Nenhum político, nenhum general, nenhum juiz, irá determinar como
historiadores de ofício chamarão isso ou aquilo, ou como exercerão o seu
ofício.
Podemos ser calados, mas não vencidos.
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Por: Sidney
Chalhoub
*Sidney Chalhoub - Professor
of History, Harvard University - Professor Titular Colaborador na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Seria melhor escrever crônica, mas
hoje não é possível. Faz dias que abro jornais e revistas e aparece uma
saraivada de notícias e artigos de opinião a respeito do que o governo eleito
do país pretende fazer na área de Educação. Tramita um projeto de lei no
parlamento para instituir a censura em sala de aula, fala-se em fundir o
ministério da Educação com outro, em cobrar mensalidades nas universidades
públicas, em vouchers etc. Bastante cacofonia, mas não seria
razoável descartar de início todos os pontos que aparecem para discussão.
Todavia,
há alguns esclarecimentos a fazer no que tange à produção do conhecimento
histórico e a difusão dele nas instituições de ensino, nos livros, em revistas
especializadas, em meios diversos de divulgação. Apesar das aparências (a
julgar pelo que se lê e escuta), a produção de conhecimento histórico e o
ensino dele não são a casa da mãe Joana. De modo que vou explicar duas ou três
cousas básicas, para colocar a conversa em lugar devido.
Ao que
parece, professores e professoras de história são alvos principais de
iniciativas para combater uma suposta doutrinação nas escolas. Todo dia há
alguma notícia sobre docente de história denunciado, perseguido, demitido,
ameaçado, agredido verbalmente, ou pior.
É possível
que tenha havido um excesso ou outro, em especial devido à alta temperatura
política dos últimos meses. Mas a exceção não faz a regra, nem o ataque em
curso contra docentes de história precisa de episódios isolados para se
justificar.
Quais os motivos para tanto foco nos historiadores?
Por que eles passaram a incomodar tanto a certos setores da sociedade
brasileira e da classe política?
A resposta
é complexa. Seria necessário situá-la no quadro mais amplo de explicações dos
motivos pelos quais a extrema direita chegou ao poder no Brasil, neste preciso
momento. Conheço meus pares.
Nós,
historiadores, e colegas cientistas sociais de diversas disciplinas, no Brasil
e no mundo, nos debruçaremos sobre o tema nas próximas décadas e vamos dissecar
o assunto até que a nuvem espessa da incompreensão se dissipe um pouco, ou
bastante. O processo é lento, já começou e não tem hora para acabar. O tempo
nervoso da política não tem nada a ver com a longa duração requerida na
investigação, no diálogo acadêmico e na sistematização de resultados de
pesquisa.
Por aí se
chega a uma primeira resposta quanto aos ataques aos historiadores. Os
historiadores brasileiros estão na berlinda porque o conhecimento que produzem
hoje é autônomo, crítico, baseado em pesquisas empíricas lentas e sólidas,
informado por debates conceituais densos. Além disso, em várias áreas da
pesquisa histórica, têm o reconhecimento da comunidade acadêmica internacional.
Desde o início da década de 1980, a formação de historiadores se
profissionalizou no país de maneira admirável. Há hoje dezenas de cursos de
mestrado e doutorado em história espalhados por todas as regiões. São programas
de pós-graduação constantemente e rigorosamente avaliados pelos pares, em
processos de acompanhamento institucionalizados pelo governo federal que nada
deixam a dever (de fato, superam em muitos aspectos) a procedimentos similares
existentes em outros países. Vários desses programas são de excelência, muitos
deles de ótima qualidade. Via de regra, os professores e professoras de
história das universidades brasileiras passaram por um processo de formação
exigente, demorado, a demandar doses absurdas de vocação e determinação –quatro
anos de graduação, dois ou três anos de mestrado, quatro a seis anos de
doutorado. Dez a treze anos de formação, quando dá tudo certo, sem intempéries.
Essa qualidade concentrada nas universidades, nas públicas em especial, mas não
só nelas, se espraia pelo sistema inteiro, instaura a reflexão crítica sobre a
história em toda parte. Isso incomoda demais.
É fácil entender
o desconforto de tanta gente. As historiadoras e historiadores brasileiros
passaram as últimas décadas a escarafunchar arquivos e rever inteiramente o que
antes se sabia sobre a história da escravidão e do racismo no país. A violência
da escravidão, a expansão da cafeicultura baseada na invasão de terras e no
tráfico africano ilegal, o estudo das formas de resistência e de enfrentamento
cotidiano por mulheres e homens escravizados – tudo isso se pesquisa e aprende,
chega às salas de aula e até ajudou na justificativa para a adoção de políticas
públicas de ação afirmativa.
A historiografia brasileira participou intensamente de um movimento internacional de investigação das relações de gênero e seu impacto na reprodução de desigualdades em sociedades diversas, em qualquer tempo. Aprendemos a respeito dos modos de as mulheres lidarem com as violências e as formas diversas de subordinação, sabemos melhor aquilo que têm feito ao longo da história contra aqueles que pregam a violação delas, a amputação de suas potencialidades, a interdição de seus sonhos.
A historiografia brasileira participou intensamente de um movimento internacional de investigação das relações de gênero e seu impacto na reprodução de desigualdades em sociedades diversas, em qualquer tempo. Aprendemos a respeito dos modos de as mulheres lidarem com as violências e as formas diversas de subordinação, sabemos melhor aquilo que têm feito ao longo da história contra aqueles que pregam a violação delas, a amputação de suas potencialidades, a interdição de seus sonhos.
Houve uma
gama enorme de estudos sobre a ditadura brasileira de 1964-1985, baseados em
fontes primárias que se tornaram disponíveis, produzidos em diálogo com a
historiografia internacional a respeito das ditaduras latino-americanas no
período da guerra fria. Os historiadores brasileiros sequer inventaram de
chamar “ditadura” o que ocorreu no país naquele período, pois historiadores de
outras partes do mundo já haviam adotado a bossa de chamar a coisa pelo nome
que a coisa tem.
Nada
disso, e muito mais, agrada a quem tem agora as rédeas do poder. Paciência.
Outras eleições virão. Mas algo precisa ficar claro. Nenhum político, nenhum
general, nenhum juiz, irá determinar como historiadores de ofício chamarão isso
ou aquilo, ou como exercerão o seu ofício. Podemos ser calados, mas não
vencidos. E estamos à disposição para ensinar, como sempre estivemos, a quem
quiser aprender. As portas das universidades brasileiras estão abertas a quem
se qualificar para ingressar nelas – há Enem, vestibulares, concursos de
ingresso para programas de pós-graduação.
Depois
muitos anos de formação, exames diante de bancas de mestrado, doutorado, tudo
com os salamaleques da tradição acadêmica. Há centenas e centenas de livros e
artigos científicos sobre os temas citados no parágrafo anterior, e sobre
muitos mais. É longo, duro, mas fascinante. Podem crer.
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Fonte do texto:
*Publicado originalmente em conversadehistoriadoras.com
Publicado
em:12/11/2018
Crédito imagens: foto integrada à publicação de "Carta Maior."
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