DISCURSO DO
PAPA FRANCISCO
AOS JUÍZES DO ENCONTRO PAN-AMERICANO
RECEBIDOS NO VATICANO
Casina
Pio IV
Aos leitores de língua portuguesa, espanhola e italiana, a reprodução do discurso do Papa Francisco aos juízes do encontro pan-americano que foram recebidos no Vaticano, na terça-feira 4 de junho de 2019. A tradução divulgada pelo Vaticano, em português, recebeu pequenas adaptações à linguagem brasileira, para a reprodução neste blog. A clareza das palavras do papa aos magistrados são de uma oportunidade inequívoca para o momento político que vivemos.
Segue a íntegra do discurso. Os negritos são nossos.
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Senhoras e Senhores!
É motivo de
alegria e também de esperança estar convosco neste Congresso, onde marcastes um
encontro que não se limita apenas a vós, mas tem presente o trabalho que levais
a cabo juntamente com advogados, consultores, procuradores, defensores e
funcionários, levando em conta inclusive os vossos povos, com o desejo e a
busca sincera de garantir que a justiça, e especialmente a justiça social,
possa beneficiar todos.
A vossa missão, nobre e gravosa, exige que
vos dediqueis ao serviço da justiça e do bem comum, com o chamado constante a
fazer com que os direitos das pessoas, e de modo especial dos mais vulneráveis,
sejam respeitados e garantidos. Desse modo contribuís para fazer com que os
Estados não renunciem à sua função mais excelsa e primária: assumir o bem
comum do seu povo. «Atesta a experiência — observava João XXIII — que,
faltando por parte dos poderes públicos uma atuação apropriada com “respeito à
economia, à administração pública, à instrução”, sobretudo nos tempos atuais,
as desigualdades entre os cidadãos tendem a exasperar-se cada vez mais, os
direitos da pessoa tendem a perder todo o seu conteúdo e compromete-se, ainda
por cima, o cumprimento do dever» (Carta Encíclica, Pacem in terris, 63).
Elogio essa
iniciativa de vos reunirdes, assim como aquela realizada no ano passado na
cidade de Buenos Aires, na qual mais de 300 magistrados e oficiais de justiça
deliberaram sobre os Direitos sociais à luz da Evangelii gaudium, da Laudato si’ e do Discurso aos Movimentos Populares em Santa Cruz de la Sierra. Dali derivou um interessante conjunto de vetores para o
desenvolvimento da missão que está nas vossas mãos.
Isso nos recorda a
importância e, por que não, a necessidade de enfrentar os problemas de fundo
que as vossas sociedades estão a atravessar e que, como sabemos, não podem
ser resolvidos simplesmente com ações isoladas nem atos voluntários de uma
pessoa ou de um país, mas que exigem a criação de um novo clima, ou seja, de
uma cultura marcada por lideranças compartilhadas e corajosas que saibam
envolver outras pessoas e grupos, a fim de que frutifiquem em importantes
acontecimentos históricos (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 223), capazes de abrir
caminhos às gerações atuais e inclusive às vindouras, semeando condições
para superar as dinâmicas de exclusão e de segregação, de modo que a
iniquidade não tenha a última palavra (cf. Carta Encíclica Laudato si’, 53 e 164). Os nossos povos reclamem este tipo
de iniciativas, que ajudem a abandonar qualquer atitude passiva ou de espetador,
como se a história presente e futura tivesse que ser determinada e narrada por
outros.
Estamos a
viver uma fase histórica de mudanças, em que se põe em jogo a alma dos nossos
povos. Um tempo de crise — crise: o caráter chinês, riscos, perigos e oportunidades;
é ambivalente, isto é muito sábio — tempo de crise em que se verifica um
paradoxo: por um lado, um fenomenal desenvolvimento normativo; por outro, uma
deterioração na fruição efetiva dos direitos consagrados de forma global. É
como o início dos nominalismos, que começam sempre assim. Além disso, com
maior frequência as sociedades adotam critérios irregulares, de fato, especialmente
em relação às leis que promovem os direitos sociais, e o fazem recorrendo a
diferentes argumentos. Esses desvios fundam-se, por exemplo, em carências de
balanço, na impossibilidade de generalizar benefícios ou nos pressupostos de caráter
mais programático que operativo dos mesmos.
Preocupa-me
constatar que se levantam vozes, especialmente da parte de alguns
“doutrinários”, os quais procuram “explicar” que os direitos sociais já são
“velhos”, já passaram de moda e nada têm a oferecer às nossas sociedades. Desse
modo, confirmam políticas econômicas e sociais que levam os nossos povos à
aceitação e à justificação da desigualdade e da indignidade. A injustiça e
a falta de oportunidades tangíveis e concretas por trás de tanta análise
incapaz de se colocar nos pés do outro — e digo pés, não sapatos, porque em
muitos casos essas pessoas não os têm — é também uma maneira de gerar
violência: silenciosa, e, mesmo assim, violência. A excessiva normatividade
nominalista, independentista, acaba sempre em violência.
