Em comemoração ao DIA DA MULHER, durante o mês de março publicaremos uma série de artigos que reportam ideias contemporâneas, fazendo uma nova leitura sobre o lugar da mulher - da sociedade patriarcal aos nossos dias. Artigos que trazem opiniões complementares sobre a MULHER, conquistas e retrocessos do seu lugar na história, e no mundo contemporâneo. Estreamos com um artigo de Leonardo Boff, publicado em 16/02/2018.
Como o patriarcado
desmantelou o matriarcado,
diabolizando a mulher
É difícil rastrear os passos que possibilitaram a liquidação do
matriarcado e o triunfo do patriarcado, há 10-12 mil anos.
Mas foram deixados
rastos dessa luta de gênero.
A forma como foi relido o pecado de Adão e Eva nos revela um trabalho de
desmonte, do matriarcado pelo patriarcado, mediante um processo de diabolização
da mulher. Essa releitura foi apresentada por duas conhecidas teólogas
feministas, Riane Eisler (Sex Myth and Poilitics of the Body: New Paths to
Power and Love, Harper San Francisco, 1955) e Françoise Gange (Les
dieux menteurs, Editions Indigo-Côtes Femmes, Paris,1997).
Segundo estas duas autoras, houve uma espécie de processo para culpabilizar
as mulheres, no esforço de consolidar o domínio patriarcal.
Os ritos e símbolos sagrados do matriarcado são vistos como diabólicos, e
retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de
apagar totalmente os traços do relato feminino anterior.
O atual relato do pecado das origens, acontecido no paraíso terrenal,
coloca em xeque quatro símbolos fundamentais da religião das grandes
deusas-mães.
O primeiro símbolo a ser atacado foi a própria mulher (Gn 3,16), que na
cultura matriarcal representava o sexo sagrado, gerador de vida. Como tal, ela
simbolizava a Grande-Mãe, a Suprema Divindade.
Em segundo lugar, desconstruiu-se o símbolo da serpente, considerado o
atributo principal da Deusa-Mãe. Ela representava a sabedoria divina que se
renovava sempre como a pele da serpente.
Em terceiro lugar, desfigurou-se a árvore da vida, sempre tida como um
dos símbolos principais da vida. Ligando o céu à terra, a árvore continuamente
renova a vida, como fruto melhor da divindade e do universo. O Gênesis (3,6) diz,
explicitamente, que “a árvore era boa
para se comer, uma alegria para os olhos, e desejável para se agir com
sabedoria”.
Em quarto lugar, destruiu-se a relação homem-mulher, que originariamente
constituía o coração da experiência do sagrado. A sexualidade era sagrada, pois
possibilitava o acesso ao êxtase e ao saber místico.
Ora, o que fez o atual relato do pecado das origens?
Inverteu, totalmente, o sentido profundo e verdadeiro desses símbolos.
Dessacralizou-os, mostrou-o diabólico, e os transformou de bênção em maldição.
A mulher será eternamente maldita, feita um ser inferior. O texto
bíblico diz, explicitamente, que “o homem
a dominará” (Gen 3,16). O poder da mulher, de dar a vida, foi transformado
numa maldição:”multiplicarei o sofrimento
da gravidez” (Gn 3,16). Como se depreende, a inversão foi total e de grande
perversidade.
A serpente é maldita (Gn 3,14) e feita símbolo do demônio tentador. O
símbolo principal da mulher foi transformado em seu inimigo fidagal: “porei inimizade entre ti e a mulher…tu lhe
ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).
A árvore da vida e da sabedoria vem sob o signo do interdito (Gn 3,3,).
Antes, na cultura matriarcal, comer da árvore da vida era se imbuir de
sabedoria. Agora, comer dela significa um perigo mortal (Gn 3,3), anunciado por
Deus mesmo. O cristianismo posterior substituirá a árvore da vida pelo lenho
morto da cruz, símbolo do sofrimento redentor de Cristo.
O amor sagrado entre o homem e a mulher vem distorcido: ”entre dores darás à luz os filhos; a paixão
arrastar-te-á para o marido e ele te dominará” (Gn 3,16). A partir de então,
se tornou impossível uma leitura positiva da sexualidade, do corpo e da
feminilidade.
Aqui se operou uma desconstrução total do relato anterior, feminino e
sacral. Apresentou-se outro relato das origens que vai determinar todas as
significações posteriores. Todos somos, bem ou mal, reféns do relato adâmico,
antifeminista e culposo.
O trabalho das teólogas pretende ser libertador: mostrar o caráter
construído do atual relato dominante, centrado sobre a dominação, o pecado e a
morte; e propor uma alternativa mais originária e positiva, na qual aparece uma
relação nova com a vida, com o poder, com o sagrado e com a sexualidade.
Essa interpretação não visa repristinar uma situação passada, mas, ao
resgatar o matriarcado, cuja existência é cientificamente assegurada, encontrar
um ponto de equilíbrio maior, entre os valores masculinos e femininos para os
dias atuais.
Estamos assistindo a uma mudança de paradigma nas relações
masculino/feminino. Essa mudança deve ser consolidada com um pensamento
profundo e integrador, que possibilite uma felicidade pessoal e coletiva maior
do que aquela, debilmente alcançada, sob o regime patriarcal.
Mas isso só se consegue descontruindo relatos que destroem a harmonia
masculino/feminino e construindo novos símbolos que inspirem práticas
civilizatórias e humanizadoras para os dois sexos. É o que as feministas,
antropólogas, filósofas, teólogas e outras estão fazendo, com expressiva
criatividade. E há teólogos que se somam a elas.
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Texto publicado
in: Leonardo Boff, 16/02/2018
Crédito das Imagens:
1. Madaleine Veilleuse - de: George de La Tour - reprodução no Museu de Louvre. - Arquivo do Espaço Poese.
2. Adão e Eva - pintura de Albrecht Düres - Museu do Prado - Madrid
3. Afresco no átrio do Cinema São Luís - Recife
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