Em um dos momentos de crise mais complexos da sua
história, o Brasil sofre com problemas que alimentam ainda mais o difícil
cenário já instalado. A falta de disposição ao diálogo, a busca por culpados e
a transformação da política em algo menor, supostamente sem importância para a
vida coletiva e individual, torna nebuloso ou inviável a possibilidade de um
futuro esperançoso para o país. Soluções simplistas e superficiais ganham
notoriedade no debate nacional sobre a sociedade, a política e a economia. Para
entender como todos esses aspectos podem impactar e interferir na vida e na
saúde das pessoas, conversamos com Christian
Ingo Lenz Dunker, professor titular de psicanálise e
psicopatologia do departamento de Psicologia Clínica da USP. Com tese
sobre as patologias de linguagem, ele aponta a reversão de perspectiva de
futuro como um dos principais problemas que trouxe o Brasil para o labirinto em
que se encontra.
Abaixo, confira a entrevista completa.
Davi Carvalho:
Existe uma definição padrão para o que se entende por saúde mental?
Christian Dunker - Não
trabalhamos com uma espécie de “padrão ouro” do que seria o perfil de
normalidade. Ao contrário do que podemos pensar em relação ao corpo humano, ao
organismo, que tem uma relação funcional entre os sistemas. A saúde mental se
define muito mais pela capacidade de colocar-se em conflito, suportar seus
próprios desvios, criar anomalias e conviver com o fato de que normalidade é
uma invenção dos nossos desejos de adequação e conformidade.
Talvez, essa pergunta
poderia ser substituída por: o que é uma vida bem vivida? Uma vida realizada em seus próprios termos? Para
isso temos alguns critérios. Por exemplo, reconhecer e fazer reconhecer seus
desejos, a capacidade de criar ideais e suportar suas desilusões, e a
consequência delirante por trás de aspirações de independência e autonomia.
Tudo isso forma os litorais da condição trágica da experiência humana.
Reconhecer as condições que permitem eleger fins que se deseja, tanto do ponto
de vista da vida, que foi individualizada, quanto da história que tornou possível
essa vida.
- O cenário que
o Brasil vive, de crises que se retroalimentam, que parece não apontar para um fim, torna as pessoas mais vulneráveis?
CD: Sim! No
fundo, a vulnerabilidade é uma palavra que modaliza uma atitude importante, que
é a capacidade de se deixar afetar e ser afetado. Nos últimos anos temos vivido
um aumento de conflitos sociais, mas de certa forma eles ocorrem pela
maior visibilidade de contradições antes silenciadas ou suprimidas.
Mas, não é porque temos
conflitos que sofremos. Há conflitos que têm uma dinâmica
produtiva, por exemplo, os que envolvem mudança de posição de classe, seja pela
ascensão, seja pelo medo de queda, a possibilidade de que as relações se
alterem é extremamente produtiva, mesmo que dolorosa.
Conflitos que atravessam a criação de filhos são
outro exemplo de como a arte política nos é exigida no cotidiano: uma educação
monotemática, unidimensional e baseada em valores certos e indiscutidos, ou
seja, sem conflito, é uma educação em geral ruim ou muito empobrecedora.
A conquista cognitiva é outro exemplo, o desafio do conhecimento envolve
a construção de conflitos produtivos, ela não acontece em meio ao conforto e a
segurança. E nem por isso somos dominados pelo sofrimento que eles impõem.
Qual a diferença então? Temos uma espécie de
arco de destino que sanciona ou rejeita certas gramáticas de conflito, que
valoriza ou desacredita outras gramáticas. Ou seja, o que determina a valência
política do sofrimento é o saber sobre o conflito, é a nossa teoria da
transformação que, por exemplo, lê o sofrimento como sacrifício justo, como
caminho para a redenção ou como iniquidade intolerável. A partir desta
gramática de reconhecimento podemos acreditar ou nos demitir dos meios para
enfrentá-los. Quando a maioria dos eleitores vota nulo, branco ou se abstém,
isso significa que nossa teoria da transformação não reconhece mais o sistema
partidário representativo, tal qual ele se apresenta, como meio legítimo para
lidar com o sofrimento que nos toma e com os conflitos que o subjazem.
