Neste 19 de abril queremos homenagear esses nossos irmãos que nos acolheram em suas terras nativas, desde quando os primeiros portugueses puseram os pés nessas terras ameríndias. Há inúmeros artigos, neste abril comemorativo, que falam da situação dos indígenas brasileiros, em tempos de Covid-19. Selecionei este, do El País Brasil, por me parecer mais adequado aos interesses dos leitores. Sabe-se que há uma Frente Parlamentar da qual fazem parte duas deputadas indígenas, que estão acompanhando as questões práticas de assistência, na área governamental. De sua parte, as comunidades indígenas desde março que cumprem a quarentena, mas estão sempre de sobressalto pela segurança de suas comunidades.
Acampamento Terra Livre, em Brasília. Foto: Caarl de Souza / AFP
A pandemia e a luta
indígena
em um planeta que tem febre
A história dos povos indígenas mostra que a
pandemia mata, a fome mata e a ausência do Estado mata. Matam em velocidades
diferentes
Por: Célia Xakriabá e Edmundo Antonio
Dias Neto Júnior
Em: 19/04/2020
No
território Xakriabá, na região norte de Minas Gerais, os estudos começam com os
mais jovens ouvindo os anciãos e lideranças do povo. Com eles, nunca se aprende
que em 1500 o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral. O achamento do
país foi uma conquista que ainda perdura.
O antropólogo Darcy Ribeiro, no livro O povo brasileiro, observou
que a chegada da branquitude desencadeou, “desde a primeira hora, uma guerra
biológica implacável. De um lado, povos peneirados, nos séculos e milênios, por
pestes a que sobreviveram e para as quais desenvolveram resistência. Do outro
lado, povos indefesos, que começavam a morrer aos magotes. Assim é que a
civilização se impõe, primeiro, como uma epidemia de pestes mortais.”
Essa
história perpassa o presente. Em 04 de abril de 2020, patrulhas e guinchos
da Polícia Militar adentraram a terra indígena Xacriabá para
verificar a documentação de motos e carros de membros daquele povo. Estavam em
seu território, em quarentena, como milhões de brasileiros que, procurando
resguardar-se da pandemia, ficaram em suas casas. Cenas de violência simbólica.
Enquanto
o presidente Jair Bolsonaro dizia que a pandemia que assusta o mundo é uma
“gripezinha”, mais sábia (e antenada com as recomendações da Organização Mundial da Saúde) foi a decisão do povo Xacriabá,
que desde o dia 19 de março, como medida de proteção, havia fechado seu
território, onde o isolamento social é para cuidar da morada coletiva (para não
adoecer a morada interior).
Nesse
contexto pandêmico, o mês de abril, que tradicionalmente é marcado pelas
rememorações da história indígena no país, pela realização do acampamento Terra Livre e por marchas públicas,
evoca de maneira forte o momento inicial da conquista e as constantes violações
a direitos dos povos originários. Este ano, os povos indígenas decidiram ficar
em suas moradas. A sua história mostra que a pandemia mata, a fome mata, as
armas de fogo e a violência matam, a injustiça mata, a colonização mata, o
racismo mata, o veneno mata, a mineração mata, a ausência do Estado mata. Matam
em velocidades diferentes.
A
Constituição de 1988 reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições dos índios e seus direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam. Quando a Constituição se refere ao patrimônio
cultural, ela fala de identidade, de ação, da memória de diferentes grupos que
formam a sociedade brasileira. Ela protege formas de expressão, modos de criar,
fazer e viver. As manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional também encontram proteção em um Estado que, portanto, é pluriétnico e
multicultural. Mas nem todos compreendem toda essa diversidade e riqueza, como
se elas caminhassem inelutavelmente para se tornarem homogêneas, ou seja, como
se a tradicionalidade tivesse de se modernizar.
