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LITERATURA - LUIS COSME PINTO

01 abril, 2015





POR ACIDENTE


A crônica que segue é de autoria do escritor e jornalista Luis Cosme Pinto,  editor-chefe do Jornal Record. Para curtir a leveza das inspirações do autor, indicamos o seu livro “Ponte Aérea”, Ed. Novo Século 




Ela tem sempre uma novidade para contar. E o melhor, quando não tem,   inventa. Faz curso de meditação, estuda  astrologia, viaja para Lençóis Maranhenses, assina revistas de turismo e de qualidade de  vida, aplica no mercado  financeiro, ou seja, não falta assunto. 

conversa  é repleta de descrições precisas e bem-humoradas. Minha amiga é uma especialista em contar histórias e tem uma técnica muito peculiar de torná-las engraçadas. O segredo é preencher a  narrativa com detalhes, mas eles só entram se forem divertidos e surpreendentes. Nem todos são exatamente verdadeiros, não aconteceram do jeito que ela narra, mas a versão é sempre mais rica que o  fato, ela gosta de repetir.

Noite dessas, essa amiga me acordou sem sequer me dar tempo de perguntar as horas. Era um acidente na Avenida  Sumaré - informava com a voz alterada. A Sumaré é uma autopista que cruza vários  bairros movimentados de São Paulo. De dia é congestionada, mas de madrugada é disputada por jovens que vão para lá ver quem cruza mais rapidamente seus quatro quilômetros. No Rio, chamam de  pega, em São Paulo é racha, mas em qualquer lugar do mundo é uma tentativa simultânea de suicídio e homicídio.

Bem, ela me dizia que estava saindo de uma “balada” quando se viu diante de uma cena insólita. Eu pergunto se ela precisa de ajuda, mas ela pede, com riso contido, para eu esperar. Sussurrando, alega que tem de se afastar alguns passos para explicar. Estou nervoso com o acidente, irritado porque sonhava, impaciente com a demora e, agora, revolta­do com o riso dela. Qual é a graça?


Mas mau humor ali não cola e ela continua: - Você não vai acreditar, a ambulância está levando embora o Super-Homem, a Mulher Maravilha, que parece apenas tonta e não corre risco. Já o Batman sofreu um corte no supercílio, nada grave. Por um momento penso que é um pesadelo, mas ela fala sem parar e acendo a luz. São 5 horas e a descrição ganha detalhes, os tais detalhes.

O carro dos três super-heróis bateu na traseira de um caminhão de lixo, ela conta que vinha em outro veículo e acompanhou tudo. Viu quando os lixeiros, já refeitos do susto, tentaram enxergar quem estava lá dentro, mas os vidros escuros não deixavam. Eles abrem a porta do motorista e aí, sim, levam um super-susto com os super-heróis. O Super-Homem é enorme, musculoso e está uma fera. Amedrontados, os lixeiros se entreolham. Um deles esfrega rosto, o outro aperta o nariz e pergunta à minha amiga se ela está vendo o mesmo que  ele. O Super-Homem reconhece a culpa, os garis se acalmam, mas minha amiga se agita. A contadora de casos se aproxima da Mulher Maravilha em busca de uma explicação, mas a moça pede o celular emprestado e liga pedindo ajuda. Eu imploro, mais curioso que cansado: - Quem são essas pessoas? Era uma filmagem? Um comercial de TV?


- Nada disso - ela explica. O grupo vinha de uma festa à fantasia. Parece que o carro preto do Homem Aranha e do Zorro escapou por pouco.
Ela respira fundo e prossegue: - O mais incrível é o que  está acontecendo agora.
- O que? Eu grito.
- Está se formando um pequeno congestionamento, os carros param do outro lado e os motoristas veem ver as vítimas em seus trajes inusitados. As pessoas estão paralisadas, não sabem se riem, se ofereçam ajuda, se é uma  dessas pegadinhas de programas  de televisão. Respira fundo...


- Espera aí, espera! Vou ter que parar, acaba de acontecer algo ainda  mais inacreditável.
- Hã? - É só o que  consigo dizer, atordoado.
- A mãe da Mulher Maravilha acaba de chegar, e ela não está bem, não. Parece que vai desmaiar. Ih! Desmaiou. Caiu aqui  na minha  frente.
- O que foi? - Eu já estava me vestindo para ir até lá.
- Seguinte, apurei com a Mulher Maravilha que a mãe não sabia da festa, viu a filha sair de calça jeans e camiseta com o namorado, que ela acaba de descobrir que é o Batman. A mãe jaz estirada no asfalto, ela veste pijama de  bolinha, pantufa com uma cabeça de coelho na ponta e touca  rendada.


Ah, meu Deus, isso tudo rolando a apenas alguns quilômetros da minha casa e eu dormindo. Sinto-me um idiota e suplico:
- Espere, estou indo...
- Não sei se vai dar tempo, mas agora chegou ao local - ela adora se fingir de repórter policial - uma viatura, o numeral é primo, segundo, quadra, sena. É assim que  se diz 1-2-4-6 na linguagem da corporação. O guarda não sabe se socorre os elementos ou se leva os sobreviventes para uma averiguação. Essa história de baile à fantasia parece estranha, pode ter droga rolando, melhor registrar um B.O. no D.P. O policial acaba de falar com o cabo Viana, ainda  mais sonolento que ele.


Até o nome do cabo ela faz questão de me dizer. Acelero o carro e, já contaminado pelo policialesco relato, dou o alerta:
- Em três minutos chego ao logradouro da ocorrência. Ela interrompe:
- Não vai dar tempo...
Chego junto com uma chuva fina, faz frio, e a alvorada lança um brilho prateado sabre o asfalto.
Silêncio.
Nem sinal de polícia ou ambulância. Nenhum rastro de caminhão de lixo, marcas de freada, super-heróis com suas capas e máscaras. Embaixo do viaduto reconheço um carro com pisca alerta aceso.
Lá dentro, minha amiga ouve Marina Lima, me dá um abraço apertado, reafirma sorrindo:
- Eu avisei, não ia dar tempo.
E depois deixa o coração falar.
- Se eu fosse a Mulher Maravilha, te levava agora para a suíte de um hotel cinco estrelas.
Fecho os olhos, ela acelera, a chuva aumenta.
É sexta-feira, primeiro de abril de 2005.

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