Quando a viagem é longa, a escolha de boas leituras, ou a sorte de ter ao lado alguém que estabeleça uma conversa que torne a viagem agradável é coisa fundamental.
Num longo percurso até mesmo os bons de conversa e de leitura também aproveitam o tempo para atualizar seus e-mails, ou escrever anotações de viagem.
Enquanto atravessava o oceano Atlântico da cidade do Recife à Lisboa, tive uma surpresa inesperada: na revista da companhia aérea encontrei um excelente artigo assinado por Gonçalo M. Tavares, intitulado: "Zurique e as rugas, Dublin e o respeito pela leitura".
Faço aqui uma síntese do que apreendi:
Num longo percurso até mesmo os bons de conversa e de leitura também aproveitam o tempo para atualizar seus e-mails, ou escrever anotações de viagem.
Enquanto atravessava o oceano Atlântico da cidade do Recife à Lisboa, tive uma surpresa inesperada: na revista da companhia aérea encontrei um excelente artigo assinado por Gonçalo M. Tavares, intitulado: "Zurique e as rugas, Dublin e o respeito pela leitura".
Faço aqui uma síntese do que apreendi:
1. Em Zurique existe um contador de rugas (chamam-lhe o contabilista de rugas ou o contabilista facial dos dias). A cidade atribuiu um prêmio que nada tem a ver com a idade cronológica. Ganha quem tiver o maior número de rugas. Valoriza-se isto: a paciência. Uma paciência facial.
2. Em Dublin, comemora-se o teatro de uma forma efusiva, no meio da rua, com os passantes da cidade. Seu povo tem adoração pelo livro, e respeito pelo ato da leitura. No entanto, por vezes o que acontece, em tempos aparentemente comuns, parece pertencer a uma peça teatral ou a um sonho.
Consideremos um fato trazido pelo jornalista da revista: no centro de Dublin uma multidão avança em silêncio. Estão ali pessoas bem diferentes, mas vemos que nas suas costas há algo em comum. Todos têm um papel colado com fita colante. E' uma brincadeira? Alguém lhes colou algo nas costas sem eles o notarem? Não sabemos. Mas sim, agora está claro: são páginas de uma história, de um romance policial. Observando com mais atenção vemos que as páginas estão numeradas, no entanto há algo que parece tornar difícil a possibilidade de ler este livro. Cada homem e cada mulher da multidão tem uma página colada às costas, mas a página 4 pode estar ao lado, por assim dizer, da página 76.
De fato, a multidão é, por definição, um agregado desorganizado de pessoas e isso ali é evidente. Porém, nas ruas de Dublin, subitamente, alguém se afirma como leitor. Eu sou leitor! E levanta o braço. Eu quero ler o livro que está nas vossas costas. Quero saber qual o crime e quem o cometeu! E assim, sem se saber bem porque, e qual a autoridade que o justifica - se não essa, a de ser leitor, a de querer ler aquele livro - subitamente, então, aquele homem, aquele leitor, começa a impor ordem à multidão; ou melhor, a por a multidão na ordem sequencial. O leitor vai passando pelas costas das pessoas e vai dizendo: tu para aqui, tu para ali. O leitor vai então pondo em ordem as páginas do livro que as pessoas levam nas costas.
E, em cerca de vinte minutos, o trabalho está feito. O homem com a página 1 nas costas está ao lado do homem com a página 2 nas costas que, por sua vez, está ao lado esquerdo da mulher com a página 3 nas costas. E assim sucessivamente.
O leitor, ou podemos chamar-lhe o pequeno ditador? Pois sim, o leitor pediu há pouco, exigiu! a imobilidade daquelas páginas. Ele não consegue ler em andamento, explicou. E assim estamos. Há uma multidão de homens e mulheres livres que ali estão, parados, imóveis, enquanto o leitor vai passando, bem lentamente, pelas suas costas. Chama-se a isto: respeito pelo livro, respeito pelo leitor, respeito reverencial pela leitura.
As páginas já lidas vão sendo libertadas. E é essa a sensação, de fato, a de libertação - como um leitor que rasga a página que acabou de ler e a atira para o ar num dia de grande vento. Pode ir - diz o leitor para a página 9. Já te li. E a página 9 afasta-se do grupo; dá uns passos, primeiro lentos, mas depois aumenta o ritmo. Quase salta. Pode ir para casa. Está contente.
O leitor, esse, vai avançando; lendo atenta e lentamente as costas de cada um. O crime já foi cometido (na página 8). Falta saber quem é o criminoso e isso só se saberá, como é de bom costume nas novelas policiais, na última linha. A última página do livro, essa, então, está lá atrás, bem lá atrás, e já puxou de uma cadeira. Um pequeno protesto manso, tranquilo. Não se vai embora, mas mexe-se ligeiramente - o que é já quase, nas condições gerais, um ato de insubordinação.
Em menos de duas horas, o leitor não estará por ali, nas suas redondezas, nas suas costas. Ele pode, então, descansar. E' a página decisiva, não fará a desfeita de, por impaciência, estragar o ato de leitura. Mas esperará sentado pelo leitor. Tem direito a isso, mesmo em Dublin.
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