Nestes dias em que estamos isolados em nossos refúgios domésticos, para nos proteger da pandemia, talvez consigamos refletir um pouco sobre os outros que, por razões da profissão ou da necessidade de sobrevivência, necessitam trabalhar em serviços de apoio à população.
De início, é importante que consideremos o dom de poder estar em nossos refúgios domésticos, alguns
em casas com jardins, ou varandas no apartamento. Esses, têm a possibilidade de ver os retalhos de luar, o céu estrelado, o sol nascente nas madrugadas insones, e um poente avermelhado, na despedida do dia.
em casas com jardins, ou varandas no apartamento. Esses, têm a possibilidade de ver os retalhos de luar, o céu estrelado, o sol nascente nas madrugadas insones, e um poente avermelhado, na despedida do dia.
Há quem, por razões profissionais (como médicos, enfermeiros e diversos agentes de saúde) não pode voltar à sua casa e, mesmo quando voltam, é para se recolherem sem abraços nem beijos, num quarto isolado, até que a pandemia os devolva ao convívio com a família.
Por outro lado, há milhares de pessoas que - por inúmeras razões resultantes da má distribuição de renda e de oportunidades - fazem dos bancos de praças e beiras de rua o seu lugar de sobrevivência. Sabemos muito bem que, mesmo que tenhamos ralado para chegar onde queríamos, não é culpa dos outros, os descartados sociais, estarem no fundo do poço, ou, para ser mais realista, na lama, por trás dos tapumes que chamamos favela.
A nossa "oração" carece de mais atitude do que de palavras, precisa ser mais pé no chão, mais solidária e atenta ao clamor dos empobrecidos.
E, por favor, não deixem soar dentro de si, o eco do homem que rezava - segundo os Evangelhos - para agradecer a Deus por ele "não ser como os outros"... pois ainda há os que vivem a olhar para si, contemplando-se feito Narciso, uma figura mítica que buscava o outro, igual a si, no espelho das águas.
A nossa "oração" carece de mais atitude do que de palavras, precisa ser mais pé no chão, mais solidária e atenta ao clamor dos empobrecidos.
E, por favor, não deixem soar dentro de si, o eco do homem que rezava - segundo os Evangelhos - para agradecer a Deus por ele "não ser como os outros"... pois ainda há os que vivem a olhar para si, contemplando-se feito Narciso, uma figura mítica que buscava o outro, igual a si, no espelho das águas.
O que trago hoje para vocês são dizeres de poetas e pensadores da modernidade, e das páginas encardidas de escrituras das religiões mais antigas, sobre o amor pelo outro, quem quer que ele seja. Que essa leitura nos ajude a rever as nossas ações no dia a dia, e os nossos pensares recônditos.
Mais do que isto.
Precisamos enxergar o julgamento inadequado que, por vezes, fazemos de alguém com quem dividimos tarefas, ou que estão ao nosso serviço, como os domésticos, porteiros, taxistas, o pessoal da limpeza das ruas, e os muitos jovens que hoje vivem numa moto ou bicicleta, sem contrato de trabalho, no vaivém das entregas em domicílio, arriscando suas vidas para sobreviverem.
O que o amor fraterno nos sugere, neste momento, quando essas pessoas continuam a nos servir?
Esta poderia, também, ser uma boa ocasião para revermos nossas atitudes com quem compartilhamos os ideais humanitários de fraternidade, de justiça, de igualdade e de paz. A ideia de alcançar o poder "para fazer o bem" "para dar um jeito no país" pode nos encantar de tal modo, que esquecemos de começar a construir laços de diálogo e fraternização com outros, que estão do mesmo lado, mas não é do mesmo partido, ou não parte da mesma proposta que desejaríamos. Sairemos todos perdedores por esse grande equívoco.
Em casa, podemos aproveitar esse tempo de maior convivência, sem o estresse do trabalho, para repensar o nosso jeito de amar o companheiro ou a companheira de vida, quando for o caso. É sempre tempo de enxergar os nossos exageros de querer que o outro pense e aja como nós, sem deixar a ele ou a ela o espaço de ser o que são, como são, para que o amor amadureça no diálogo e na reciprocidade.
