Psicanalista dá pistas de como atravessar o momento
de perseguição conservadora, buscando compreender
como agem os que a promovem;
e como refinar a indignação dos que resistem
Por: Marcos Donizetti de
Almeida,
Le Monde Diplomatique – Brasil
Publicado em: 01/02/2019
Vivemos uma
crise política e social, uma crise que é também e principalmente dos afetos e
das relações. Há um sofrer individualizado, vivido de maneira ímpar pelos
sujeitos e presente em seus relatos de medo, frustração e ameaças constantes. E
há um sofrer generalizado, marcado pelo enfraquecimento dos laços, pela
desesperança e pelo ódio sempre presente, antes adormecido e hoje
orgulhosamente sustentado e atuado.
É um ódio performático, que se pretende
manifesto em defesa de uma velha teia de privilégios e ao mesmo tempo contra um
outro que foi eleito o bode expiatório da vez, a ser combatido e eliminado pois
imaginariamente culpado pelos males da nação e inimigo de uma pátria que só
existe como fantasia. Nos consultórios, no convívio pessoal e nas redes sociais
são palpáveis a ansiedade, o cansaço, a sensação paralisante de impotência e a
angústia, o desamparo.
A angústia,
porém, pode ser combustível da ação, e cabe o questionamento a respeito do que
pode ser feito para lidar com esse estado de coisas tentando permanecer
minimamente saudável.
O resultado
desta inquietação minha é o que chamo de pequeno manual de conduta e
resistência a essa estratégia de controle do discurso e da libido tão
facilmente identificável nas ações de quem investe neste cenário de crise,
insegurança e confronto generalizados.
Não raro
vemos declarações de pessoas próximas ao presidente eleito falando em “guerra
cultural”, e não surpreende que a gestão da comunicação do novo governo, desde
a campanha, tenha elementos de estratégia militar, de “guerra híbrida”, o assim
chamado firehosing. A atuação se dá em duas frentes: num primeiro
nível, declarações cada vez mais estapafúrdias e revoltantes, sem nenhum
compromisso com fatos ou lógica, com frequentes idas e vindas, com avanços
aparentes e desistências. O objetivo aí é o controle da pauta. É uma maneira de
controlar não só a imprensa, e essa tem sido a estratégia de Trump desde o
início de seu mandato, como também os temas das conversas nas ruas, bares e
condomínios.
O uso das
postagens em massa impulsionadas no WhatsApp de maneira supostamente ilegal é o
dado novo e até o momento um grande diferencial do firehosing à
brasileira. Não sei por quanto tempo isso funcionará, mas é assim, controlando
o discurso e confundindo a todos, que as medidas impopulares, essas sim
calculadas e planejadas, do segundo nível serão postas em prática sem maior
resistência. A declaração absurda toma de assalto as redes sociais enquanto uma
emenda constitucional é votada, por exemplo.
O projeto da
“escola sem partido”, cuja votação pode acontecer a qualquer momento, e as
mudanças no texto da Lei Antiterrorismo são estratégias de controle do discurso
também, óbvio, mas talvez eles nem esperem tanto essas aprovações. Mantê-los em
pauta é ótimo para garantir a atenção e a tensão da oposição e da imprensa.
Além do
controle do discurso e do diversionismo das pautas, há a atuação sobre a
libido, o ânimo daqueles que são oposição. É um jogo de manipulação da
indignação também. Acontece que a indignação é em algum grau catártica.
Para nosso
“aparelho psíquico”, a indignação antecipada com algo tem quase o mesmo efeito
de vivenciar de fato esse algo ou de agir contra ele. Quando eu compartilho uma
fala do presidente dizendo “olha o absurdo que ele está falando”, minha
indignação implica direcionamento de energia para esse fato, um consumo de
libido, e consigo até mesmo algum gozo, uma satisfação secreta e mesmo
inconsciente, na captura também da indignação do meu grupo, garantida pelo
algoritmo no caso das redes sociais. Há uma sensação de pertencimento mesmo nos
afetos negativos vivenciados coletivamente.
Grosso modo, dado que libido é um recurso finito que apenas muda de um ponto de
referência a outro, o que “gastei” em meu gozo catártico indignado falta em
outras atividades. É uma estratégia de controle dos corpos comum, clássica,
potencializada pelas redes sociais. Um exemplo é a hipersexualização das
relações e do ambiente, via mídia e publicidade, por exemplo, que resulta em
sujeitos com menos libido investida nos encontros sexuais.
O fato é que a
estratégia é gerar indignação para controlar a pauta e também garantir a
paralisação dos sujeitos, que ficam meio que petrificados, sem forças para
resistir. O resultado é o sofrimento psíquico potencializado e amplificado, com
mais depressão, desamparo e sentimentos de falta de sentido. De quebra, a
indignação e o medo gerado na oposição alimentam parte da base apoiadora de
Bolsonaro. Esses jovens fazendo fotos pretensamente ameaçadoras com armas na
mão que vimos após a eleição estão implorando pelo medo que vai alimentar uma
fantasia fálica muito primitiva de poder neles. Eles se alimentam da indignação
e do assombro que esperam causar no outro, e não oferecer o que pedem é
confrontá-los com um dado de realidade.

Vá ver um
filme, ler um livro, ouvir a música que você ama ou um disco novo. Consuma e
produza arte, que é uma maneira e tanto de elaborar angústias e mobilizar
forças, de forma crítica, inclusive. A arte ajuda a seguir e a mostrar que a
vida continua lá fora. Convide alguém, porque estar junto e compartilhar amor é
uma forma de proteger os seus e de alimentar esperanças, conseguir força,
redirecionar a libido.

É
preciso observar os movimentos “macro” do regime, saber onde eles estão
efetivamente investindo. Isso estará
sempre nas entrelinhas das declarações e do que aparece no noticiário. Há medo
e indignação, claro que há, mas, se nos deixamos capturar por essa dinâmica,
fazemos o jogo deles. Então, enquanto investimos em formas de ajudar quem está
precisando resistir, precisamos nos cuidar e não sucumbir à ansiedade e à
confusão propositada dos discursos. Não podemos esquecer que é preciso mais do
que nunca estar com as pessoas. Não é sem motivo que regimes totalitários em
algum momento proíbam encontros e reuniões. O contato e a interação são
revolucionários.
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*Marcos
Donizetti de Almeida é psicanalista.
Fonte
do texto:
https://outraspalavras.net/outrasmidias/para-resistir-ao-avanco-pseudo-moralista/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=
Créditos
das imagens:
1.Charge de Angeli
2.Outras imagens: www.canstockphoto.com.br.
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