- O que seria
essa teoria?
Tivemos uma mudança social
significativa, de pessoas que saíram da condição de miserabilidade e formaram
uma nova classe trabalhadora ou nova classe média. Junto com isso aumentou
brutalmente o acesso à vida digital e suas redes sociais, com seus blogs e com
seus youtubers, com seu jornalismo alternativo. Relações
históricas de ambiguidade e exercício de poder, como a que se via com os
empregados domésticos, com os gêneros e com a monocultura discursiva, se
desequilibraram.
A vida em forma de
condomínio havia organizado nossos ideais, mas ela não servia mais como uma boa
teoria da transformação, baseada no medo e na inveja como afetos políticos
dominantes. O Brasil viu florescer um novo tipo de religiosidade,
neopentecostal, com uma crença prática no sucesso e um saber bem definido sobre
as modalidades de ascensão social, prosperidade e prestígio. A judicialização
da Saúde, da Educação e da política abriram espaço para um novo tipo de
apropriação simbólica da justiça.
Tudo isso acontecendo
levanta o espírito nacional das promessas e esperanças. Em parte, elas nos
decepcionaram porque se cumpriram, mas em vez do paraíso elas só nos
levaram à descoberta de um universo completamente novo de problemas.
O tamanho do mundo se expandiu. Ideais mais simples
tornam-se insuficientes para lidar com este tipo de abertura, nossas teorias
sobre a transformação entraram em colapso. Quando isso acontece saímos da
lógica na qual luto para fazer-me reconhecer pelo meu desejo, cuja lei se concentra
neste saber sobre a transformação. E regredimos
para a contagem dos amigos e inimigos, para a detecção de quem somos “nós” e
quem são “eles”. Quando nossos sonhos se esgotam, em vez de o
conflito nos orientar para a ação, seja ação de transformar o mundo seja o
esforço de transformar a nós mesmos, isso se manifesta em patologias sociais,
intolerância, desrespeito, crise ou desestabilização das referências simbólica
de autoridade.
Quando a relação entre o nosso
sofrimento e o nosso saber sobre ele se desfaz, isso começa a produzir
sintomas, efeitos massivos, generalizados numa capilaridade que tem toda chance
de afetar, sistematicamente, nossas formas de vida definidas por uma certa
relação entre desejo, linguagem e trabalho. Se o conflito não evolui produtivamente,
começa a gerar confrontações com o seu vizinho, com a sua sombra, com seus
inimigos imaginários.
A tensão social que não
gera transformação, mas uma espécie de impasse, porque a minha teoria da
transformação implica que a do outro tem que ser eliminada. O problema passa a
ter um diagnóstico simples demais, simples e malthusiano: tem gente demais no mundo. Tem alguém que está gozando
um pouco mais que eu. A felicidade que me falta pode ser corrigida distribuindo
infelicidade para os outros, negando-lhes reconhecimento, cidadania ou
pertinência simbólica. São respostas muito simples, respostas que polarizam.
Especificamente sobre o
Brasil, paramos de sonhar com o
futuro que queríamos para nossos filhos, especificamente com os massivos
investimentos em Educação que seriam necessários para isso. Paramos de nos
preocupar com o desenvolvimento da empresa e começamos a pensar apenas no
próximo quarter, em produzir um bonito balanço para os
acionistas. Paramos de nos preocupar com a ciência e nos dedicamos a
produzir papers que ninguém lê, para fazer pontos no
currículo Lattes. Paramos de nos preocupar com o sistema político e nos
importamos apenas com quem vai ganhar as próximas eleições. Tudo isso é
simplesmente corrupção, corrupção branca de nosso compromisso com o desejo.
