Mas, há multidões que não têm onde apoiar a cabeça e se isolarem. São as centenas de irmãos nossos que vivem nas ruas. É certo que nas ruas não podem ficar. Talvez, será o momento de governadores e prefeitos perceberem esse dilema, e promoverem - como alguns já estão fazendo - um espaço para eles. Há ainda as multidões que se apertam em seus cubículos, nas favelas. Mais um problema evidenciado pelo Covid-19. Quem sabe, lembrar-se-ão os novos prefeitos e governadores dessa realidade, no seu programa de governo!?
Voltando ao texto que hoje publicamos. Achei tão precioso todo o texto de Leornardo Boff que - para nos ajudar a refletir mais profundamente, dividi o original em três partes que serão postadas de modo subsequente:
1ª parte - 5ª feira - 09/04/2020:
COVID-19 - CUIDAR DE SI E DOS OUTROS PARA NOS SALVAR JUNTOS
2ª parte - Sábado - 11/04/2020:
CUIDAR DOS NOSSOS SONHOS, DOS NOSSOS ATOS E ATITUDES
3ª parte - Domingo - 15/04/2020:
CUIDAR DAS NOSSAS RELAÇÕES DE AMIZADE E AMOR
Observação - Os grifos e cores são nossos.
-------------------------------------------------------------------------
COVID-19 -
CUIDAR DE SI E DOS OUTROS
PARA NOS
SALVAR JUNTOS
Postado em 06/04/2020
Vivemos tempos
dramáticos sob o ataque do corona-vírus, uma espécie de guerra com um inimigo
invisível contra o qual todo o arsenal destrutivo de armas nucleares, químicas
e biológicas construídas pelas potências militaristas, são totalmente inúteis e
até ridículas. O Micro (vírus) está derrotando o Macro (nós).
Temos que nos cuidar
pessoalmente e cuidar dos outros, para podermos nos salvar juntos. Aqui não
valem os valores da cultura do capital, a competição, mas a cooperação. Não o
lucro, mas a vida, não a riqueza de uns poucos e a pobreza das grandes
maiorias, não a devastação da natureza, mas o seu cuidado. Estamos dentro do
mesmo barco e sentimos que somos seres que dependemos uns dos outros. Aqui
somos todos iguais, e com o mesmo destino feliz ou trágico.
1ª parte - O CONFINAMENTO SOCIAL
O que somos enquanto humanos?
Esse tempo de isolamento
social forçado, é uma oportunidade única para pensarmos sobre nós mesmos e sobre o que realmente
somos.
Sabemos quem
somos? Qual é o nosso lugar no conjunto dos seres? Para que existimos? Por que
podemos ser acometidos pelo coronavírus e até morrer? Para onde vamos?
Refletindo sobre estas perguntas inadiáveis, cabe
lembrar a ponderação de Blaise Pascal (+1662). Ninguém melhor do que
ele, matemático, filósofo e místico, para expressar o ser complexo que somos:
“Que é o ser humano na natureza? Um nada diante
do infinito, e um tudo diante do nada, um elo entre o nada e o tudo, mas
incapaz de ver o nada de onde veio e o infinito para onde vai” (Pensées § 72).
Nele se cruzam os quatro infinitos: o infinitamente pequeno, o infinitamente
grande, o infinitamente complexo (Teihard de Chardin) e o infinitamente
profundo.
Na verdade,
não sabemos bem quem somos. Ou melhor, desconfiamos de alguma coisa na medida
em que vivemos e acumulamos experiências. Em um, somos muitos. Além daquilo que
somos, vigora em nós aquilo que podemos ser: o inesgotável cabedal de
virtualidades escondidas dentro de nós. Nosso potencial é aquilo que é o mais
verdadeiro em nós. Daí a nossa dificuldade de construirmos uma representação
satisfatória do que somos. Mas isso não nos dispensa de elaborarmos algumas
chaves de leitura que, de alguma maneira, nos orientam na busca daquilo que
queremos e poderemos ser.
É nesta busca que o cuidado de si mesmo desempenha
uma função decisiva. Especialmente nesse momento dramático, quando estamos
expostos diante de um inimigo invisível, que nos pode matar ou, através de nós,
levar a doença ou a morte aos outros. Não se trata, primeiramente, de um olhar
narcisista sobre o próprio eu o que leva, geralmente, a não se conhecer a si
mesmo, mas a identificar-se com uma imagem projetada de si mesmo e, por isso,
alienada e alienante.
Foi o filósofo Michel Foucauld
que, com a sua minuciosa investigação “Hermenêutica do sujeito” (1984, em
português 2004), tentou resgatar a tradição ocidental do cuidado do sujeito,
especialmente nos sábios do século II/III como Sêneca, Marco Aurélio, Epicteto
e outros. O grande mote era o famoso “ghôti seautón” - “conhece-te a ti mesmo”. Esse conhecimento não era entendido de forma
abstrata, mas concreta, como: reconheça-te naquilo que és, procura
aprofundar-te em ti mesmo para descobrires tuas potencialidades; tenta realizar
aquilo que de fato és”.
Importa afirmar, em primeiro lugar: o
ser humano é um sujeito e não é uma coisa. Não é uma substância
constituída uma vez por todas (Foucault, Hermenêutica do sujeito,
2004), mas somos um nó de relações sempre ativo, que mediante o jogo das
relações está continuamente se construindo a si mesmo. Nunca estamos prontos, mas sempre nos formando.
Todos os seres do universo, consoante
a nova cosmologia, são portadores de certa subjetividade, porque sempre estão
se relacionando e trocando informação. Por isso eles têm história, e um certo
nível de conhecimento inscrito em seu DNA. Esse é um princípio cosmológico
universal. Mas o ser humano realiza uma modalidade
própria deste princípio relacional, que é o fato de ser um sujeito consciente e
reflexivo. Ele sabe que sabe e sabe que não
sabe e, para sermos completos, não sabe que não sabe, como dizia ironicamente
Miguel de Unamuno.
Este nó de relações se articula a
partir de um centro, ao redor do qual organiza os sentimentos, as ideias, os
sonhos e as projeções. Este centro é um eu único e irrepetível. Ele representa,
na linguagem do filósofo mais sutil de todos os medievais, o franciscano Duns Scotus
(+1203), a “ultima solitudo entis”,
a “última solidão do ser”.
Esta solidão significa que o eu é insubstituível e irrenunciável. Mas lembremos: deve ser entendido no contexto do nó de relações dentro do processo
global de interdependências,
de sorte que a solidão não é o
desligamento dos outros. Ela significa a singularidade e a especificidade
inconfundível de cada um. Portanto, é
uma solidão voltada para a comunhão,
é um estar só em sua identidade, para
poder estar com o outro, o diferente, e poder ser
um-para-o-outro e com-o-outro.
O eu nunca está só.
Cuidar de si: acolher-se assim como si é
O cuidado de si implica, em
primeiríssimo lugar, acolher-se assim como se é, com as
aptidões e limites que sempre nos acompanham.
Não com amargura como quem não
consegue evitar ou modificar a sua situação existencial. Mas com jovialidade.
Acolher o próprio tamanho, o rosto, o tipo de cabelos, de pernas, de pés, de
seios, enfim, acolher seu ser corporal.
Quanto mais
nos aceitarmos, assim como somos, menos clínicas de cirurgias plásticas haverá.
Com as características físicas que temos devemos elaborar nosso jeito de ser e nosso mese-en-scène no mundo. Podemos questionar a construção artificial de uma beleza montada, que não está em consonância com uma beleza interior. Há o risco real de perder a irradiação e ganhar lugar uma aparência sem brilho.
Com as características físicas que temos devemos elaborar nosso jeito de ser e nosso mese-en-scène no mundo. Podemos questionar a construção artificial de uma beleza montada, que não está em consonância com uma beleza interior. Há o risco real de perder a irradiação e ganhar lugar uma aparência sem brilho.
Mais importante é acolher os dons, as habilidades, o poder, o quociente
de inteligência, a capacidade emocional, o tipo de vontade e determinação com
que cada um vem dotado. E, ao mesmo tempo, sem
resignação negativa quanto aos limites do corpo, da inteligência, das
habilidades, da classe social e da história familiar e nacional na qual está
inserido.
Tais realidades configuram a condição
humana concreta, e se apresentam como desafios a serem enfrentados com equilíbrio, e com
determinação de explorar, o mais que podemos, as nossas potencialidades
positivas. E saber carregar, sem amargor, as
negativas.
