Eleições 2018 - reprodução do jornal El País - publicado em 24/10/2018
Por que a política de
segurança pública do Bolsonaro seria uma tragédia?
A impunidade seria mais duramente atingida com um trabalho sério de
saneamento das polícias civis (que foram sucateadas) e de uma integração mais
efetiva com as Polícias Militares
Daniel Cerqueira
24 de
outubro - 2018
A retórica fácil e falaciosa de Jair Bolsonaro de combate duro ao criminoso, em um
ambiente social onde predomina o medo, foi um grande cabo eleitoral do capitão
na eleição presidencial. Tal retórica é baseada em um
tripé: 1) no endurecimento das leis penais; 2) no direito das pessoas se
armarem; e 3) na retórica da guerra e da licença para o policial matar. Tal
pseudopolítica redundará numa tragédia nunca antes vista nesse país.
Sobre o primeiro pilar, aumentar a dureza das penas
não contribuirá para identificar e prender os criminosos mais perigosos como
homicidas e autores dos crimes mais violentos, mas ocasionará apenas o aumento
da superlotação dos presídios com presos de baixa
qualidade, formados por jovens participantes dos escalões mais baixos do crime,
que serão presas fáceis das facções criminosas, que nascem dentro das prisões e
que se dinamizam às custas do erário público.
A tão propalada impunidade seria mais duramente
atingida se houvesse um trabalho sério de saneamento das polícias civis (que
foram sucateadas) e de uma integração mais efetiva com as Polícias Militares,
de modo a dotar as polícias de capacidade de investigação e inteligência. De
fato, Menos de 10% dos homicídios são esclarecidos no país. No Rio de Janeiro,
só há inquéritos instaurados em 4% dos casos de roubos (e mesmo assim, quando
há flagrante, na maioria das vezes), o que implica dizer que em 96% dos casos
não há qualquer investigação. Apenas os autores de furtos e traficantes presos
com até 40 gramas de entorpecentes somam cerca de 200 mil detentos, que
contribuem para superlotar o sistema carcerário, que se vê hoje diante de um
déficit de 360 mil vagas.
O segundo pilar da retórica bolsonariana apela para
o direito do cidadão se defender pelos próprios meios, a partir do acesso
indiscriminado à arma de fogo. A esse respeito existe um consenso na literatura
científica nacional e internacional em que uma arma dentro de casa conspira
contra a segurança do lar e contribui para a insegurança pública.
Pesquisadores americanos verificaram que uma arma
de fogo dentro de casa faz aumentar em cinco vezes as chances de algum morador
ali sofrer homicídio ou suicídio, isso sem falar nos recorrentes casos de
acidentes fatais envolvendo crianças.
Por outro lado, quanto mais armas legais, mais
armas irrigarão o mercado ilegal, seja por furtos, roubos ou extravios.
Consequentemente, o aumento da oferta de armas no mercado ilegal, faz com que o
preço da arma diminua, facilitando o acesso à mesma pelo criminoso mais
desorganizado, exatamente aquele que vai assaltar nas ruas e termina cometendo
o latrocínio. Na CPI das armas de fogo no Rio de Janeiro, se constatou que em
10 anos apenas das empresas de segurança privada, quase 18 mil armas foram
extraviadas ou roubadas.
Em terceiro lugar, a arma no ambiente urbano é um
instrumento de ataque e não de defesa, em vista do fator surpresa. A esse
respeito, uma pesquisa feita em São Paulo mostrou que as chances de um cidadão
armado, quando assaltado, ser morto é 56% maior do que o cidadão desarmado.
Por último, em alguns estados onde se apurou as
motivações dos casos de homicídios, concluiu-se que quase um terço decorria de
questões interpessoais e passionais como briga de bar, de vizinho, por questões
políticas ou ainda passionais. Você se sentiria mais seguro se todos ao seu
redor estivessem armados, nas ruas, nos shoppings e nos estádios de futebol?
Sobre a licença para o policial matar, sem qualquer
controle, propalada pelo Bolsonaro além de ser uma excrescência ao Estado
Democrático de Direito é o caminho mais curto para acabar com a efetividade do
trabalho policial e para gerar vítimas numa guerra retórica e real, onde só
haverá perdedores, começando pelo próprio policial. Leis, protocolos
internacionais e técnicas policiais que norteiam o uso proporcional da força
pela polícia já existem e servem exatamente para resguardar o próprio policial
e a sociedade.
Em primeiro lugar, a guerra retórica e a licença
para matar alimentam a demanda por armas de alto poder destrutivo pelos
criminosos. Pavimenta-se assim um espiral crescente de violência e mais
violência com a mortes de supostos criminosos, mas também de civis e de
policiais, além de desencadear o aumento do medo generalizado da população, em
face das balas perdidas e barulho de tiros. Um verdadeiro abismo de
desconfiança e de ódios recíprocos entre as comunidades e as polícias
inviabiliza qualquer possibilidade da coprodução da segurança pública, um
elemento crucial para a efetividade do trabalho policial.
Sem o controle social do uso da violência,
o policial pode matar ou pode não matar. Quanto custa uma vida? Se não há
controle, o policial pode trocar a vida de outro por propina. Basta que alguns
policiais aceitem entrar no mercado de corrupção para que todo o trabalho de
uma corporação policial esteja perdido.
Por fim, os embates e o exercício diário da morte
nas vidas dos policiais os colocam numa situação de imensa vulnerabilidade
psicológica e física. De fato, a taxa de suicídio policial no Brasil é três
vezes maior do que da população civil, ao contrário do que acontece em outros
países. Por outro lado, se o policial brasileiro mata sete vezes mais do que o
policial americano, proporcionalmente à população, este é assassinado numa
proporção 19 vezes maior.
Ou seja, a pseudopolítica bolsonariana baseada no
ódio, no extermínio e nas armas é o caminho mais curto para atingirmos níveis
nunca imaginados de violência letal no Brasil, numa guerra onde só haverá
perdedores.
Daniel
Cerqueira é doutor em economia e
conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Imagem: Policiais no Rio de Janeiro. SERGIO MORAES REUTERS
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