Paramos realmente de nos engajar no futuro com o qual queremos nos
fidelizar e a discussão passou a ser quem é quem. Ricos e pobres, negros e
brancos, mulheres e homens, direita e esquerda.
Primeiro vamos saber quem
você é, depois pensamos se dá para fazer algo juntos, finalmente depois disso
podemos pensar em escutar o que você diz. Aqui, a palavra é decisiva para
inverter esta crise de identidade que tomou conta do país. Primeiro vem a
palavra, depois veremos quem você é. O
sofrimento identitário é uma armadilha, pois se há identidades que são
sistematicamente silenciadas, tornadas invisíveis e tratadas como zumbis,
também é preciso lembrar que quando deposito a causa do meu sofrimento em quem
eu sou, e não consigo transformar quem eu sou, a transformação possível vai ser
no choque com o outro, pelo ódio ao outro, pela identidade do outro. É sempre
muito mais fácil suturar sua crise de identidade reforçando a identidade
maléfica do outro.
- Aí se cruzam
política, economia, sociedade, indivíduos …
CD: Há poucos
anos tinha-se um arco de futuro, uma expectativa ou esperança. Uma hora
você bate a cara contra o muro. Conforme você se aproxima desse muro ele se
projeta para um novo horizonte, se isso não acontece ocorre essa mutação do
saber que organiza nossa relação com o sofrimento. Ora, se não tem futuro, não é só que o passado não importa, mas você destrói
o verdadeiro presente. De certa maneira, isso também é um processo global,
é um processo neoliberal. Viver sem pensar no próximo capítulo. Reduzir o horizonte, aumentar o tamanho do
eu e diminuir o tamanho do mundo. Isso está presente em processos como
políticas públicas, que são projetos para se pensar 20, 30 anos. Em vez disso
inventamos esta imbecilidade da PEC 241 e o congelamento preventivo do pior. A aceitação de que não conseguimos conter
nossa voracidade para devorar o futuro, nos faz assassiná-lo já. Ao fazer
isso, cria-se uma cadeia de consequências que gera pessoas com atitudes mais
predatórias, imediatistas, mais egoístas.
Não é o triunfo do
individualismo, como uma certa tradição liberal quer nos fazer crer, mas o
triunfo dos grupos organizados, com maior poder de pressão dentro do governo,
que poderão “amassar” os desperdiçadores de dinheiro público: Educação,
Cultura, Saúde, Direitos Humanos. Tudo isso vai ser sentido como uma
patologia do individualismo, a patologia pela qual eu só posso sofrer como um
indivíduo, só posso sofrer na “forma indivíduo”. Se formos fazer valer Thomas
Hobbes, e sua guerra de todos contra todos, eu vou me dar mal, se eu não for
capaz de instrumentalizar a lei e o recurso que ela legitima, que não é só de
coibir a violência de quem transgride a lei, mas de praticar a violência em
nome da lei. O que os estudantes das escolas ocupadas enfrentaram, e isso foi
só o começo da conversa, ou melhor da falta de conversa.
- Mas para uma
certa visão de mundo essa atitude é funcional…
CD: Essa atitude,
que era a forma clássica do liberalismo lidar com o sofrimento, ou seja,
proteger as relações, as pessoas, os trabalhadores porque isso prejudica a
produção. E quando prejudica demais, o Estado precisa intervir. Há um certo limite político de quanto
sofrimento podemos aguentar. Esta política vai sendo substituída, como
aconteceu no Brasil, de 2014 para cá, por uma concepção neoliberal que se
especializa em instrumentalizar o sofrimento. Explorar pessoas com jornadas
de trabalho além do exaustivo, medicalizar a infância, induzir o sofrimento
entre equipes para aumentar a competição, instalar gestores interessados em
extrair mais valor de mais sofrimento. E aquele sofrimento que não pode ser
convertido em aumento de produtividade deve ser ignorado como desvio
individual, como o “lobo solitário” que se revolta contra o sistema e sai
atirando em todo mundo como um terrorista, como o zumbi da cracolândia que será
legado à sua própria errância. Ou seja, a
gestão do sofrimento passa a ser um capítulo fundamental da maneira de entender
e lidar com o novo mundo, em forma de condomínio.
Isso tem a ver
com o que chamamos popularmente de autoestima?
CD: Eu diria que o conceito de autoestima é muito ruim.
Ele parece dizer alguma coisa imediata, descritiva e intuitiva, mas é uma noção
problemática. Por exemplo, um indivíduo arrogante que se superestima, pode se
sentir cronicamente com “baixa autoestima”, porque não atinge seus ideais
superinflacionados, e na verdade sofre com um complexo de superioridade e não de
inferioridade. O que Freud chamava de
autoestima (Selbstgefüllt) seria melhor traduzido por sentimento de si, o que envolve
nosso senso de familiaridade, temporalidade, nossa apropriação das posições de
classe, raça, gênero. Autoestima sugere
uma dimensão de amor por si mesmo que não confere nem com o amor próprio (amour prope), nem com o amor de si (amour sui). A sede por “likes”, a obsessão com a fama e
o efeito celebridade decorrem de uma ascensão
do amor próprio, com um rebaixamento
do sentimento de si.
Descobrimos, assim, que
temos uma propriedade fundamental: nós mesmos, nossa marca, nossa imagem, nosso
personagem social. Como toda propriedade, em um mercado de imagens, seu valor
depende da comparação com outras imagens do mesmo “segmento”.
Mais uma vez é preciso entender que o neoliberalismo não é só um sistema
econômico, mas uma forma de moralidade que tem como uma de suas principais
características a aceleração do tempo e da vida. O que você provoca em uma
pessoa quando você diz que ela tem que viver, necessariamente, 10 anos em 2?
Quando ela deve esperar ganhar seu primeiro milhão aos 25 anos? Insatisfação permanente. Isso é que gera
a sensação de que seu sentimento de si é baixo, ou seja, a suposição que o amor próprio dos outros é muito mais elevado.
- Esse processo
todo faz as pessoas perderem a capacidade de reconhecer seus sentimentos,
emoções?
CD: Para
entender isso é preciso distinguir, no interior da dialética do reconhecimento,
o que se reconhece (o si e o próprio), por quem se é reconhecido (o outro e o
Outro) e o ato real de reconhecimento. Nesta equação, a forma, o outro e o ato
pelo qual somos reconhecidos determina diretamente o potencial patógeno em
termos de sofrimento. Exemplo: caiu uma bomba.
Estamos todos na miséria. Sofrimento real, sim, mas eventualmente não
patológico, porque estamos todos juntos. Temos que aceitar a tragédia que se
abateu sobre nós. Estamos diante de uma situação que interpretamos como
universalizável.
Então, ficamos sabendo que a bomba só afetou a zona
leste da cidade, onde por acaso moramos. É um problema. Alguns são reconhecidos
de uma forma, outros se sentirão neuroticamente culpados por sobreviver. Vamos
dizer agora que a ONU designe equipes de resgate, mas que elas escolham salvar
apenas os motoristas de taxi e os donos de supermercado. A miséria se
transforma em revolta. Neste ponto surgem motivos teológicos que justificam que
eles e não outros sejam salvos. Nosso próprio sofrimento é transformado em
redenção. Veja como o teor de minha experiência de sofrimento se altera
em função da minha interpretação da felicidade ou da infelicidade do outro, da
justiça ou da injustiça, da autoridade que a nomeia, em função da narrativa que
a explica.
- E esse
reconhecimento se dá através do trabalho, do consumo, tudo que pode ser afetado
em períodos de crise…
CD: Um erro teórico é imaginar que se é a favor ou
contra o consumo. Se você pensar, o consumo é uma instância extremamente
democrática. É uma condição de inclusão. A possibilidade de você entrar em uma
loja e poder comprar algum produto, e ser aceito naquele lugar, em termos de
reconhecimento, é um avanço brutal. Ou seja, o consumo não é só uma instância
de exclusão, que produz sonhos irrealizáveis e insatisfação infinita, mas de
inclusão também. O verdadeiro problema é
saber que tipo de gramática de reconhecimento vai aparelhar as relações de
consumo. Por exemplo, o Brasil da minha geração, era conhecido como um
lugar de consumo conspícuo, onde o valor gozoso de um objeto está no fato de
que eu posso humilhar o outro causando-lhe inveja. Ele é propositalmente
exagerado, para que eu possa me exibir e gozar de que o outro não tem o carro,
a escola, a roupa que eu tenho, e você não. Se você começa a estimular uma
gramática de reconhecimento nesses termos, atravessando o consumo, isso vai
terminar em violência. Óbvio, o problema ocorre porque está se fazendo algo
para ele acontecer. Você destila inveja, junta com ódio e termina em violência.
A esquerda não conseguiu se conciliar com o tema do
consumo. Sua versão de interesse público associou-se demasiadamente com o
interesse estatal. Isso bloqueou seu diálogo com as teologias da prosperidade,
com a colaboração da sociedade civil, com os movimentos sociais, com os
coletivos de cultura, com as universidades. Cultivou-se uma espécie de horror
ao dinheiro privado, como se todo ele fosse obviamente demoníaco. Por outro
lado, incentivou-se o consumo das famílias, o que teve, sim, efeitos amplamente
inclusivos. Ora, se todo dinheiro que toque a coisa e o interesse público só
pode passar por dentro do Estado, isso constitui um foco e uma tentação
permanente para obter os meios de controle, por onde a corrupção e a
instrumentalização do Estado, com o pior dinheiro privado, pode se realizar bem
debaixo de nossos olhos.
- Ódio e
ressentimento …
CD: Existe no
Brasil uma ascensão do ressentimento de classe, de gênero. Ele junta todas as
problemáticas. No fundo, o ressentimento é uma crença demasiada na onipotência
do Outro, que é quem me fez mal. A ideia de que a minha vida não está
“funcionando” direito porque o outro fez alguma coisa e me impediu, é
duplamente problemática. Primeiro, porque ela desconhece a noção de pacto
social, ou seja, de que alianças e oposições se dão entre sistemas de interesse
que não desconhecem o todo. É o que se percebe bem no golpe que assistimos
hoje, de um lado a Esquerda sente que foi despojada do poder por meios
semilícitos, por outro a Direita ficou envergonhada, e temos reformas brutais
em andamento, segundo o espírito mágico das mãos limpas, ou seja, sem que
ninguém pague realmente a conta. Aqueles que eram contra Dilma, de repente se
saem com essa de que não eram a favor de Temer, eles só queriam a saída de uma,
não a entrada de outro.
Logo, quem realmente está
vendendo nossos 20 próximos anos para pagar as contas? Quem está pulverizando a
aposentadoria e os direitos sociais? Quem vai pagar a conta pelo sucateamento
do SUS e das universidades? O senhor Ulisses Ninguém, o Vampiro de Düsseldorf?
O golpe não é o impeachment, mas o truque de que ninguém realmente quer isso
que está acontecendo diante de nossos olhos. Isso é típico da cultura do
ressentimento. Como ela trabalha em um sistema de covardia e desimplicação
subjetiva, quando o ódio extermina seus inimigos, depois do duelo e do
linchamento vão todos para a casa, e voltam a ficar em cima do muro. E na
solidão de suas colunas de jornal pensam: “foi ele que me fez fazer isso”.
Saímos da cultura do ressentimento para a cultura da indiferença.
- É possível
tratar isso?