Se ficarmos esperando que seja o outro a dar o primeiro passo,(companheiro ou companheira, pai ou mãe, filho ou filha, namorado ou namorada, vizinho ou amigo) esse cálculo pode ser um indicativo de que não não é o amor que me move. Pode-se chamar de competição, negociação, ato civilizatório de convivência. Aqui, no entanto, propõe-se o amor e a reciprocidade.
Vejamos o que dizem escritores e líderes religiosos, profetas ou deuses, a depender da nossa fé pessoal.
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Clarice Lispector - Sou como você me vê. / Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania / Depende de quando e como você me vê passar. (i)
Chiara Lubich - “Se tentares viver de amor verás que, nesta terra, convém que faças a tua parte – a outra nunca sabes se virá, nem é necessário que venha. Por vezes ficarás
decepcionado, mas jamais perderás a coragem se te convenceres de que, no amor, o que vale é amar”. (ii)
João Guimarães Rosa - Deus nos dá pessoas e coisas para aprendermos a alegria... / Depois, retoma coisas e pessoas, para ver se já somos capazes da alegria sozinhos... / Essa, a alegria que ele quer. (iii)
Sophia de Mello B. Andresen – “E a caridade de que ele falava não era a conhecida e pacífica praxe das comedidas esmolas regulamentares. Era um mandamento de Deus solene e rigoroso, uma palavra nua de Deus atravessando o espírito do homem”. (iv- p.57)
“E, de repente, pareceu ao velho bispo que todo o abandono do mundo, todo o sofrimento, toda a solidão, o olhavam de frente, no rosto daquele homem. Coisa difícil de olhar de frente”. (iv-p.94)
“Muitos anos passaram. O homem certamente morreu. Mas continua ao nosso lado. Pelas ruas”. (iv-p.161)
Eduardo Galeano - "Nem dez pessoas iam aos últimos recitais do poeta espanhol Blas de Otero. Mas quando Blas de Otero morreu, muitos milhares de pessoas foram à homenagem fúnebre, feita na arena de touros em Madri. Ele não ficou sabendo". (v)
"Sim, sim, por mais machucado e fodido que a gente possa estar, sempre é possível encontrar contemporâneos em qualquer lugar do tempo e compatriotas em qualquer lugar do mundo. E sempre que isso acontece, e enquanto isso dura, a gente tem a sorte de sentir que é algo na infinita solidão do universo: alguma coisa a mais que uma ridícula partícula de pó, alguma coisa além de um momentinho fugaz". (vi)
Leonardo Boff - "O amor é uma arte combinatória feita com sutileza, que demanda capacidade de compreensão, de renúncia, de paciência e de perdão e, ao mesmo tempo, de desfrute comum do encontro amoroso, da intimidade sexual, da entrega confiante de um ao outro, experiência que serve de base para entendermos a natureza de Deus, pois Ele é amor incondicional e essencial". (vii)
Budismo - Não firas os outros, para que depois não venhas a reencontrar-te ferido. (vii)
Confucionismo - O máximo da amável benevolência é: não fazer aos outros aquilo que não gostarias que eles fizessem contigo. (viii)
Taoismo - Respeita a vitória do teu próximo como se fosse a tua, e a desgraça do teu próximo como se fosse a tua. (ix)
Induísmo - Este é o cerne do dever: não fazer aos outros aquilo que te faria mal. (x)
Islamismo - Nenhum de vós é verdadeiro crente se não desejar para o seu irmão aquilo que deseja para si mesmo. (xi)
Provérbio Ruandês - Aquilo que deres aos outros será dado a ti. (xii)
Antigo Testamento - Aquilo que é odioso para ti, não o faças ao teu semelhante. Esta é toda a lei. (xiii)
Cristianismo - Tudo o que vocês desejarem que os outros façam a vocês, façam também a eles. Pois nisso consistem a Lei e os Profetas. (xiv)
Ubuntu – “Eu sou aquilo que tu és em mim”. (xv)
Concluo com a singela e profunda percepção de Mario Quintana, quando afirma: "A arte de viver é simplesmente a arte de conviver... Simplesmente, disse eu? Mas, como é difícil!" (xvi)
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Fontes das Citações:
(i) As frases citadas de Clarice Lispector e de Guimarães Rosa foram retiradas de: www.pensador.uol.com.br/frase;
(ii) Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares. In: Ideal e Luz.