Para
o presidente da República, por exemplo, “o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez
mais o índio é um ser humano igual a nós...” A fala, que não esconde o
preconceito, expõe um projeto governamental assimilacionista. Uma das facetas
da aculturação imaginada é o que se pode chamar de “agriculturação”, a
imposição de um modo de pensar a ocupação dos territórios indígenas, que
violenta a identidade dos povos originários e tenta fazer nova catequese, a de
uma visão de mundo e de modos de produção vindos de fora.
Para
o projeto de agriculturação, os povos indígenas têm muita terra, mesmo que estejamos atrasados (há mais de 26 anos) em concluir a
demarcação das terras indígenas, que a Constituição estabeleceu,
deveria ser concluída no prazo de cinco anos a partir de 1988. A fala de Jair
Bolsonaro, de que, se eleito, não haveria “um centímetro a mais para
demarcação” de terras indígenas, é expressão desse projeto.
A desterritorialização é uma das marcas da ditadura implantada no país em
1964, que via os indígenas como um obstáculo ao modelo de
desenvolvimento proposto pelos militares. A Comissão Nacional da Verdade estima que pelo menos 8.350
indígenas tenham sido mortos no período de suas investigações. A não
implementação de reparação e de medidas de não repetição, como as que foram recomendadas
pela comissão, mantém pulsante o agir de violência da história brasileira.
Segundo dados preliminares divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, sete
lideranças indígenas foram mortas em conflitos no campo no ano passado, maior
número da década.
A
“agriculturação” se manifesta em várias frentes, como no projeto de lei nº 191,
apresentado este ano à Câmara dos Deputados, para, a pretexto de regulamentar a
Constituição, permitir a mineração em terras indígenas, propondo um modelo
etnocêntrico apartado da cosmovisão indígena.
Felizmente,
as marchas e contramarchas da história deixam também avanços, como o fortalecimento do movimento indígena. São travas em períodos de retrocessos. É o caso
também da Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, promulgada no país em 2004, que estabelece a
obrigação de que os povos indígenas sejam consultados previamente sobre
proposições legislativas que os afetem diretamente, como o acima mencionado projeto de lei nº
191/2020.
A
esse panorama de tensões, violações e ameaças a direitos, soma-se, agora, o
enorme desafio trazido pelo novo coronavírus. A chegada da pandemia encontra um
Poder Executivo federal em constante conflito com os demais Poderes, incapaz de
com eles se relacionar em harmonia, como propugnado na Constituição. A nota positiva é que o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional vêm
estabelecendo limitações importantes à atuação do Governo federal. O sistema federativo, de sua parte, está
fortalecido e permite que governadores e prefeitos ocupem o aparente vazio de
poder que decorre, na verdade, da particular visão de mundo presidencial.
A
pandemia que hoje todos vivemos cria um mundo que ainda não se mostrou, cujas bases estão em
reconstrução. A sociedade busca urgentemente a cura, e precisa não
apenas do princípio ativo do remédio a ser encontrado, mas também de ativar
nossos princípios de humanidade.
Como
tem dito a primeira autora deste artigo, a humanidade tem fome de
“ressentimentalizar” a coletividade e a solidariedade, de respeitar o luto e as
cicatrizes do planeta (um planeta que há um bom tempo está com febre), de curar a casa interior,
para não perder a esperança. É ela que move o reencantamento pela vida.
------------------------------------------
Fonte da
matéria:
Célia Xakriabá é cientista Social, mestra em Desenvolvimento
Sustentável pela Universidade de Brasília e doutoranda em Antropologia pela
UFMG.
Edmundo Antonio Dias Netto Junior é procurador da República em Belo
Horizonte e representante do Ministério Público Federal no Conselho Nacional
dos Povos e Comunidades.
Nota: As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma delas, e deseja que seja retirada desta publicação, por favor entre em contato conosco fazendo um comentário nesta postagem.
Nota: As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma delas, e deseja que seja retirada desta publicação, por favor entre em contato conosco fazendo um comentário nesta postagem.
Nenhum comentário :
Deixe seu comentário: