O Dia da Mãe Terra é
também o dia de homenagear o criador desta feliz expressão, o professor e escritor Leonardo
Boff, grande produtor e cooperador da cultura em defesa do clima, além da
cidadania e da fraternização de que é mestre e testemunho exemplar.
Aqui, o texto integral do seu discurso feito na Assembleia da ONU, em 22 de
abril 2009, reproduzido no seu blog em 21.04.2017. Naquela ocasião –
segundo narrativa do próprio L. Boff – o objeto de discussão era se convinha chamar a Terra de Mãe Terra.
Caso fosse aprovada essa sua ideia, o dia 22 de abril não seria mais simplesmente o
Dia da Terra, como há alguns anos se havia introduzido, mas seria o Dia da
Mãe Terra.
Naquela ocasião – escreve L Boff – o presidente da Bolívia Evo Morales Ayma, em nome das
nações indígenas, fez um discurso mais de ordem política, provocando
grande aplauso da plateia. A Leonardo
Boff coube a tarefa de fazer a fundamentação filosófica-ecológica desta
proposta. O seu discurso recebeu ampla acolhida e uma feliz determinação. Foi então aprovada, por unanimidade, a resolução da ONU de celebrar o Dia
da Mãe Terra sempre no dia 22 de abril.
Mais tarde o Papa Francisco, em sua encíclica Laudato Si: como
cuidar da Casa Comum assumiu esta mesma expressão: Mãe Terra.
O discurso proferido por Leonardo Boff, naquela 63º Assembleia Geral da
ONU em de 22/04/2009, "reforça uma compreensão verdadeiramente
revolucionária, pois transforma nossa visão da Terra como Mãe, e cria, correspondentemente,
novas exigências para nosso comportamento face a ela." É escusado dizer que os
dados apresentados no texto que segue correspondem àquela data, pois hoje seriam
outros, e de uma natureza muito mais grave.
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No de 2000 a Carta da Terra nos fazia esta severa advertência: «Estamos num momento crítico da história da Terra, na qual a humanidade deve escolher o seu futuro… A escolha nossa é: ou formamos uma aliança global para cuidar da Teerra e cuidarnos uns dos outros ou arriscamos a nossa própria destruição e a da diversidade da vida”. (Preâmbulo).
Se a crise
econômico-financeira é preocupante, a crise da insustentabilidade da Terra se
apresenta ameaçadora. Os cientistas que acompanham o estado da Terra,
especialmente a Global Foot Print Network têm falado do Earth
Overshoot Day, do dia em que foram ultrapassados os limites da Terra. E
isso ocorreu exatamente no dia 23 de setembro de de 2008, uma semana após o
estouro da crise econômico-financeira nos EUA. A Terra ultrapassou em 40% sua
capacidade de reposição dos recursos necessários para as demandas humanas.
Neste momento necessitamos mais de uma Terra para atender a nossa subsistência.
Como garantir a
sustentabilidade da Terra já que esta é a premissa para resolver as demais
crises: a social, a alimentária, a energética e a climática? Agora já não temos
uma Arca de Noé que salve alguns e deixa perecer os demais. Todos devemos nos
salvar juntos.
Como asseverou com muita propriedade o Secretário Geral desta Casa, Ban Ki-Moon:
”não podemos deixar que o urgente comprometa o essencial”. O urgente é resolver
o caos econômico, mas o essencial é garantir a vitalidade e a integridade do
planeta Terra. É decisivo superar a crise financeira, porém o imprescindível e
essencial é: como vamos salvar a Casa Comum e a Humanidade que é
parte dela? Esta é a razão para termos adotado a resolução sobre o Dia
Internacional da Mãe Terra que, a partir de agora, se celebrará no dia 22 de
abril de cada ano.
Dado o agravamento
da situação ambiental, especialmente do aquecimento global, temos que atuar
juntos e rápido. Não temos tempo a perder nem nos é permitido errar. Caso
contrário, há o risco de que a Terra possa continuar, mas sem nós.
Em nome da Terra,
nossa Mãe, de seus filhos e filhas sofredores e dos demais membros da
comunidade de vida, quero agradecer a esta 63º Assembleia Geral da ONU por
haver sabiamente aprovado esta resolução.
Neste contexto, me
permito fazer uma breve apresentação do fundamento que sustenta a ideia da
Terra como nossa Mãe.
Desde da mais alta
ancestralidade, as culturas e religiões sempre têm testemunhado a crença na
Terra como Grande Mãe, Magna Mater, Inana e Pachamama.
Os povos originários
de ontem e de hoje tinham e têm clara consciência de que a Terra é geradora de
todos os viventes. Somente um ser vivo pode produzir vida em suas mais
diferentes formas. A Terra é, pois, nossa Mãe universal.
Durante séculos e
séculos prevaleceu esta visão até a emergência recente do espírito científico
no século XVI. A partir de então, a Terra já não é mais considerada como Mãe,
senão como uma realidade sem espírito, entregue ao ser humano para ser
submetida, mesmo com violência. A mãe-natureza que devia ser respeitada se
transformou em natureza-selvagem que deve ser dominada. A Terra se viu
convertida num baú cheio de recursos naturais, disponíveis para a acumulação e
o consumo humano.
Neste novo
paradigma não se coloca a questão dos limites de suporte do sistema-Terra nem
dos bens e serviços naturais não renováveis. Pressupunha-se que os recursos
seriam infinitos e que poderíamos ir crescendo ilimitadamente na direção do
futuro. O que efetivamente é uma grande ilusão.
A preocupação
principal era e é: como ganhar mais no tempo mais rápido possível e com um
investimento menor? A realização histórica deste propósito fez surgir um
arquipélago de riqueza rodeado por um mar de miséria.
O PNUD de 2007-2008
o confirma: os 20% mais ricos do mundo absorvem 82,4% de todas as riquezas da
Terra enquanto os 20% mais pobres têm que se contentar com apenas 1,6%. Estes
dados provam que uma ínfima minoria monopoliza o consumo e controla os
processos econômicos que implicam pilhagem da natureza e grande injustiça social.
Entretanto, a
partir dos tardios anos 70 do século passado se tem imposto a constatação de
que um planeta pequeno, velho e limitado como a Terra já não pode suportar um
projeto ilimitado. Faz-se urgente outro modelo que tenha como eixo a Terra, a
vida e o bem viver planetário no quadro de um espírito de colaboração, de
responsabilidade coletiva e de cuidado.
Agora a preocupação central é: como viver e produzir em harmonia com a Terra, com os seres humanos, como o universo e com a Última Realidade, distribuindo equitativamente os benefícios entre todos e alimentando solidariedade para com as gerações presentes e futuras? Como viver mais com menos?
Foi neste contexto
que se resgatou a visão da Terra como Mãe. Já não é mais apercepção dos
antigos, mas uma constatação empírica e científica. Foi mérito dos cientistas e
sábios como Vladimir Vernadsky, James Lovelock, Lynn Margulis e José
Lutzenberger nos anos 70 do século passado, ter demostrado que a Terra é um
superorganismo vivo que se autorregula. Ela articula permanentemente o físico,
o químico e o biológico de forma tão sutil e equilibrada que, sob a luz do sol,
propicia a produção e a manutenção de todas as formas de vida. Por milhões de
anos o nível do oxigênio, essencial para a vida, se mantem em 21%, o nitrogênio,
decisivo para o crescimento, em 79% e o nível de sal dos oceanos em 3,4%. E
assim todos os elementos necessários para a vida. Não é que sobre a Terra haja
vida. A Terra mesma é viva, chamada de Gaia, a deusa grega para
significar a Terra viva.
Agora a preocupação central é: como viver e produzir em harmonia com a Terra, com os seres humanos, como o universo e com a Última Realidade, distribuindo equitativamente os benefícios entre todos e alimentando solidariedade para com as gerações presentes e futuras? Como viver mais com menos?
Que toda a Terra está cheia de vida nos comprova o conhecido biólogo Edward O. Wilson. Escreve ele: ”Num grama de terra ou seja, em menos de um punhado, vivem cerca de dez bilhões de bactérias pertencentes até a seis mil espécies diferentes”. Efetivamente, a Terra é Mãe fecunda.
A Terra existe já há 4, 4 bilhões de anos. Num momento avançado de sua evolução, de sua complexidade e de sua auto-organização, começou a sentir, a pensar e a amar. Foi quando emergiu o ser humano. Com razão nas línguas ocidentais homo/homem vem de húmus, terra fecunda. E em hebraico Adam se deriva de 'adamah', terra cultivável. Por isso, o ser humano é a própria Terra que anda, que sente, que pensa e que ama, como dizia o poeta indígena e cantador argentino Atahualpa Yupanqui.
A visão dos
astronautas confirma a simbiose entre Terra e Humanidade. De suas naves
espaciais testemunhavam de forma comovedora: ”daqui, contemplando este
resplandecente planeta azul-branco, não se percebe nenhuma diferença entre
Terra e Humanidade. Formam uma única entidade”. Mais que como povos, nações e
etnias devemos nos entender como criaturas da Terra, como filho e filhas da Mãe
comum.
Entretanto, olhando
a Terra mais de perto, nos damos conta de que ela se encontra crucificada.
Possui o rosto do terceiro e quarto mundo, porque vive sistematicamente
agredida. Quase a metade de seus filhos e filhas padecem fome e sede e são
condenados a morrer antes do tempo. A cada quatro segundos, consoante dados da
própria ONU, morre uma pessoa estritamente de fome.
Por isso, são
expressões de amor à Mãe Terra as políticas sociais de muitos países como, por
exemplo, de meu pais, o Brasil, sob o governo do Presidente Luís Inácio Lula da
Silva, particularmente o programa Fome Zero e Bolsa Família. Em seis anos se devolveu vida e dignidade a 50
milhões de pessoas que antes viviam na pobreza e na fome.
Temos que baixar a
Terra da cruz e ressuscitá-la. Para esta tarefa gigantesca somos inspirados por
um documento precioso: a Carta da Terra. Nasceu da sociedade civil
mundial. Em sua elaboração envolveu mais de cem mil pessoas de 46 países. Em
2003 uma resolução da UNESCO a apresentou “como um instrumento educativo e uma
referência ética para o desenvolvimento sustentável”. Participaram ativamente
de sua concepção Mikhail Gorbachev, Maurice Strong e Steven Rockfeller e eu
mesmo entre outros. A Carta entende a Terra como dotada de vida e como nosso
Lar Comum. Apresenta pautas concretas que podem salvá-la, cuidando-a com
compreensão, com compaixão e com amor, como cabe a toda mãe. Oxalá, um dia,
esta Carta da Terra, possa ser apresentada, discutida e enriquecida por esta
Assembleia Geral. Caso seja aprovada, teríamos um documento oficial sobre a
dignidade da Terra junto com a declaração sobre a dignidade da pessoa humana.
Mas cabe fazer uma
advertência. Para sentir a Terra como Mãe não é suficiente a razão dominante
que é funcional e instrumental. Necessitamos enriquecê-la com a razão sensível,
emocional e cordial, pois aí se enraíza o sentimento profundo, se elaboram os
valores, se cultivam o cuidado essencial, a compaixão e os sonhos que nos
inspiram ações salvadoras. Nossa missão, no conjunto dos seres, é a de ser os
guardiães e cuidadores desta sagrada herança que recebemos do universo: a
Terra, nossa Mãe.
Para terminar
permito-me fazer uma sugestão: que se coloque na cúpula interna da Assembleia
uma destas imagens belíssimas e plásticas da Terra, vista a partir de fora da
Terra. Suspensa no transfundo negro do universo, ela evoca em nós sentimentos
de reverência e de mútua pertença. Ao contemplá-la, tomamos consciência de que
aí está o nosso Lar Comum.
Pediria ainda que
fosse aprovada uma recomendação de que no dia 22 de abril, dia Internacional da
Mãe Terra, se fizesse um momento de silêncio em todos os lugares públicos, nas
escolas, nas fábricas, nos escritórios, nos parlamentos para que nossos
corações entrem em sintonia com o coração de nossa Mãe Terra.
Concluo. Tal como
está, a Terra não pode continuar. É urgente que mudemos nossas mentes e nossos
corações, nosso modo de produção e nosso padrão de consumo, caso queiramos ter
um futuro de esperança. A solução para a Terra não cai do céu. Ela será o
resultado de uma coalizão de forças em torno a uma consciência ecológica
integral, a valores éticos multiculturais, a fins humanísticos e a um novo
sentido de ser. Só assim honraremos nossa Casa Comum, a Terra, nossa grande
generosa Mãe.
Muito obrigado.
Prof.
Dr.Leonardo Boff
Representante
do Brasil na Assembleia da ONU e membro da Comissão da Carta da
Terra.
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Crédito das Imagens:
1. Foto de Leonardo Boff - www.redebrasiliatual.com.br
2. Habitação primitiva - www.syttertock.com
2. Habitação primitiva - www.syttertock.com
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