CD: É possível tratar
o ressentimento, e temos dois recursos para fazê-lo, mas estão sendo
completamente ignorados: primeiro, a cultura
e depois a política. A experiência
cultural não é orientada para um fim nem para um gozo imediato. Estamos falando
de uma verdadeira experiência cultural, que é a experiência de linguagem, de
simbolização, de coletivização, e que envolve muitas outras coisas. É muito
estranho, que em meio a tantos candidatos para a vilania, os grupos escolhidos
como grandes “atrapalhadores do progresso nacional” sejam gente como artistas e
intelectuais, professores e alunos de escolas públicas. Em meio a tantos
cortes, seja o Ministério da Cultura o escolhido. Em meio a tantos problemas, a
questão para a Educação tornou-se a Escola sem Partido. Obviamente, não é pelo
poder, nem pela representatividade, nem pelo barulho que tais grupos podem
fazer, ainda que tentem, mas porque eles representam este grão de mal-estar que
é preciso erradicar. Eles representam a possibilidade que tem que ser negada,
ou seja, de que existe vida fora da produção e do consumo, existe vida fora do
agora. É por isso que eles são representados como indolentes, aproveitadores e
favorecidos. Eles não estão sofrendo como o resto. E, em parte, isso é verdade,
eles sofrem de outra maneira.
A segunda forma de tratamento é a política, mas, não gostaria de reduzir
esse termo à política representativa, institucional, partidária, que se
transformou em um negócio. Isso não é política, é o negócio da política. É a
produção e o consumo do empreendedorismo das leis e do uso da violência. Precisamos falar de outro entendimento de
política, que é uma forma de entendermos que o futuro tem que ver com aquilo
que queremos. E o que a gente quer tem a ver com diferenças. E diferenças
se resolvem pela palavra. Então, é fundamental reinstituir a política propriamente
dita, porque nós paramos de fazê-la, porque nos convenceram de que tudo que ela
pode nos dar é este espetáculo farsesco de deputados e senadores. Estamos
fazendo outra coisa: gestão de sofrimento, família no poder, moral segregativa,
religião de resultados. Tais coisas são a antipolítica.
Política é o campo produtivo das diferenças:
palavra indeterminada sob condição de conflito, como na psicanálise.
- No seu livro
“Mal-estar, sofrimento e sintoma” você fala da “lógica do condomínio”. Essa
lógica baseada na exclusão é própria de sociedades como a nossa, com grande
nível de desigualdade? O que essa lógica explica sobre o Brasil que vivemos
hoje?
CD: Essa
lógica é coisa brasileira. O condomínio como tipo de habitação e moradia é uma
invenção que se disseminou pelo mundo, e nós não fomos pioneiros nisso. Há
condomínios por toda parte, mas por aqui eles assumiram uma função social que
nos é própria. O condomínio como ideia
social de vida, com o muro em estrutura de defesa contra supostos inimigos
violentos que ficaram de fora, com o síndico que é o arremedo de político,
agenciador das leis, o espaço público mimetizado e reconstruído como um
simulacro em forma privada, uma estética kitsch baseada
no corte de renda e no padrão de diferenciação por exagero e dissonância de
gosto. Até os nomes das coisas são uma paródia involuntária, “Alphaville” a
cidade dos “alfas”, de Godard, inspirada pelo Admirável Mundo Novo e sua sociedade de castas.
Nos EUA, quando surgiu a ideia de se morar em
condomínios, nos subúrbios, isso tinha o apelo do “venha para cá e resgate o
multiculturalismo. Restitua o sentido de comunidade que está na origem do nosso
país. Um lugar de diferenças reconciliadas”.
No condomínio brasileiro a ideia é: “vamos nos
defender juntos, porque o mundo é perigoso”. É outra coisa. Há uma espécie de
demissão do Estado. Você empreita as responsabilidades. Mantém alguma
responsabilidade com o síndico. E só. Dentro dessa lógica, o muro é um símbolo
que impede de ver o outro. Se não vejo, não existe. Se não existe, não me afeta,
se não me afeta estou dormindo tranquilo.