(iii) Sophia de Mello Breyner Andersen, poetisa portuguesa - In: Contos Exemplares, Ed. Figueirinhas (Lisboa (PT), 15ª edição, 1985.
(iv) Galeano, Eduardo. O livro dos abraços, Lp&M Pocket, p.211
(v) Galeano, Eduardo. O livro dos abraços, Lp&M Pocket, p.245
(vi) The Buddha Vadanararga – 5,18 – “O Budismo é um sistema filosófico e religioso indiano, fundado por Siddharta Gautama (563-483 a.C.), o Buda, que parte da constatação do sofrimento como a condição fundamental de toda existência, e afirma a possibilidade de superá-lo através da obtenção de um estado de bem-aventurança integral, o nirvana. O budismo não professa a existência de nenhum deus”.
(vii) Confucio, Analects (25,23) – Confucianismo – “Designação atribuída no Ocidente às doutrinas e ao sistema de pensamento elaborado pelo filósofo e teórico político chinês K'ung ch'iu (tb. dito Khong-Fon-Tseu, K'ung-fu-tzu, K'ung-tzu ou, no Ocidente, Confucio [551 a.C.- 479 a.C.]) e por seus continuadores [Foi doutrina política, religião e código de ética oficial do império chinês de 136 a.C. até 1912.]”.
(viii) Loo Tzu Tai Shang Kan Ying Phen – 213-218 – O Taoismo da cultura chinesa, é uma “doutrina mística e filosófica formulada no Século VI a.C. por Lao Tse e desenvolvida a partir de então por inúmeros epígonos, que enfatiza a integração do ser humano à realidade cósmica primordial, o tau, por meio de uma existência natural espontânea e serena [Seu caráter contemplativo, na vida religiosa chinesa, é o principal rival do racionalismo pragmático que caracteriza o confucianismo.]”.
(ix) Mahabharata Islamismo (Maometanismo, Mulçumanismo) – diz-se de “religião caracterizada por monoteísmo estrito e síntese entre fé religiosa e organização sociopolítica, fundada pelo profeta árabe Maomé (570 ou 580-632), que codificou sua doutrina em um livro sagrado, o Corão, que se tornou o fundamento escrito da fé muçulmana”.
(x) Provérbio Ruandês - Religião tradicional da República Ruandesa (Ruanda), país do Centro-Leste africano.
(xi) Ubuntu – Filosofia seguida por alguns povos africanos, prestigiada por Mandela e pelo cardeal Desmond Tutu, cuja centralidade é “o respeito pelo outro”;
(xii) Maomé, 13º dos 40 Hadiths Nawawi – Ver "islamismo".
(xiii) 31, Sabbat Ta Iaud Babilonese – O hebraico é a língua da família semítica falada pelos hebreus, na qual foi escrito quase todo o Velho Testamento (a Bíblia aceita pelo judaísmo); No século XIX, após transformações históricas, o hebraico ressurgiu com o movimento sionista e tornou-se língua oficial do Estado de Israel;
(xiv) Jesus Cristo, no Evangelho segundo Mt. 7,12
(xv) Leonardo Boff - https://leonardoboff.wordpress.com/2020/04/06/como-cuidar-de-si-e-dos-outros-em-tempos-de-coronavirus/?
(xvi) Mário Quintana - www.pensador.uol.com.br/frase
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Crédito das Imagens:
1. Abelardo da Hora - "Enamoramento" - foto de exposição realizada no Recife.
2.Narciso - Caravaggio - https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Narcissus-Caravaggio_(1594-96).jpg
3. Clarice Lispector - www.lounge.obviousmag.org
2.Narciso - Caravaggio - https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Narcissus-Caravaggio_(1594-96).jpg
3. Clarice Lispector - www.lounge.obviousmag.org
4. Chiara Lubich - www.focolares.org - foto divulgação
5. Eduardo Galeano - www.escritores.org.index.jpg
6. Leonardo Boff - twitter.com.jpg
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