O site IHU-On-Line mantém um espaço de informação e diálogo inter-religioso cada vez mais rico de jornalismo
competente. Seus textos são densos de reflexão e estão sempre em dia com o pensamento
crítico e atualizado na sua área de interesse. Nesta preciosa entrevista do jornalista Ricardo
Machado, o teólogo e professor Faustino Teixeira discorre sobre o
tempo presente, convidando-nos “a tecer a teia da vida de forma plural com outros
seres e com o próprio planeta”, e nos oferece ricos subsídios para se “pensar
caminhos concretos de diálogo e mesmo confrontação entre pessoas de convicções
distintas, seja na percepção filosófica, metafísica ou religiosa do mundo. Um
debate que seja justo e que respeite com dignidade as convicções diferentes,
para além de uma mera tolerância”, como afirma o entrevistado. Os grifos são nossos.
Faustino Teixeira é
professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. É doutor e
pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. É
autor de Caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que Creio Eu (São
Paulo: Terceira Via, 2017), Finitude e Mistério. Mística e Literatura Moderna
(Rio de Janeiro: Mauad, 2014). Também organizou, entre outros, Nas teias da
delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006), As religiões no Brasil: continuidades e
rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes, e As
orações da humanidade (Petrópolis: Vozes, 2018), em parceria com Volney
Berkenbrock. Segue a entrevista.
FLORESCER NA
COMPLEXIDADE
Por: Ricardo Machado – IHU On-Line
IHU On-Line – Como o mundo
atual nos convida a pensar uma relação ética profunda com o outro?
Faustino Teixeira – Vivemos tempos sombrios, não há
dúvida. Tempos marcados pelo “excesso antropocêntrico”, como assinalou o Papa
Francisco em sua carta encíclica ‘Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum
(LS, 116). As previsões não são muito favoráveis, como já dizia o historiador
inglês Eric Hobsbawm. O século XX não terminou bem, e o século XXI vai na mesma
direção, sinalizada pelo “crepúsculo e obscuridade”. As previsões
“catastróficas” estão aí diante de nós, como lembrou o papa, não deixando
espaço para maiores otimismos (LS, 161).
Diante de tal horizonte, há que organizar as forças de esperança para
minimizar esse cenário difícil que vai se concretizando no tempo do
Antropoceno. É possível cavar a esperança no trabalho pessoal e comum,
diuturno, buscando “frestas” de luz, visando captar uma outra textura de tempo,
cintilante. Isso depende também do empenho de interiorização, que transforma o
sentimento para ver uma paisagem distinta. Como diz o jagunço Tatarana, no
Grande Sertão:Veredas: “o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada:
quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom”.
O ponto de escape para uma perspectiva distinta está em deixar-se
habitar pelo mundo da alteridade, rompendo com esse “desgaste da compaixão” que
nos circunda.
É necessário mudar de postura, sintonizando os sentidos com a melodia da simpatia, da cortesia e da delicadeza. Como aponta Tim Ingold, com pertinência, é essencial “prestar atenção às coisas – observar os seus movimentos e escutar os seus sons”. Uma atenção que não se volta exclusivamente aos humanos, mas a todas as criaturas, com seus direitos característicos. E assim conseguimos “flagrar o mundo em ação”, atendendo ao grito da Terra. O encontro profundo com o outro envolve essa consciência de relação, de interligação, de reciprocidade. Não basta dizer “viva o múltiplo”, como sinalizam Deleuze e Guattari, é necessário desvendar as malhas desta viva relação que constitui a tessitura do real, em que cada coisa, cada ser, está referenciado ao outro, entrelaçado como um dom. Os místicos nos advertem que o modo de ser hoje é outro, é inter-ser, num campo complexo onde não existem pontos de chegada, mas sempre travessia. O caminhar se processa nessa dinâmica viva em que as perguntas tradicionais perdem sua valência: “De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento” (Deleuze/Guattari).