«Hoje
vivemos em cidades imensas, que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas.
Cidades — orgulhosas da sua revolução tecnológica e digital — que oferecem
numerosos prazeres e bem-estar para uma minoria feliz, mas negam uma casa a
milhares de vizinhos e irmãos nossos, até crianças, que os chamamos,
elegantemente, “pessoas sem abrigo”. São curiosos os inúmeros eufemismos no
mundo das injustiças!» (Encontro Mundial dos Movimentos Populares, 28 de outubro de 2014). Parece que, na prática, as garantias
constitucionais e os tratados internacionais ratificados não têm um valor
universal.
A “injustiça social naturalizada”, ou seja, tida como algo natural — e, portanto, tornada invisível — que somente recordamos e
reconhecemos quando “alguns fazem barulho na rua” e são rapidamente catalogados
como perigosos e molestos — acaba por abafar uma história de adiamentos e
esquecimentos. Permiti-me dizê-lo, este é um dos grandes obstáculos que o
pacto social encontra e que debilita o sistema democrático.
Para o seu
desenvolvimento sadio, um sistema político-econômico tem necessidade de
garantir que a democracia não seja apenas nominal, mas que possa ver-se
plasmada em ações concretas que velem sobre a dignidade de todos os habitantes,
segundo a lógica do bem comum, num apelo à solidariedade e numa opção
preferencial pelos pobres (cf. Carta Encíclica Laudato si’, 158). Isso exige esforços das mais
altas autoridades e, naturalmente, do poder judiciário, para reduzir a
distância entre o reconhecimento jurídico e a sua prática. Não existe
democracia com a fome, nem desenvolvimento com a pobreza, e nem sequer justiça
na iniquidade.
Quantas
vezes a igualdade nominal de muitas das nossas declarações e ações,
simplesmente escondem e reproduzem uma desigualdade real e subjacente,
revelando que estamos diante de uma possível ordem fictícia. A economia dos
documentos, a democracia “com palavras” e a multimídia concentrada, geram uma
bolha que condiciona todas as visões e as opções, desde o alvorecer até ao
crepúsculo (cf. Roberto Andrés Gallardo, Derechos sociales y
doctrina franciscana, 14). Uma ordem fictícia que se iguala na sua
virtualidade, mas que, concretamente, amplia e aumenta a lógica e as
estruturas da exclusão-expulsão, porque impede o contato e o compromisso
real com o outro. Impede o concreto, ou a responsabilização pelo concreto.
Nem todos
partem do mesmo ponto, no momento de pensar a ordem social. Isso nos interroga,
e exige que pensemos em novos caminhos a fim de que a igualdade
perante a lei não degenere na propensão à injustiça. Num mundo de
virtualidades, mudanças e fragmentações — estamos na época do virtual — os
direitos sociais não podem ser apenas exortativos, nem apelativos nominais, mas
devem ser farol e bússola para o caminho, porque «o estado de saúde das
instituições de uma sociedade tem consequências no ambiente e na qualidade de
vida humana» (Carta Encíclica Laudato si’, 142).
Pede-se que
tenhamos lucidez de diagnóstico e capacidade de decisão diante do conflito,
pede-se que não nos deixemos dominar pela inércia nem por uma atitude estéril
como aquela de quantos o observam, negam ou anulam e vão em frente como se nada
tivesse acontecido, lavam as mãos para poder prosseguir a sua vida habitual.
Outros entram de tal modo no conflito que acabam por se tornar prisioneiros
dele, perdem os horizontes e projetam nas instituições as próprias confusões e
insatisfações. O convite é para encarar o conflito, sofrê-lo e resolvê-lo,
transformando-o no elo de um novo processo (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 227).
Enfrentando
o conflito, parece claro que desempenhamos um compromisso a favor dos nossos
irmãos, para dar operatividade aos direitos sociais, engajando-nos para
procurar desmantelar todos os argumentos que atentam contra a sua atuação, e
isto por meio da aplicação ou da criação de uma legislação capaz de
elevar as pessoas através do reconhecimento da sua dignidade. Os vazios
legislativos, tanto de uma legislação adequada como da acessibilidade e da sua
atuação, põem em movimento círculos viciosos que privam as pessoas e as
famílias das necessárias garantias para o seu desenvolvimento e o seu
bem-estar.
Esses vazios são geradores de corrupção e encontram no pobre e no meio
ambiente as primeiras e principais vítimas.
Sabemos que
o direito não é apenas a lei ou as normas, mas também uma praxe que configura
os vínculos, que de certo modo os transforma em “artífices” do direito, todas
as vezes que se confrontam com as pessoas e a realidade. E isso
convida a mobilizar toda a imaginação jurídica, com a finalidade de
voltar a pensar as instituições e de fazer face às novas realidades sociais que
estamos a viver (cf. Horacio Corti, Derechos sociales y doctrina
franciscana, 106).
Neste
sentido, é deveras importante que as pessoas que se apresentam no vosso
gabinete e à vossa mesa de trabalho sintam que chegastes antes deles, que
chegastes primeiro, que os conheceis e compreendeis na sua situação
particular, mas principalmente que os reconheceis na sua plena cidadania e
no seu potencial de serem agentes de mudança e de transformação. Nunca
percamos de vista que os setores populares não são em primeiro lugar um
problema, mas uma parte ativa do semblante das nossas comunidades e nações; eles
têm todo o direito de participar na busca e na construção de soluções
inclusivas. «A estrutura política e institucional não existe apenas para
evitar malversações, mas para incentivar as boas práticas, estimular a
criatividade que busca novos caminhos e facilitar as iniciativas pessoais e
coletivas» (Carta Encíclica Laudato si’, 177).
É
importante que, desde o início da formação profissional, os agentes legais
possam fazê-lo em contato concreto com as realidades que um dia hão de servir,
conhecendo-as em primeira pessoa e compreendendo as injustiças contra as quais
no futuro deverão lutar. É também necessário identificar todos os
instrumentos e mecanismos a fim de que os jovens provenientes de situações de
exclusão ou marginalização possam, eles mesmos, formar-se de maneira a poder
assumir o protagonismo necessário. Já se falou muito por eles, agora
devemos também ouví-los, dando-lhes voz nestes encontros.
Vem-me a mente o leitmotiv implícito de todos os
paternalismos jurídico-social: tudo pelo povo, mas nada com o povo! Tais medidas nos permitirão instaurar uma cultura do encontro “porque
não se amam os conceitos nem as ideias [...]. A entrega, a verdadeira entrega
nasce do amor pelos homens e mulheres, crianças e idosos, vilarejos e comunidades...
rostos e nomes que enchem o coração” (II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de 2015).
Aproveito
esta oportunidade de me encontrar convosco para vos manifestar a minha
preocupação por uma nova forma de intervenção exógena nos cenários políticos
dos países, através do uso indevido de procedimentos legais e tipificações
judiciais. Além de pôr em grave perigo a democracia dos países, geralmente
o lawfare é utilizado para minar os processos políticos
emergentes e tender para a violação sistemática dos direitos sociais. Para
garantir a qualidade institucional dos Estados, é fundamental relevar e
neutralizar este tipo de práticas que derivam da atividade jurídica imprópria,
em combinação com operações de multimídias paralelas. Não me detenho a
propósito deste ponto, mas todos nós conhecemos o juízo midiático prévio.
Isto
recorda-nos que, em não poucos casos, a defesa ou a priorização dos direitos
sociais sobre outros tipos de interesses vos levará a colidir não apenas com um
sistema injusto, mas também com um poderoso sistema comunicacional do poder,
que desviará frequentemente o alcance das vossas decisões, questionará a vossa
honestidade e também a vossa probidade, e podem chegar a processar-vos.
Trata-se de uma batalha assimétrica e erosiva, na qual para vencer é necessário
manter não apenas a força, mas também a criatividade e uma adequada
elasticidade. Quantas vezes os juízes e as juízas devem enfrentar
solitariamente os muros da difamação e da desonra, quando não da calúnia!
Sem dúvida,
é necessária grande integridade para poder superar esses muros.
«Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o
Reino dos Céus!» (Mt 5, 10), dizia Jesus. Neste sentido, alegra-me
saber que um dos objetivos deste encontro é a criação de um Comité
Permanente Pan-Americano de Juízes e Juízas pelos Direitos Sociais, o qual,
entre as suas finalidades vise superar a solidão na magistratura, oferecendo
apoio e assistência recíproca, para revitalizar o exercício da vossa missão. A
verdadeira sabedoria não se obtém com uma mera acumulação de dados — isto é
enciclopedismo, uma acumulação que acaba por saturar e confundir, numa espécie
de contaminação ambiental — mas sim com a reflexão, o diálogo e o encontro
generoso entre as pessoas, aquele confronto adulto e sadio que nos faz crescer
todos (cf. Carta Encíclica Laudato si’, 47).
Em 2015,
aos membros dos Movimentos Populares, eu disse: desempenhais “um papel
essencial, não apenas exigindo e reclamando, mas fundamentalmente criando. Sois
poetas sociais: criadores de trabalho, construtores de casas, produtores de
alimentos, sobretudo para os descartados pelo mercado global” (II Encontro Mundial dos Movimentos Populares, Santa Cruz de la Sierra, 9 de julho de
2015).
Estimados
magistrados, desempenhais um papel essencial; permiti que vos diga que sois
também poetas, sois poetas sociais, quando não tendes medo de «ser
protagonistas na transformação do sistema judiciário baseado no valor, na
justiça e no primado da dignidade da pessoa humana» (Nicolás Vargas, Derechos
humanos y doctrina franciscana, 230) sobre qualquer outro tipo de interesse
e de justificação.
Gostaria de
concluir, dizendo-vos: «Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça;
bem-aventurados os pacificadores» (Mt 5, 6 e 9). Obrigado!
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Fonte original do texto:
Imagem do Papa Francisco - reproduzida da multimídia do Vaticano.
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