POR ACIDENTE
A crônica que segue é de autoria do escritor e jornalista Luis Cosme Pinto, editor-chefe do Jornal Record. Para curtir a leveza das inspirações do autor, indicamos o seu livro “Ponte Aérea”, Ed. Novo Século
Ela tem sempre uma novidade para contar. E o melhor, quando não tem, inventa. Faz curso de meditação, estuda astrologia, viaja para Lençóis Maranhenses, assina revistas de turismo e de qualidade de vida, aplica no mercado financeiro, ou seja, não falta assunto.
A conversa é repleta de descrições precisas e bem-humoradas. Minha amiga é uma especialista em contar histórias e tem uma
técnica muito peculiar de torná-las engraçadas. O segredo é preencher a
narrativa com detalhes, mas eles só entram se forem divertidos e
surpreendentes. Nem todos são exatamente verdadeiros, não aconteceram do jeito
que ela narra, mas a versão é sempre mais rica que o fato, ela gosta de
repetir.
Noite dessas, essa amiga me acordou sem sequer me dar tempo de
perguntar as horas. Era um acidente na Avenida Sumaré - informava com a
voz alterada. A Sumaré é uma autopista que cruza vários bairros movimentados
de São Paulo. De dia é congestionada, mas de madrugada é disputada por
jovens que vão para lá ver quem cruza mais rapidamente seus quatro quilômetros.
No Rio, chamam de pega, em São Paulo é racha, mas em qualquer lugar do
mundo é uma tentativa simultânea de suicídio e homicídio.
Bem, ela me dizia que estava saindo de uma “balada” quando se
viu diante de uma cena insólita. Eu pergunto se ela precisa de ajuda, mas ela
pede, com riso contido, para eu esperar. Sussurrando, alega que tem de se
afastar alguns passos para explicar. Estou nervoso com o acidente, irritado
porque sonhava, impaciente com a demora e, agora, revoltado com o riso dela.
Qual é a graça?
Mas mau humor ali não cola e ela continua: - Você não vai
acreditar, a ambulância está levando embora o Super-Homem, a Mulher Maravilha,
que parece apenas tonta e não corre risco. Já o Batman sofreu um corte no
supercílio, nada grave. Por um momento penso que é um pesadelo, mas ela fala
sem parar e acendo a luz. São 5 horas e a descrição ganha detalhes, os tais
detalhes.
O carro dos três super-heróis bateu na traseira de um caminhão
de lixo, ela conta que vinha em outro veículo e acompanhou tudo. Viu quando os
lixeiros, já refeitos do susto, tentaram enxergar quem estava lá dentro, mas os
vidros escuros não deixavam. Eles abrem a porta do motorista e aí, sim, levam
um super-susto com os super-heróis. O Super-Homem é enorme, musculoso e está
uma fera. Amedrontados, os lixeiros se entreolham. Um deles esfrega rosto, o
outro aperta o nariz e pergunta à minha amiga se ela está vendo o mesmo
que ele. O Super-Homem reconhece a culpa, os garis se acalmam, mas minha
amiga se agita. A contadora de casos se aproxima da Mulher Maravilha em busca
de uma explicação, mas a moça pede o celular emprestado e liga pedindo ajuda. Eu imploro, mais
curioso que cansado: - Quem são essas pessoas? Era uma filmagem? Um
comercial de TV?
- Nada disso - ela
explica. O grupo vinha de uma festa à fantasia. Parece que o
carro preto do Homem Aranha e do Zorro escapou por pouco.
Ela respira fundo e
prossegue: - O mais incrível é o que está acontecendo agora.
- O que? Eu grito.
- Está se formando
um pequeno congestionamento, os carros param do outro lado e os motoristas
veem ver as vítimas em seus trajes inusitados. As pessoas estão
paralisadas, não sabem se riem, se ofereçam ajuda, se é uma dessas
pegadinhas de programas de televisão. Respira fundo...
- Espera aí,
espera! Vou ter que parar, acaba de acontecer algo ainda mais
inacreditável.
- Hã? - É só o
que consigo dizer, atordoado.
- A mãe da
Mulher Maravilha acaba de chegar, e ela não está bem, não. Parece que vai
desmaiar. Ih! Desmaiou. Caiu aqui na minha frente.
- O que foi?
- Eu já estava me vestindo para ir até lá.
- Seguinte, apurei
com a Mulher Maravilha que a mãe não sabia da festa, viu a filha sair
de calça jeans e camiseta com o namorado, que ela acaba de descobrir que é o
Batman. A mãe jaz estirada no asfalto, ela veste pijama de bolinha,
pantufa com uma cabeça de coelho na ponta e touca rendada.
Ah, meu Deus, isso
tudo rolando a apenas alguns quilômetros da minha casa e eu dormindo. Sinto-me
um idiota e suplico:
- Espere,
estou indo...
- Não sei se vai
dar tempo, mas agora chegou ao local - ela adora se fingir de repórter policial
- uma viatura, o numeral é primo, segundo, quadra, sena. É assim
que se diz 1-2-4-6 na linguagem da corporação. O guarda não sabe se
socorre os elementos ou se leva os sobreviventes para uma averiguação. Essa
história de baile à fantasia parece estranha, pode ter
droga rolando, melhor registrar um B.O. no D.P. O
policial acaba de falar com o cabo Viana, ainda mais sonolento que
ele.
Até o nome do cabo
ela faz questão de me dizer. Acelero o carro e, já contaminado pelo
policialesco relato, dou o alerta:
- Em três minutos
chego ao logradouro da ocorrência. Ela interrompe:
- Não vai dar
tempo...
Chego junto com uma
chuva fina, faz frio, e a alvorada lança um brilho prateado sabre o
asfalto.
Silêncio.
Nem sinal de
polícia ou ambulância. Nenhum rastro de caminhão de lixo, marcas de freada,
super-heróis com suas capas e máscaras. Embaixo do viaduto reconheço um carro
com pisca alerta aceso.
Lá dentro, minha
amiga ouve Marina Lima, me dá um abraço apertado, reafirma sorrindo:
- Eu avisei, não ia
dar tempo.
E depois deixa
o coração falar.
- Se eu fosse a
Mulher Maravilha, te levava agora para a suíte de um hotel cinco estrelas.
Fecho os
olhos, ela acelera, a chuva aumenta.
É sexta-feira,
primeiro de abril de 2005.
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