O cuidado de si exige saber combinar as nossas aptidões com
as nossas motivações. Explico-me: não basta termos aptidão para a música
se não sentimos motivação nenhuma para desenvolver esta capacidade. Da mesma
forma, não nos ajudam as motivações para sermos músico se não tivermos a
aptidão para isso, seja de ouvido ou de domínio do instrumento. Não adianta alguém
querer pintar como um Van Gogh, se ele só consegue ser um pintor de paisagens,
de flores e de passarinhos, que mal chegam a ser expostos na feira de domingo
na praça. Desperdiçamos energias e colhemos frustrações. A mediocridade não
engrandece a ninguém.
Outro componente do cuidado para
consigo mesmo é saber e aprender a conviver com o paradoxo que atravessa a nossa
existência: temos impulsos para cima, para a bondade, a solidariedade, a compaixão e o
amor. E, simultaneamente, pulsam em nós chamando-nos para baixo, como o egoísmo, a exclusão, a
antipatia e até o ódio. Na história recente de nosso país, tais dimensões contraditórias aparecem de forma
virulenta, envenenando a convivência social.
Somos feitos das contradições dadas com a nossa existência. Antropologicamente se diz que somos ao
mesmo tempo sapiens e demens, gente de inteligência e lucidez e, junto a isso, gente de rudeza e violência. Somos a
convergência das oposições.
Cuidar de si
mesmo impõe saber renunciar e ir contra certas tendências em nós e até pôr-se à
prova; importa elaborar um projeto de vida que confira centralidade a estas
dimensões positivas e mantê-las sob controle, sem recalcá-las,
porque elas persistem e podem voltar sob a forma incontrolável). São dimensões
sombrias que tornam agônica a nossa existência, quer dizer, sempre em combate
contra nós mesmos.
Cuidar de si mesmo é amar-se, acolher-se, reconhecer nossa vulnerabilidade, saber perdoar-se e desenvolver a resiliência que é a capacidade de dar-a-volta-por-cima, aprendendo dos erros e das contradições.
O fato de estarmos expostos a forças
contraditórias que convivem tensamente em nós, precisamos viver o cuidado como preocupação com
nosso próprio destino. A vida pode nos conduzir por caminhos que podem
significar felicidade ou insucesso. Podemos ser tomados por ressentimentos
e amarguras que nos incitam à violência. Temos que aprender a termos autocontrole. Especialmente nestes tempos de confinamento social.
O confinamento pode ser uma ocasião
de desenvolver iniciativas criativas, exercitar a fantasia imaginativa que nos
afastem dos riscos e nos abram espaço para uma vida de decência.
Hoje vivemos sob a cultura do capital, que continuamente nos solicita a sermos
consumidores de bens materiais, de entretenimentos e de outros estratagemas que
visam mais tirar nosso dinheiro do que atender aos nossos desejos mais
profundos. Cuidar de si é preocupar-se em não cair nesta armadilha. É criar a
marca de sua pisada no chão e não pisar na marca feita pelo outro.
Cuidar de si, como preocupação sobre
o sentido de própria vida significa: ser
crítico, colocar muita coisa sob suspeita para não permitir que seja reduzido a
um número, a um mero consumidor, a um membro de uma massa anônima e a um eco da
voz do outro.
Cuidar de si é preocupar-se
com próprio lugar no mundo, na família, na
comunidade, na sociedade, e no desígnio de Deus. Cuidar de si é reconhecer, na
culminância da história, que Deus
me deu um nome que é só meu, que o define e que somente Deus e eu o conhecerá.
Na sociedade que nos massifica, é decisivo cada um poder dizer o seu eu, ter a sua
própria visão das coisas e não ser apenas um mero repetidor daquilo que é
comunicado pelas muitas mídias à nossa disposição.
-----------------------------
Fonte desta postagem:
CRÉDITOS DAS IMAGENS:
1. Última Ceia - Pintura de John Stott - www.tiagolinno.wordpress.com
2. Leonardo Boff - Pt.Wikipedia.org.jpg
3. Pintura do indiano Imán Maleki - www.imanmaleki-painting.jpg
4. Imagem no espelho - www.imanmaleki-painting.jpg
5. O Japonês - Anita Malfatti - www.enciclopedia.Iatulcultural.com.br
Nota: As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores. Se
alguém possui os direitos de uma delas e deseja que seja removida deste espaço,
por favor entre em contato conosco fazendo um comentário nesta postagem.–
Nenhum comentário :
Deixe seu comentário: