São diferentes oportunidades de reflexão, a partir de pontos de vista e focos especiais na resposta a essas questões. O nosso poeta Pedro Tierra deu o primeiro pontapé, e fez um golaço. As brilhantes entrevistas que o ex-presidente Lula tem dado à imprensa, as conversas anunciadas entre lideranças da esquerda e, agora, essa iniciativa da Carta Maior, são movimentos que nos preparam às eleições do ano que vem. Os candidatos às eleições legislativas - interessados no embate conjunto para mudar a cara da Câmara Federal - também devem aproveitar a oportunidade, pois estaremos mais bem preparados para perceber para que lado eles estão se dirigindo.
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Contra a barbárie
Rompeu-se o pacto
que assegurava alguma governabilidade ao Brasil. Aquela garantida pela Carta de
88 vigente até 2016.
À esquerda ou à
direita
Por: Pedro Tierra
I - Para examinar a questão “O que é ser de esquerda?” num
momento de turbulência e instabilidade ao ritmo de twitter,
principal mecanismo de governo instalado no país, a partir de janeiro de 2019,
busco ordenar alguns pontos de vista para dialogar com outras contribuições que
chegam a Carta Maior.
Rompeu-se o pacto que assegurava alguma governabilidade ao Brasil. Aquela garantida pela Carta de 88 vigente até 2016. À esquerda ou à direita. O impedimento da presidente Dilma Rousseff mal cercado pelas aparências do “normal funcionamento das instituições” selou a ruptura. Apesar de todo o esforço midiático para justificar o embuste, a maioria da sociedade entendeu que se tratou de um golpe. Os golpistas venceram, mas não convenceram a sociedade. O rei esteve nu durante todo o espetáculo.
Enumerar alguns fatores que convergiram para constituir um bloco de forças nas mãos dos setores nacionais instalados no topo da pirâmide social e identificar seus vínculos com interesses implícitos ou explícitos do Império, talvez nos ajude a compreender o sentido do drama de um país das dimensões e da importância do Brasil ser hoje “governado pela crise”.
Testemunhamos nos últimos anos a atuação francamente partidarizada do Ministério Público Federal; de parcela ponderável do Judiciário e da Polícia Federal; à direita e, digamos assim, ao centro, a atuação incoerente de partidos invertebrados o que resulta na fluidez da base de sustentação parlamentar dos governos – Dilma (a partir de 2014), Temer e agora Bolsonaro – assentada sobre o pântano de interesses segmentados e de curto prazo; à esquerda o imobilismo derivado da crise econômica que lançou milhões de trabalhadores no desemprego e da crítica incapacidade de partidos e movimentos de mobilizar seus militantes frente a uma feroz ofensiva dos golpistas contra direitos conquistados nas últimas décadas; soma-se a esse quadro já complexo, o jornalismo de combate adotado pela generalidade da mídia convencional, com as exceções de praxe, e das redes sociais contra tudo que se possa definir como “esquerda” e teremos como resultado o que Paulo Arantes definiu, ao analisar o pleito de 2018, em uma frase: “Abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade”.
II. Diante do insólito desempenho do governo que tomou posse há pouco
mais de dois meses, haverá diferentes modos, estilos e perspectivas de resistir
a ele. Podemos começar pela resistência da família Marinho e da Rede Globo de
Televisão à perda do Bonus de Volume (BV); está em curso uma
resistência da Folha de S. Paulo ameaçada de extinção pelo próprio presidente
eleito; e, contrastando com o silêncio ansioso e cúmplice observado durante a
campanha de 2018, lemos hoje indignados editoriais do Estadão, espinafrando a
incompetência, a ignorância, a grosseria e a postura indecorosa do presidente.
Salvo o compromisso com a Reforma da Previdência...
Haverá uma resistência parlamentar da parte do aglomerado fisiológico de
direita que prefere se auto-definir como Centrão, fortemente
alojado na base do governo para defender os interesses de sua clientela; fora
do parlamento e, com outra qualidade, uma resistência dos liberais, defensores
do Estado Democrático de Direito e dos Direitos Humanos que lançaram há poucos
dias a Comissão Arns, instrumento promissor no combate às
arbitrariedades presentes, implícitas nos gestos do governo, quando não
anunciadas aos quatro ventos pelos posts dos filhos do
capitão.
Não se pode afirmar, em sã consciência, que os diversos perfis de
resistência enumerados acima tenham a ver com o que nos habituamos a definir
historicamente como esquerda. Até aqui nos encontramos no campo das
forças que trabalham com “o normal funcionamento das instituições”.
A resistência parlamentar apresentada pelas esquerdas, centrada na
denúncia quotidiana do espetáculo circense em que se converteu a cena política
do país, trava seu combate em condições de isolamento e dissensões internas
derivadas de definições táticas diferenciadas nesse primeiro momento de avaliar
as forças de cada uma das siglas para dar a largada, sobretudo no âmbito da
Câmara dos Deputados.
O tema central, naturalmente, trata da Reforma da Previdência, um
projeto que, a rigor busca liquidar a Previdência Pública no Brasil para entrega-la
ao sistema financeiro nacional e internacional. Aproximar essa resistência
parlamentar de uma mobilização popular real, que já tarda, a partir das ruas,
contra as pretensões do governo do capitão e a mobilização de uma campanha
nacional e internacional pela liberdade de Lula são os desafios dos partidos e
movimentos sociais dos assalariados. Estabelecer um forte vínculo entre essas
duas frentes produzirá um novo caráter – de esquerda – às
denúncias e propostas das bancadas no âmbito parlamentar e aos atos e
manifestações dos sindicatos, centrais e movimentos populares que vierem das
ruas.
III. O Brasil é um país governável com essa institucionalidade?
Há poucos meses numa entrevista divulgada por esta Carta Maior, o pensador marxista, professor Paulo Arantes, advertia com sua contundente lucidez: “A encrenca brasileira é essa: abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil. O que nós temos agora é um comportamento destrutivo da classe dominante brasileira que está apostando todas as fichas em tirar suas castanhas do fogo com o braço da delinquência fascista.”
Para destruir Lula e o PT, ela não hesitou em tentar conduzir ao colapso todo o sistema político ancorado na Constituição de 88 e, diante do insucesso dos seus candidatos preferidos, apostou na “delinquência fascista” do capitão para evitar o retorno de um projeto reformista liderado pelas esquerdas ao governo. “Com esse movimento nos deram uma lição: algo mudou no país, a política não se reduz à disputa de modelos de gestão como fizeram o PSDB e PT nas últimas décadas, nesse momento a política renasce como luta.” A luta real pelo poder não segue regras estabelecidas. Faz as suas próprias regras. É o que está fazendo – e dizendo – a extrema-direita às esquerdas brasileiras, à sociedade brasileira.
Há poucos meses numa entrevista divulgada por esta Carta Maior, o pensador marxista, professor Paulo Arantes, advertia com sua contundente lucidez: “A encrenca brasileira é essa: abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil. O que nós temos agora é um comportamento destrutivo da classe dominante brasileira que está apostando todas as fichas em tirar suas castanhas do fogo com o braço da delinquência fascista.”
Para destruir Lula e o PT, ela não hesitou em tentar conduzir ao colapso todo o sistema político ancorado na Constituição de 88 e, diante do insucesso dos seus candidatos preferidos, apostou na “delinquência fascista” do capitão para evitar o retorno de um projeto reformista liderado pelas esquerdas ao governo. “Com esse movimento nos deram uma lição: algo mudou no país, a política não se reduz à disputa de modelos de gestão como fizeram o PSDB e PT nas últimas décadas, nesse momento a política renasce como luta.” A luta real pelo poder não segue regras estabelecidas. Faz as suas próprias regras. É o que está fazendo – e dizendo – a extrema-direita às esquerdas brasileiras, à sociedade brasileira.
Para elas – as esquerdas brasileiras – não é simples se desvencilhar da
condição de ser parte constitutiva do “sistema”, como apregoou
o capitão durante a campanha, para afirmar seu discurso “contra tudo
isso que está aí”. Aos olhos da sociedade, as esquerdas vinham de quatro
vitórias eleitorais sucessivas e com numerosa bancada parlamentar em todas
elas, portanto, eram sim parte de um “sistema” que desejava
rejeitar.
O nome do problema: o prazo de validade da algaravia proposta ao país pela extrema-direita é curto. Incapaz de conduzir as mais singelas operações do expediente diário de governo, lança mão dos setores neoliberais alfabetizados para dar conta de uma tarefa que não conhece e não domina. A comédia de erros encenada nos primeiros sessenta dias não recomenda otimismo sobre a sempre sonhada “estabilidade” capaz de assegurar um ambiente sadio para os negócios, atrair investimentos, fazer rodar satisfatoriamente a economia e gerar retorno ao capital. O capitão caminha para uma situação singular: se não entrega a liquidação da Previdência Pública será descartado. Se entrega, também. Terá cumprido seu papel. Aos olhos do patronato – bancos, agronegócio, mídia corporativa, etc – passou a ser um estorvo para seu próprio governo...
IV. Como as esquerdas lidam com o fenômeno da expansão dos evangélicos fundamentalistas na base da sociedade? As esquerdas brasileiras na sua prática diária, ainda não se deram conta de que está em curso uma
contrarrevolução cultural na base da sociedade brasileira: o Brasil deixou de ser um país de maioria católica nos seus extratos sociais mais pobres. E quem substituiu a tradicional presença católica na periferia das grandes cidades foram as confissões evangélicas, não foram as esquerdas. Estas se afastaram dos bairros pobres quando foram sugadas para as instâncias de gestão das políticas públicas dos governos Lula e Dilma.
O nome do problema: o prazo de validade da algaravia proposta ao país pela extrema-direita é curto. Incapaz de conduzir as mais singelas operações do expediente diário de governo, lança mão dos setores neoliberais alfabetizados para dar conta de uma tarefa que não conhece e não domina. A comédia de erros encenada nos primeiros sessenta dias não recomenda otimismo sobre a sempre sonhada “estabilidade” capaz de assegurar um ambiente sadio para os negócios, atrair investimentos, fazer rodar satisfatoriamente a economia e gerar retorno ao capital. O capitão caminha para uma situação singular: se não entrega a liquidação da Previdência Pública será descartado. Se entrega, também. Terá cumprido seu papel. Aos olhos do patronato – bancos, agronegócio, mídia corporativa, etc – passou a ser um estorvo para seu próprio governo...
IV. Como as esquerdas lidam com o fenômeno da expansão dos evangélicos fundamentalistas na base da sociedade? As esquerdas brasileiras na sua prática diária, ainda não se deram conta de que está em curso uma
contrarrevolução cultural na base da sociedade brasileira: o Brasil deixou de ser um país de maioria católica nos seus extratos sociais mais pobres. E quem substituiu a tradicional presença católica na periferia das grandes cidades foram as confissões evangélicas, não foram as esquerdas. Estas se afastaram dos bairros pobres quando foram sugadas para as instâncias de gestão das políticas públicas dos governos Lula e Dilma.
A legião de pobres, particularmente na periferia das grandes metrópoles,
está entregue há décadas à pregação fundamentalista de pastores que se espelham
em tipos como Macedo e Malafaia e convivem no quotidiano dos desvalidos, dos
excluídos de qualquer ação protetiva do estado. Famílias, em geral, acossadas
de um lado pelo crime – particularmente o tráfico de entorpecentes – de outro
pela força armada das milícias ou do Estado.
A pregação fundamentalista da conhecida Teologia da Prosperidade, se constitui num poderoso estímulo aos valores centrados na afirmação da fé do indivíduo e sua relação direta com o criador para alcançar a salvação e na negação de qualquer ação coletiva emancipadora, o que reduz aquela imensa massa de trabalhadores, sobrevivendo no desemprego ou no subemprego, carentes material e espiritualmente a uma espécie de menoridade perpétua, infantilizados diante dos conflitos do mundo e sempre à espera da palavra salvadora do pastor que os conduz.
A pregação fundamentalista da conhecida Teologia da Prosperidade, se constitui num poderoso estímulo aos valores centrados na afirmação da fé do indivíduo e sua relação direta com o criador para alcançar a salvação e na negação de qualquer ação coletiva emancipadora, o que reduz aquela imensa massa de trabalhadores, sobrevivendo no desemprego ou no subemprego, carentes material e espiritualmente a uma espécie de menoridade perpétua, infantilizados diante dos conflitos do mundo e sempre à espera da palavra salvadora do pastor que os conduz.
Para que prospere um projeto de esquerda democrático capaz de fazer a
disputa dos corações e mentes dessa legião, é indispensável identificar e
trazer para o estudo e o debate a economia política que move o comércio da fé
no Brasil. Quais sãos as cadeias produtivas dominantes, quais as secundárias,
quais são os ramos onde estão presentes no comércio, nos serviços. Como operam
a acumulação ampliada dos recursos amealhados a partir dos donativos
arrecadados em cada culto das mãos de milhões de fiéis, depositados de boa fé
na sacolinha dos pastores.
Mas é igualmente importante debruçar-se sobre o discurso que elabora a
metódica construção do imaginário, dos valores cultivados em cada atividade que
os agrega na condição de rebanho – porque essa é muitas
vezes a única atividade que os agrega em algo compartilhado com outros da mesma sorte – e conduz esses excluídos a uma atitude de submissão e conformismo diante da vida.
vezes a única atividade que os agrega em algo compartilhado com outros da mesma sorte – e conduz esses excluídos a uma atitude de submissão e conformismo diante da vida.
V. É possível dizer, sem cometer injustiças, que as esquerdas que emergiram no Brasil no final dos anos 70 resultaram do encontro de dois fatores que definiram seu perfil e seu fôlego na disputa pela hegemonia na sociedade: o vigor do movimento operário fruto de uma industrialização tardia, concentrado sobretudo no ABC paulista, mas já atuante em outras regiões do país; e as ideias socialistas que germinaram na resistência ao controle repressivo do regime militar sobre os sindicatos e organizações políticas que combatiam os generais de dentro das prisões, das escolas e centros de pesquisa ou mesmo do exílio.
A cultura oligárquica predominante no fazer político do país,
profundamente impregnada nas estruturas – e no exercício burocrático – do poder
de estado, desde suas instâncias mais simples nas vilas e nos municípios, nos
cartórios, nos postos de serviços públicos mais remotos opõe uma surda
resistência a todo impulso renovador, a tudo que pretenda retirá-la de sua
secular paralisia... Esse “conservantismo” cultural, como certas aranhas,
envolvem o impulso transformador no seu casulo para devorá-lo silenciosamente,
quotidianamente ou convertê-lo em sua imagem e semelhança.
A combatividade das esquerdas que emergiram e deram um
impulso mais amplo e generoso ao processo que derrotou a ditadura e ampliou os
horizontes da reconstrução democrática não se converteu, com o tempo, numa
elaboração ideológica mais clara, menos ingênua sobre o conteúdo de classe do
complexo jogo de interesses sociais que afastou os generais do poder.
As esquerdas não
consolidaram no Brasil uma cultura política impregnada pelos valores
democráticos, republicanos ou socialistas. Cabe a pergunta: que lugar ocupa a
questão do socialismo no discurso e na ação das esquerdas brasileiras?
Temos um significativo e heterogêneo campo onde convivem uma diversidade de
concepções sobre os desafios contemporâneas do mundo: o valor da democracia e
da república, da defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento sustentável, a
questão racial numa cultura herdada de trezentos anos de escravidão, a cultura
patriarcal reproduzida nas instituições das próprias esquerdas, o desafio
da convivência civilizada com a diversidade sexual, de direitos individuais ou
coletivos e outras, desprovidas de uma elaboração programática de que lhes dê
sentido e capacidade de convocação social para ação.
Em tempos de ofensiva da direita, em escala mundial, é indispensável aos
diversos matizes das forças que a ela se opõem, a lucidez necessária para
agregar em torno de objetivos práticos comuns todo o potencial mobilizador dos
setores sociais que já percebem os desdobramentos da ingovernabilidade em que
foi lançado o país e suas consequências para os setores da base da sociedade,
para a democracia – hoje sob tutela militar – e o Estado de Direito.
Finalizo essa primeira contribuição ao debate proposto por Carta Maior,
sobre “O que é ser de esquerda?” no Brasil de hoje, no
aniversário do assassinato de Marielle Franco. O país se vê diante da captura
dos supostos assassinos e de uma nova etapa em busca da elucidação dos vínculos
com as milícias e seu entorno e da identificação dos mandantes. O delegado
encarregado das investigações, porém, anuncia candidamente tratar-se de um
crime de ódio. Aparentemente, em 2019, estamos assistindo a uma nova edição da
tentativa constrangedora, a cargo do Cel. Job Lorena de Santana, de explicar o
inexplicável ao país: o atentado do Riocentro, em 1981.
Recupero a frase marcante do “moderatíssimo” Norberto Bobbio, no prefácio ao “Direita e Esquerda”:
Recupero a frase marcante do “moderatíssimo” Norberto Bobbio, no prefácio ao “Direita e Esquerda”:
“Mas enquanto existirem homens (e mulheres como Marielle, agrego) cujo empenho
político seja movido por um profundo sentimento de insatisfação e de sofrimento
diante das iniquidades das sociedades contemporâneas – hoje talvez menos do que
em épocas passadas, mas bem mais visíveis – eles carregarão consigo os ideais
que há mais de um século têm distinguido todas as esquerdas da história.” (N.
Bobbio, prefácio a “Direita e Esquerda – Razões e significados de uma distinção
política” 1994). Voltarei ao tema da identidade das esquerdas, em
breve.
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Pedro Tierra é Poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo
Pedro Tierra é Poeta. Ex-Presidente da Fundação Perseu Abramo
Fonte do texto:
Data de publicação em Carta Maior - 14.03.2019
Foto de Pedro Tierra – publicada no mesmo artigo do
autor.
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