Pensando quanto de coragem e de ousadia estamos a precisar, para sustentar a Esperança no ano que se inicia, trago o texto de uma palestra dada por Mia Couto durante um seminário em que se dialogava sobre a segurança. E Mia Couta falou do Medo.
Mia Couto nasceu em 1955, na Beira, em Moçambique e hoje reside na capital Maputo. É biólogo, jornalista e autor de mais de trinta livros, entre prosa e poesia. Recebeu diferentes prêmios literários, entre eles o mais prestigioso da língua portuguesa - Prêmio Camões de 2013.
Em 2014 recebeu o prêmio literário internacional, Neustadt Prize de 2014 - concedido pelo conjunto da sua obra - e é promovido a cada dois anos pela Universidade de Oklahoma e por World Literature Today, nos Estados Unidos. Mia Couto é também membro correspondente da Academia Brasileira de Letras. Com vocês o texto que o escritor leu para os ouvintes, na ocasião.
MURAR O MEDO
O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de
ganhar confiança em celestiais criaturas aprendi a temer monstros, fantasmas e
demônios. Os anjos quando chegaram já era para me guardarem, os anjos atuavam
como uma espécie de agentes de segurança privada das almas. Nem
sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade.
Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.
Na realidade, a maior parte da violência contra as
crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos.
Os
fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano, de que
estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da
guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas
por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura,
do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a mina casa natal, uma invisível mão roubava-me a
coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais
muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há
neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a
narrativa do medo tinha um invejável casting
internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que
lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses
fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo.
Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são
governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que
não deixou descendência. O preço dessa narrativa de terror foi no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da
luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.
Em nome da segurança mundial foram colocados e
conservados no poder alguns dos ditadores mais sanguinários de toda a história.
A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as
elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos. A
Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando
rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente.
E porque se tratam de entidades demoníacas, não
bastam os seculares meios de governação. Precisamos de investimento divino,
precisamos de intervenção de poderes que estão para além da força humana. O que
era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que
era religião passou a ser estratégia de poder. Para fabricar armas é
preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar
fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um
batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome.
Vivemos, como cidadãos e como espécie, em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas como, por exemplo, estas: por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento?
Porque motivo se gastou, apenas o
ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Por que razão
os que hoje tentam proteger os civis, na Líbia, são exatamente os que mais
armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que motivo se realiza mais
seminários sobre segurança, do que sobre justiça?
Se quisermos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo
usada todos os dias, em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da
guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século XXI, um, em cada seis seres
humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria
uma fração muito pequena do que se gasta em armamento.
A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que sobre uma grande parte de nosso planeta pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem
darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como
militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de
discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está
provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que
fazer prova de coerência, nem de ética e nem de legalidade.
É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande
Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões.
A Muralha
não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais
chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões que realmente
aconteceram. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados
na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma
metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.
Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje, no mundo, muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós do sul e do norte, do ocidente e do oriente.
Citarei Eduardo Galeano acerca disto, que é
o medo global:
“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os
que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da
fome, têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm
medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras”. E, se calhar -
acrescento agora eu - há quem tenha medo que o medo acabe!
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A Editora Companhia das Letras, que publica os livros de Mia Couto no Brasil, escreve que o seu livro “Vozes Anoitecidas”, de 1986, projetou o escritor moçambicano para o mundo. O seu romance "Terra Sonâmbula" (2005), agora com edição de bolso no Brasil, é considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Com ele, “o autor lançou as bases daquela que viria a ser uma das principais características de sua obra ficcional: a reconstrução de laços entre o registro oral e escrito”. E comenta que, nos seus artigos, “transparece a preocupação de provocar debate, sugerindo alternativas inovadoras, questionando modelos de pensamento e interrogando os lugares-comuns que aprisionam o nosso olhar perante os desafios da atualidade. O prazer já encontrado na escrita de quem se diz estar reinventando a língua portuguesa, ressurge agora no gosto de pensar o nosso mundo e o nosso tempo”.
Algumas obras do autor, por ordem cronológica:
Na berma de nenhuma estrada (2015)
Terra sonâmbula - edição de bolso (2015) -
Contos do nascer da terra (2014)
A menina sem palavra (2013)
Cada homem é uma raça (2013)
Vozes anoitecidas (2013)
A confissão da leoa (2012)
Estórias abensonhadas (2012)
E se Obama fosse africano? (2011)
Antes de nascer o mundo (2009) O fio das missangas (2009) –
O gato e o escuro (2008) -
Venenos de deus remédios do diabo (2008) A varanda do frangipani (2007)
Terra sonâmbula (2007)
O outro pé da sereia (2006) -
O último voo do flamingo (2005) Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2003). ------------------- Texto: Murar o Medo in: www.vermelho.org.br/noticia/2012 Conferência pronunciada em 11/2011, na Conferência de Estoril - Fundação Cascais, que ocorre anualmente em Portugal. 1. Arco-íres - arquivos do blog "Espaço Poese"; 2. Mia Couto - www.outraspalavras.net 3. Anjo - www.canstockphoto.com.br 4. Flor na espuma do mar - www.canstockphoto.com.br 5. Família sob guarda-chuva - www.canstockphoto.com.br 6. Aviões de Guerra - www.canstockphoto.com.br 7. Fome - Escultura de Abelardo da Hora - Recife (Brasil) - foto de Vanise Rezende - exposição em 2014. 8. Mulher ameaçada - www.canstockphoto.com.br 9. Grande Muralha chinesa - www.pt.wikipedia.org 10. Arranha-ceus e favelas - www.canstocphoto.com.br
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