É necessário mudar de postura, sintonizando os sentidos com a melodia da simpatia, da cortesia e da delicadeza. Como aponta Tim Ingold, com pertinência, é essencial “prestar atenção às coisas – observar os seus movimentos e escutar os seus sons”. Uma atenção que não se volta exclusivamente aos humanos, mas a todas as criaturas, com seus direitos característicos. E assim conseguimos “flagrar o mundo em ação”, atendendo ao grito da Terra. O encontro profundo com o outro envolve essa consciência de relação, de interligação, de reciprocidade. Não basta dizer “viva o múltiplo”, como sinalizam Deleuze e Guattari, é necessário desvendar as malhas desta viva relação que constitui a tessitura do real, em que cada coisa, cada ser, está referenciado ao outro, entrelaçado como um dom. Os místicos nos advertem que o modo de ser hoje é outro, é inter-ser, num campo complexo onde não existem pontos de chegada, mas sempre travessia. O caminhar se processa nessa dinâmica viva em que as perguntas tradicionais perdem sua valência: “De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tábula rasa, partir ou repartir do zero, buscar um começo, ou um fundamento, implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento” (Deleuze/Guattari).
IHU On-Line – De que forma as
questões relacionadas à espiritualidade nos oferecem possibilidades de
construir novos caminhos em torno da hospitalidade?
Faustino Teixeira – Sigo aqui uma pista essencial apontada por
Rainer Maria Rilke, na sétima Elegia de Duíno, quando diz que em parte alguma
“o mundo existirá, senão interiormente”. O caminho do mundo interior,
processado com calma e serenidade, é essencial para criar o “clima” propício
para a dinâmica existencial, envolvendo aí a capacidade de acolhida e
hospitalidade. Temos que criar as condições interiores para a pacificação de
si, para o equilíbrio indispensável, que nos disponibiliza para o encontro
tranquilo com o outro, o diferente. Esse é o caminho da espiritualidade. O
mestre Thich Nhat Hanh, em sua obra Paz a cada passo, assinala que todos nós
somos portadores de “nós” ou “grilhões” interiores, processados ao longo da
vida, que acabam se firmando de forma rígida e impedidora. Ele chama isto de
“formações internas” problemáticas.
O caminho da espiritualidade é também
um caminho de desatar esses “nós”, e o importante é que saibamos trabalhar isso
logo no início, na medida do possível, caso contrário eles vão ficando cada vez
“mais fortes e apertados”, dificultando qualquer cerimônia de abertura ou de
convivência harmoniosa com o diferente. O passo espiritual pressupõe também a
atenção ao canto das coisas: estar presente, estar atento ao campo do real,
como indica Thomas Merton. Ele dizia que
a vida contemplativa era algo muito simples: viver simplesmente. O respirar era
a sua oração. Em página de seu diário, em maio de 1965, sublinhava que ali em
cima das montanhas podia ver e sentir de forma palpável o Novo Testamento no
vento, por entre as árvores. É quando você se permite viver em “baixa
definição”, para além da pressa do nosso tempo. Na calma da floresta, no
cuidado interior, Merton era capaz de captar o “ponto virgem essencial”, o
“centro do nosso nada”, que era “a pura glória” do Mistério Maior. A atenção ao
mundo interior vem percebida como um dom que potencializa o sujeito a
“despertar à infinita Realidade que existe dentro de tudo o que é real”. No
segredo da solidão, diz Rilke, somos capazes de captar a melodia das coisas e
dar-nos conta da misteriosa conexão que tudo interliga.
As respostas decisivas que acompanham
esse trabalho interior nem sempre ocorrem imediatamente. Eles chegam de
mansinho, aos poucos. Daí a importância essencial da paciência, essa palavra
chave da mística. Há que criar as condições para o afeiçoamento às grandes
questões, de modo que elas possam ser vividas com clareza e intensidade. Tudo
tem seu tempo. E os resultados chegam, sem pressa, irradiando um modo de ser
distinto no mundo, longe daquela hybris que nos desvia da honradez e da
nobreza da alma.
IHU On-Line – De que maneira o
Antropoceno nos convida a uma postura menos antropocêntrica? O que isso
significa em termos de hospitalidade à diferença?
Faustino Teixeira – O Antropoceno é expressão de um
novo momento na trajetória humana, uma “nova época” marcada por muita
instabilidade. Curiosamente, foi algo já previsto por Hans Jonas em seu livro O
princípio da responsabilidade, lembrado por Oswaldo Giacoia Junior, em entrevista
no IHU (setembro de 2019). Um cenário que foi “filosoficamente antecipado” por
ele, marcado por “traço ilusório ou delirante” que animou a lógica do “moderno
processo de desenvolvimento científico e tecnológico”.
Isto levou a uma “perda de controle”
que trouxe e traz consequências dramáticas, como a “incapacidade de proteger a
natureza e a humanidade dos elementos destrutivos de sua própria obra, uma
inusitada impotência lá onde parecia que tínhamos atingido o apogeu da
autodeterminação”. É quando então a Terra sofre o tranco da ação predadora do
humano, e começa a reagir de forma surpreendente e muitas vezes violenta,
mostrando sua face de intrusa.
Nesse
tempo sombrio, humanos e terranos entram em tensão, para usar uma expressão de
Bruno Latour. O mais problemático nisso tudo é que os humanos permanecem
“indiferentes” aos rumos que eles mesmos impuseram ao ritmo do tempo. Os
terranos, os povos de Gaia, buscam resistir como podem, com suas artimanhas e
parcos recursos. Na visão de Latour, infelizmente essa “estranha guerra” já
está praticamente definida, com o horizonte vitorioso e tenebroso dos humanos,
dos modernos.
Mas resistências bonitas estão em curso, como verificamos na ação iluminada de jovens como Greta Thunberg, que denunciam com coragem e ousadia a chama que ameaça a Terra. Incrível, mas os que mais resistem são também os portadores de cosmologias antigas: os quilombolas, os povos originários, especialistas de “fim de mundo”. Temos o exemplo de Ailton Krenak e suas Ideias para adiar o fim do mundo (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), título de seu recente livro. Sinaliza que o tempo é curto para poder revirar as coisas e “diminuir a falta de reverência” para com as “espécies companheiras” que participam conosco dessa “viagem cósmica”. Diz Krenak: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. O que se vê, por todo canto, é previsões catastróficas, num circuito necrófilo que nos faz a cada momento “despencar, cair, cair, cair”.
Mas resistências bonitas estão em curso, como verificamos na ação iluminada de jovens como Greta Thunberg, que denunciam com coragem e ousadia a chama que ameaça a Terra. Incrível, mas os que mais resistem são também os portadores de cosmologias antigas: os quilombolas, os povos originários, especialistas de “fim de mundo”. Temos o exemplo de Ailton Krenak e suas Ideias para adiar o fim do mundo (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), título de seu recente livro. Sinaliza que o tempo é curto para poder revirar as coisas e “diminuir a falta de reverência” para com as “espécies companheiras” que participam conosco dessa “viagem cósmica”. Diz Krenak: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”. O que se vê, por todo canto, é previsões catastróficas, num circuito necrófilo que nos faz a cada momento “despencar, cair, cair, cair”.
O convite essencial que emerge neste
tempo do Antropoceno é o do despojamento, do desarme dos corações, de quebra
das exclusividades. O mais importante de tudo, neste momento, é tomarmos
consciência de que não somos excepcionais, mas parte dos viventes,
companheiros. Trata-se da consciência de um para além do humano, que nos
provoca a despertar para uma nova ecologia, que envolve uma gama diversificada
de companhias: tornar-nos com os outros, como diz Donna Haraway. Um caminho que
também vem sendo percebido pelo Papa Francisco ao constatar que a diversidade é
bela. Estamos aqui, todos juntos, numa constelação das diferenças, em sua
riqueza singular, irredutível e irrevogável.
IHU On-Line – Em um artigo
intitulado “Malhas da hospitalidade”, o senhor defende o termo “malha” como
aquele que melhor define nossa atual situação. Poderia explicar como os fios
das diferentes vidas e formas de vida compõem o pano do tempo presente?
Faustino Teixeira – Utilizei o termo com base na reflexão de Tim Ingold. Veja em particular o seu singular livro, Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição (Petrópolis: Vozes, 2015). Ele usa o termo malha (meshwork) recorrendo ao pensamento de Henri Lefebvre. A seu ver, nossa vida acontece em trilhas compostas de linhas. O tecido de trilhas reunidas compõe “a textura do mundo da vida”. Todos nós habitamos num cenário de linhas que se interconectam e interagem numa bonita dança de reverberações. É como ocorre com a aranha, que capta imediatamente, por reverberação, a presença de alguma mosca em sua teia. Como diz Ingold, “as linhas-fio da teia estabelecem as condições de possibilidade para que a aranha interaja com a mosca”. Gilles Deleuze e Félix Guattari, num ensaio presente na obra Mil Platôs (volume 1 – 2011), falam em rizoma, onde cada linha remete a outra, onde um ponto determinado conecta-se com qualquer outro ponto, mediante “hastes e fluxos subterrâneos”. Não há ponto final, mas sempre “direções movediças” e “linhas de fuga”. Tim Ingold prefere utilizar a imagem do micélio fúngico para demarcar esse espaço fluido. Com base nessa inspiração, e também na encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco, é que adaptei a reflexão para o diálogo inter-convicções. Estamos todos juntos nesta empreitada, numa “viagem fraterna” em que cada segmento, grupo ou tradição, se remete ao diferente, num aprendizado cotidiano e revelador, como numa sinfonia.
IHU On-Line – Em chave de leitura
mística, como pensar as dimensões da hospitalidade e do diálogo para além de
uma visão de mundo centrada na espécie humana?
Faustino Teixeira – Retornando aqui à reflexão de Deleuze e Guattari, quando falamos em rizoma, não podemos pensar em teleologia unificadora. O rizoma nos convida a pensar a vida de forma plural, sem excepcionalidades. Aliás, como já mostrou com pertinência Lévi-Strauss, a excepcionalidade vem sempre acompanhada pela exclusão e violência. Há que pensar formas alternativas de viver a experiência da comunhão. O que mais ameaça o nosso tempo são as “bolhas” identitárias, que estão presentes em todos os campos, em todas discussões. Uma tendência problemática de ler o mundo a partir de uma localidade exclusiva. O desafio que se abre para nós é diverso, no sentido de alargar as malhas e ampliar o olhar. Ou como fala o profeta Isaías (Is 54,2), alargar o espaço de nossas tendas, sem prejuízo ao nosso empenho comunitário. Gosto das pistas lançadas por Donna Haraway, que vêm sendo também divulgadas aqui no IHU. Ela reage contra o insulamento de caminhos, contra as mônadas estanques, impermeáveis, que acabam levando a solilóquios problemáticos e às vezes mortíferos. Seu convite é no sentido de um olhar ampliado, animado por lucidez e largueza.
Como mostra Haraway, determinados
núcleos identitários, na ânsia de firmarem sua cidadania, acabam excluindo os
outros, deixando o ambiente quase sem ar. Há que abrir outros caminhos, diz
ela, que defendam mais afinidades e não só identidades. Esse é o caminho aberto
para “gerar comunidade com outras espécies”. Buscar afinidade, retoma Haraway,
“é resultado da alteridade, diferença e especificidade”. Há que “aprender a
florescer na complexidade”, buscar “regenerar” o caminho cooperativo e não
simplesmente afirmativo. Trata-se de compreender o presente de forma mais sutil
e densa, deixando-se habitar por sua complexidade. Em linda crônica, publicada
em 1966 no Correio da manhã, Carlos Drummond de Andrade elogiava a canção de
Chico Buarque , A Banda, e na sua reflexão fazia um convite para que todos
pudessem “correr à rua no rastro da meninada”, como o velho fraco que se
“esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço para sair no terraço e
dançou”.
IHU On-Line – Como o senhor vê a
construção do “diálogo inter-convicções”? Que desafios éticos, humanos e
religiosos ele enfrenta?
Faustino Teixeira – A nova reflexão trazida da França vem ganhando importância no debate sobre a laicidade e a questão religiosa. Vejo esta noção como fundamental, pois amplia profundamente o campo do debate, para além da ideia de diálogo inter-religioso. No meu caso, já vinha refletindo nos últimos anos sobre a necessidade de ampliar as malhas da reflexão inter-religiosa, de forma a poder envolver igualmente outras espiritualidades, incluindo as não religiosas; mas também os interlocutores não crentes, que firmam sua caminhada num projeto ético honrado, de exercício de nobreza da alma.
Trata-se de uma provocação que nasceu para mim no rico debate entre o cardeal Martini e Umberto Eco ainda na década de 1990. Falava-se na ocasião de um “húmus profundo” que pode irmanar crentes e não crentes na busca comum em favor de uma reta convivência humana, mesmo que ela não venha nomeada da mesma forma. Mais recentemente emerge na França o conceito de um diálogo de interconvicções, destacado pelo Núcleo Internacional, Intercultural e Interconviccional (G3i), criado por François Becker. Entre os defensores da nova proposta, poderia se incluir também o filósofo e teólogo Bernard Quelquejeu. A novidade está em incluir no debate a “dinâmica inerente a toda convicção”.
Nesse tempo da laicidade, há que pensar caminhos
concretos de diálogo e mesmo confrontação entre pessoas de convicções distintas,
seja na percepção filosófica, metafísica ou religiosa do mundo. Um debate que
seja justo e que respeite com dignidade as convicções diferentes, para além de
uma mera tolerância. Reconhecer o valor da laicidade no tempo presente é
defender também uma laicidade dialogal, que supere uma laicidade de combate,
excludente. Trata-se de uma laicidade receptiva, capaz de poder também acolher
a “contribuição democrática das diferentes famílias espirituais” (Danièle Hervieu-Léger). Uma laicidade que seja
“mediadora”, no sentido de poder, com as diversas contribuições, contribuir
para mediar com sabedoria os inúmeros conflitos presentes nesse conturbado
tempo das afirmações identitárias.
IHU On-Line – Qual a novidade do
“diálogo inter-convicções” em relação a outros projetos éticos semelhantes?
Faustino Teixeira – A novidade está justamente nesta ampliação das malhas dialogais, possibilitando uma nova cidadania dialogal capaz de acolher no debate interlocutores de convicções distintas, resguardando o essencial respeito mútuo. Trata-se de um diálogo que destaca o espaço singular e único da alteridade. É um caminho que se abre para contrastar com o risco fundamentalista em curso, em que o rotineiro é o mote da exclusão, muitas vezes acompanhada pela violência. Uma sociedade que se pretenda pluralista de direito requer esse respeito essencial ao diferente, incluindo o direito de cidadania das convicções.
IHU On-Line – Como habitar espiritualmente a Terra?
Faustino Teixeira – Trabalhei essa questão num artigo sobre as malhas da hospitalidade, publicado na Revista Horizonte da PUC-MG (jan./mar. 2017). Dizia que a percepção de que tudo está interligado provoca, necessariamente, um novo ritmo para se pensar a espiritualidade.
O Papa Francisco desenvolveu com pertinência essa questão na sua carta encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum (2015). Somos parte deste universo, “somos terra” (LS 2). Todo o universo vem envolvido pelo sopro misericordioso do Mistério, que se revela em todo lugar: na folha, na vereda, no orvalho e no rosto dos pequenos (LS 233). Habitar espiritualmente a Terra é deixar-se maravilhar por uma “espiritualidade ecológica”, para usar a expressão de Francisco. O ritmo dessa nova espiritualidade é marcado pelo cuidado, generosidade, cortesia e hospitalidade. É algo que se processa nos mais simples gestos do cotidiano, na concretude da vida real, nas veredas da história. É uma espiritualidade que vem contagiada pelo cuidado e a preservação terna com todo o criado, com todas as “espécies companheiras”, no reconhecimento de seus direitos característicos. Essa espiritualidade reserva um lugar especial para a “paz interior”, suscitando um estilo de vida diferenciado, para além da “pressão do desempenho”, tão presente em nosso tempo.
Há que resgatar, como sublinhou
Byung-Chul Han, o “primado da vida contemplativa”, da paciência e do descanso,
em função de uma atenção mais profunda às nervuras do real. Um “olhar demorado
e lento”, desperto e acolhedor. Dizia no meu artigo que a espiritualidade é
essa capacidade de celebrar a vida em profundidade. Ela aciona qualidades
essenciais e potencialidades de abertura que procedem do mundo interior e do
espírito. É dela, desse fundo maravilhoso, que se irradiam, com uma fragrância
única, os toques singulares do amor desinteressado, da gratuidade, da atenção,
cortesia e hospitalidade. A espiritualidade aciona o movimento desses valores
fundamentais que são irradiados como perfume por todo canto. O grande desafio
do século XXI é o da “nova reverência face à vida”, em favor de um outro mundo
possível.
Faustino Teixeira – Quero apenas assinalar aqui essa pista bonita lançada pelo filósofo Byung-Chul Han, em favor de um novo ritmo contemplativo. Em sua obra, Sociedade do cansaço (Petrópolis: Vozes, 2015), sublinha que o que marca o século XXI é a ideia de desempenho. Somos todos convocados a entrar no compasso da produção. Isso pode provocar a sensação de “poder”, mas vai produzindo cada vez mais sujeitos deprimidos: esgotados pelo esforço de evitar o fracasso, de não corresponder à produtividade exigida. O que causa a depressão, diz Byung, é a “pressão do desempenho”.
Daí a sede contemplativa que essa mesma sociedade adoentada pelo desempenho suscita: de uma atenção mais profunda e paciente ao real, de ampliação serena da capacidade de ver. Em outra obra, Loa a la Tierra (Barcelona: Herder, 2019), Byung lança o desafio de uma nova consciência planetária, pontuada por singular sensibilidade para com a Terra, que exige um cuidado particular. Aí está, diz ele, o caminho de “salvação”, em sua acepção mais verdadeira, que implica resgate e preservação. A salvação diz respeito a uma aspiração universal dos seres humanos: “conduzir alguém a realizar o sentido de sua existência” e encontrar o seu destino. A salvação não se traduz exclusivamente por resgatar alguém de um perigo, mas de possibilitar o caminho de uma “vida bem-sucedida”, calibrada pela liberdade de fazer valer o seu traço mais íntimo e singular. ■
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Fonte
do texto:
Crédito das Imagens
1 - Fios coloridos - reprodução
2 - Professor Fausto Teixeira - www.yoytube.com
2 - Professor Fausto Teixeira - www.yoytube.com
3 - Professor Fausto Teixeira - www.youtube.com
4 - A ciranda de roda - reprodução
Nota: As imagens aqui postadas pertencem aos seu respectivos autores. Se algum deles não estiver de acordo com a sua reprodução, neste espaço, por favor comunique-se conosco fazendo um comentário neste postagem.
4 - A ciranda de roda - reprodução
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