Vanise Rezende - clique para ver seu perfil

O SENTIDO DO AFETO

17 agosto, 2016

Tirou o pé da sandália e, apoiando-se no braço da amiga, tocou a ponta dos dedos nas águas serenas do mar... O seu olhar, que se derramava inteiro no leito imenso do Atlântico, esticava-se na linha fronteiriça das distantes terras africanas que, mesmo de longe, se encaixam ao Brasil num antigo abraço.  

A amiga participava da sua emoção, em silêncio.





Aquela velha senhora, que já chegara a mais de oitenta anos, carrega vivas as memórias de seus tempos meninos nas praias do Rio de Janeiro. 

A presença do mar era a sua casa, bagageiro da saudade sentida de amigos já idos, pois já se foram muitos!  

Rever o mar, agora, também lembrava a paisagem lúdica do Porto de Mônico, tão iluminada, no quado de Anita Malfatti.






Mas, o quadro que ela mais gostava de Anita era outro, mais expressivo, A Onda. 

Aquela onda parece um grande abraço líquido, agarrado à muralha de pedra, permitindo ao sol transformar sua luz em arco-íris, no desejo de atingir beleza maior. 

Silenciosa, ela contemplava a paisagem, seu olhar revisitando os tempos que já se foram, mergulhado na profundeza revivescente que o mar lhe comunicava. 

Depois, suspirou e disse:

- Mais que o mar... Só a Amizade! 

Seu comentário incisivo, de mulher contemplativa e serena, parecia ser um gesto de atenção e carinho por quem lhe estava ao lado, responsável por essa ideia tão especial de presentear-lhe um novo encontro com o mar.

Quando ouvi essa história – trazida por um amigo comum – lembrei-me de uma antiga ideia que tenho, de que a amizade é o sacramento de todas as horas. Hoje, parece-me uma vivência indispensável à tarefa de persistir, nos tempos de desconforto em que todos vivemos.


O antídoto a esse desconforto é a consciência de que, para usufruir o melhor da vida, além dos bons momentos de  solitude, precisamos partilhar com os amigos – poucos que sejam – o diálogo, a atenção recíproca, o cuidado, os aprendizados, os próprios talentos e, até mesmo a gozação dos limites que todos temos. 

Quando se perde essa consciência vital da necessidade do outro, ou é porque a insensibilidade  nos corrompeu a alma, ou porque no momento se está doente, precisando de cuidados especiais.

O amigo não se cultiva se não exercitamos a capacidade delicada da escuta, a habilidade do respeito sincero pelas diferenças recíprocas, e o cuidado de frequentá-lo – sempre que possível – nos momentos que para ele tenha alguma significância, independentemente das nossas próprias motivações.

A sensibilidade do afeto nos revela que, mais que oferecer presentes, mandar recadinhos no WhatsApp, curtir no Facebbook ou desmanchar-se em elogios, a amizade requer presença vera nos momentos importantes da vida. E importantes são todos os momentos em que se pode vivenciar a carícia essencial de que nos falam os grandes mestres contemporâneos de espiritualidade, como é o caso do escritor e teólogo Leonardo Boff. 

Concluo com as palavras de um grande pensador contemporâneo, Edgar Morin: 

"Nosso cotidiano vive sempre em busca do sentido. Mas o sentido não é originário nem provém da exterioridade de nossos seres. Emerge da participação, da fraternização do amor. O sentido do amor e da poesia é o sentido da qualidade suprema da vida. Amor e poesia, quando concebidos como fins e meios do viver, dão plenitude de sentido ao 'viver por viver'." 

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Entre inúmeros livros que falam da amizade, cito aqui o que me lembro de memória, na ordem descendente de tempo: 

 “O livro dos Abraços”, do uruguaio Eduardo Galeano. Editora L&PM Pocket.  Porto Alegre, 2011.

– Educação dos Sentidos, e Mais”, de Rubem Alves. Não versa diretamente sobre a amizade, mas sobre os valores que precisamos desenvolver para sermos capazes de vivenciá-la. Editora Verus. São Paulo, 2010.  

– "Amor, Poesia, Sabedoria", de Edgar Morin.  Editora Bertrand Brasil. Rio de Janeiro, 2008.

 Grande Sertão Veredas”, de João Guimarães Rosa.  Um  clássico moderno, que deu origem a um filme televisivo, sobre o sentimento de afeto de Diadorim por Riobaldo, personagens do magistral romance. Editora Nova Fronteira – Biblioteca do Estudante  Rio de Janeiro, 2006.

Cartas – Abelardo-Heloisa”, Zeferino Rocha (ed.bilíngue). Ed. Universitária da UFPE. Recife-1997; 

Zorba, o Grego”, Nikos Kazandzakis, um clássico publicado por Abril Cultural, em 1974, do qual há também um filme. 

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Créditos Imagens:

1. Mar... - www. canstockphoto.com.br
2. Porto de Mônico - Anita Malfatti, o.s.t. www.anita.maffalti/galeria.
3. A Onda - Anita Malfaltti, o.s.t. www.anitamaffalti/galeria.
4. Arco-íris - www.paperdeparede.fondecranhd.net


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