Mas, quando eu não vejo o outro que me constitui,
começam a aparecer nos meus sonhos questões como: “o que tem do outro lado do
muro?”. O sonho vira pesadelo. A vida perfeita vem com vizinhos barulhentos,
adolescentes agressivos, madames fúteis, com a experiência vazia da felicidade
entre iguais. Tudo fica pior que na realidade. É bicho que não tem na
realidade, mas o sonho de minha razão e o embrutecimento de minha gramática de
reconhecimento cria monstros. Na hora, uma parcela significativa de gente
decide sair do “condomínio”, o mundo revelou-se bem outro, e batemos de cara
contra o muro que nós mesmos criamos. Sua
fantasia do outro, como alguém com quem não é possível sentar e conversar,
tornou você sozinho e pobre. A rua passa a ser vista como uma floresta, cheia
de seres perigosos, porque eles podem ser apenas iguais a você mesmo, só que de
outro modo, de um modo que anos de condomínio te impedem de perceber.
Portanto, além da novidade política da internet,
devemos acrescentar a completa inexperiência política daqueles que ficaram
aprisionados durante anos em “condomínios”. Quando falo de condomínio não são
só os residenciais. A lógica do condomínio é também a que vigora nas prisões e
seus PCCs, nas favelas e comunidades, nos shopping centers e seus diferentes
muros simbólicos.
- Muito do que
falamos tem assustado porque ganhou forma e cara nas redes sociais e foi para
as ruas…
CD: Nas redes sociais
é possível fazer muita coisa boa, mas ruim também. É a primeira geração que tem
esse instrumento. Não dá para julgá-la esquecendo disso. Quando se descobriu a
radiação todo mundo achava bonitinho. A cocaína era usada como medicamento e
fazia parte da fórmula de refrigerantes. Diante das grandes invenções, seus
efeitos deletérios são descobertos muito depois. É um espaço semipúblico,
estamos aprendendo, mas não sabemos usá-lo. Nossa fronteira clara e distinta
entre o que é público - o que é espaço público e o que é interesse público -
está sendo redefinida. Também o que chamávamos de espaço privado, de
intimidade, de pessoalidade passa por uma reforma.
Como você tira o pior de alguém? Para além de suas
contenções de culpa, inveja, de educação? A sabedoria popular já nos diz que
basta dar poder e saberemos quem é aquela pessoa. E o palco da internet é
uma estrutura de poder. A mídia social te diz que agora você tem um palco, só
seu. Junto com isso vem a ilusão de que finalmente você será ouvido, e o que os
milhões que te faziam sentir irrelevante vão se dobrar diante de tuas palavras
e de tuas imagens. Pior que a infelicidade banal é a promessa de que ela é
passageira e será superada. Aí as pessoas se desvestem, e começam a
falar, há uma reverberação, duas curtidas e você começa a achar que você é o
Donald Trump. Obviamente, não estamos falando de poder real, se bem que ele
exista também nesta situação, mas principalmente do poder imaginário, aquele
que concorre para tornar a depressão uma epidemia mundial.
Na mídia tradicional não
tem isso. Você só ouve. É a voz do dono da empresa (jornal, televisão,
revistas). Antigamente havia uma expressão bem velha chamada “choque de
gerações”, para designar a tensão social que faziam dos jovens uma turma de
contestadores e revolucionários. Agora que todos são jovens, (adultescentes e adoledultos),
esquecemos que há uma geração no poder que foi nascida e criada pré-internet, e
outra geração que não consegue entender porque certos problemas não são
tratados de forma mais transparente, democrática e com participação direta dos
interessados, inclusive por meio da democracia digital. Fomos criados com a ideia de que quem fala
é que tem poder. Interessante perceber que o ódio e o ressentimento foram
feitos em torno de discursos, não das pessoas se encontrando face a face.
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Entrevista de Cristian
Dunker a Davi Carvalho
O Brasil no Divã/HD/Café Filosófico –
In:
www.plataformapoliticasocia.com.br/o-brasil-de-cara-contra-o-muro/
Créditos das Imagens
1a. Foto Christian Duker - Revista Época - fotode Walter Craveiro.
2a. Foto Christian Duker - www.revistaforum.com.br
3a. Foto Christian Duker - reprodução.
Capas de livros - reprodução.
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