicas clandestinas que fazem a fortuna da máfia de branco,
inclusive fornecendo fetos às indústrias de cosméticos, onde são aproveitados
como matéria-prima dos produtos de beleza.
A
descriminalização do aborto
É a defesa do sagrado dom da vida que levanta a pergunta se é lícito manter o
aborto à margem da lei, pondo em risco também a vida de inúmeras mulheres
pobres que, na falta de recursos, tentam provocá-lo com chás, venenos, agulhas
ou a ajuda de curiosas, em precárias condições higiênicas e terapêuticas. É
possível que uma legislação em favor da vida faça este problema humano emergir
das sombras para ser adequadamente tratado à luz do Direito, da Moral e da
responsabilidade social do poder público.
Um dos principais especialistas em Teologia Moral e Ética Médica no Brasil, o
padre Hubert Lepargneur, admite que “devemos reconhecer, por desagradável que
nos seja, a tendência dos países civilizados em considerar legal a operação,
sob restrição de um mais ou menos rigoroso condicionamento, para que se
controle um ato grave, individual e socialmente, uma operação que precisa de
cuidados sanitários à altura das exigências modernas de saúde” (O aborto
voluntário , Paulinas, São Paulo, 1983, p. 47).
O teólogo e jesuíta espanhol González Faus é de opinião que “mais do que o
moralista, a existência de situações-limites deve ser contemplada pelo
legislador civil, que não está obrigado a assegurar toda a moralidade e sim a
convivência pacífica, nem está obrigado a prescrever a heroicidade ou a
procurar um “melhor” inimigo do bem, senão que muitas vezes há de contentar-se
em evitar o mal maior. E é possível que, nas atuais circunstâncias de nossa
sociedade, a descriminalização legal do aborto seja um mal menor, enquanto
todos nós não trabalharmos por uma sociedade em que o aborto já não seja
necessário” (Este es el hombre, Ed. Cristandad, Madri, 1986, pp.
277-285).
Por que alguns se opõem de maneira tão violenta ao debate sobre a
descriminalização do aborto? Não se trata dos mesmos setores que proíbem a
educação sexual nas escolas, defendem a “escola sem partido” e a pena capital,
e aplaudem a eliminação sumária de supostos bandidos e traficantes? Ora, para
tais setores, a descriminalização do aborto poderia trazer à tona o que se
passa entre executivos e secretárias, entre patrões e empregadas, além do risco
de ter que dividir a herança com o filho bastardo. A morte clandestina no
ventre elimina qualquer risco à propriedade e à imagem pública do proprietário.
Para este, aliás, não há ilegalidade nesta matéria. Basta embarcar a gestante
para um país que não criminaliza o aborto, e tudo estará resolvido de acordo
com a lei.
Mas como ficam as mulheres pobres que não podem ter filhos, senão sob o risco
de perderem o emprego e deixarem a família na miséria? São inúmeras as mulheres
que, para obter um trabalho, se veem obrigadas a esconder que são casadas e a
impedir ou interromper a gravidez.
Se tais setores fossem sinceramente contra o aborto, lutariam para que não se
tornasse necessário. Para que todos pudessem nascer em condições sociais
seguras, numa sociedade sem profunda desigualdade social, na qual todos
pudessem viver com dignidade. Como não estão dispostos a isso, o mais cômodo é
exigir que se mantenha a penalização do aborto. Mas como fica a penalização de
políticas econômicas que resultam no aumento da mortalidade infantil?
Uma
legislação a favor da vida
Está comprovado que a descriminalização, aprovada em vários países, não
reduz o número de abortos clandestinos. Muitas mulheres continuam a preferir o
anonimato, para evitar danos à sua imagem social e/ou à do parceiro. O que
diminuiu foi o número de óbitos de mulheres em consequência do aborto. E
inúmeras gestantes que procuraram os serviços sociais de atendimento foram
convencidas a ter o filho – o que não ocorreria se vigorasse a criminalização
do aborto.
Hoje, muitas opiniões autorizadas na Igreja admitem que não se pode tratar a
matéria com intolerância, supondo que numa sociedade culturalmente
diversificada, plural e laica, haja valores morais universalmente aceitos.
“No plano dos princípios – declarou monsenhor Duchène, presidente da Comissão
Espiscopal Francesa para a Família – lembro que todo aborto é a supressão de um
ser humano. Não podemos esquecê-lo. Não quero, porém, substituir-me aos médicos
que refletiram demoradamente sobre o assunto em sua alma e consciência e que,
confrontados com uma desgraça aparentemente sem remédio, tentam aliviá-la da
melhor maneira, com o risco de se enganar” (La Croix, 31/3/79). Em abril do mesmo ano, o bispo francês
manifestou que uma pessoa que aborta “não comete sempre uma culpa grave. Não
levamos em conta aquilo que se passa nas consciências de certas pessoas
envolvidas em situações aparentemente sem saída” (Le Monde, 25/4/79).
Uma legislação em favor da vida deve obrigar o poder público a promover
amplas campanhas sobre o aborto, esclarecendo suas implicações morais, físicas
e psicológicas, como ocorre na China; prever severas sanções às empresas e aos
empregadores que recusam mulheres casadas ou não dão suficiente apoio às
gestantes; criar postos de atendimento às gestantes que pensam em abortar, onde
médicos, psicólogos, assistentes sociais e, inclusive, ministros da confissão
religiosa da interessada, procurem convencê-la a assumir o filho, demovendo
preconceitos e barreiras, como acontece na França; ampliar a rede de Casas da
Mãe Solteira (como já existe em São Paulo, por iniciativa particular), de modo
a evitar que as gestantes solteiras sejam induzidas ao aborto por
desamparo afetivo, moral ou econômico; prever a objeção de consciência do
pessoal terapêutico convocado a atuar nos casos de exceção previsto pela lei;
garantir o salário maternidade e multiplicar o número de creches; criar o
sistema telefônico de atendimento às mulheres angustiadas por gravidez
imprevista, como o SOS-Futuras Mães, da França, que dispõe de postos de
recepção telefônica; oferecer ajuda financeira às famílias que adotam crianças rejeitadas
por suas mães.
Em
resumo, deve-se assegurar o direito à vida do embrião e amparo moral,
psicológico e econômico à gestante, bem como prescrever medidas concretas que
socialmente venham a tornar o aborto desnecessário.
Frei
Betto é escritor, autor de “O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre
outros livros.
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Aborto ao ponto de entupir esgoto
Por: Roberto Malvezzi (Gogó)
Quando fazia Teologia Moral, o Padre
Márcio Fábrio dos Anjos, ainda na década de 1970, lançou um livro afirmando que
no Brasil daquela época se calculava em mais de 1 milhão de abortos ao ano,
espontâneos ou induzidos. Até hoje ele é um expert no assunto. Foi minha
primeira perplexidade diante do tema.
Quando minha esposa trabalhou na
Pastoral da Mulher Marginalizada aqui na diocese de Juazeiro da Bahia,
alfabetizando crianças filhas de prostitutas, ela me contava as peripécias das
prostitutas que faziam aborto por conta própria: tomavam Cytotec, chás caseiros
como cabacinhas, quando não introduziam ferros e outros objetos na vagina para
extrair restos de fetos, etc. O resultado eram mulheres com infecções, sendo
internadas às pressas para fazer a curetagem, quando não acontecia a morte.
Há dois anos, quando eu estava na
equipe da Campanha da Fraternidade Ecumênica sobre saneamento, nos corredores
rolava a conversa sobre a qualidade da tubulação nas obras de saneamento.
Então, um dos colegas, uma pessoa séria e especialista no assunto me perguntou:
– Você conhece tal e tal cidade? Eu
respondi que sim.
Então, ele disse: – O maior problema
no saneamento dessas cidades é a quantidade de fetos abortados entupindo os
esgotos.
Eu devia estar com a cara mais
perplexa do mundo quando o terceiro colega que participava da conversa afirmou:
“Isso acontece porque o aborto não é legalizado. Se fosse, as mulheres não
teriam que jogar os fetos no ralo dos esgotos”.
Eu devia estar ainda mais perplexo. Perplexo
ou não, o fato é que a discussão sobre a legalidade ou não do aborto não vai
afetar a quantidade (de abortos) que é realizada. De qualquer forma, além de um
caso moral, por envolver a vida humana, sempre será um caso de saúde pública,
nem que seja para fazer a curetagem posterior.
Assim como o sexo, é na intimidade da
consciência que as pessoas tomam essa decisão. Além de formar e informar, não
há como controlar, o que torna o desafio pastoral para a Igreja muito mais
vasto e profundo. Seja legal ou clandestino, o aborto acontece aos milhões, ao
ponto de entupir esgotos.
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Nota de : Roberto Malvezzi (Gogó)
e demais amigos(as):
Por causa da questão do aborto, o Arcebispo de Vitória,
D. Luiz Mancilha, recebeu o senador Magno Malta na Cúria e tirou foto abraçado
com ele. A foto foi parar nos jornais. Magno Malta é apoiador de Bolsonaro,
tendo se oferecido até para ser vice dele. O caso fez o presidente da Comissão
de Justiça e Paz (CJP) da Arquidiocese entregar o cargo. E o Arcebispo extinguiu a referida Comissão,
depois de anos de relevantes serviços em favor dos Direitos e da Paz. No
hipócrita discurso da “defesa da vida”, o Arcebispo abraça um defensor de
candidato que apoia linchamento, tortura, espancamento, assassinato,
justiçamento e pena de morte.
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Crédito Imagens
1. Santa Anna - foto de pintura de Michelangelo - Louvre, Paris-FR
2. Leonardo Boff - http:// cartacampinas.com.br/2017
3. Frei Betto - www.moticias.uol.com.br.jpg
4. Roberto Malvezzi - 10.envolvimento.org.br.jpg
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