Vanise Rezende - clique para ver seu perfil

MEMÓRIAS DE UMA VIAGEM

30 julho, 2014

Conservo alguns rabiscos dispersos em antigas agendas – doces e suaves marcas de experiências de vida. Publico hoje uma mensagem escrita a amigos italianos, em 1981, logo após minha estada com eles, em Grottaferrata, (uma das pequenas cidades das colinas romanas, próxima a MarinoRocca di Papa, esta mais conhecida por abrigar a residência de férias do papa). Segue o texto:


Parece-me que há encontros na vida que, ao nos unir, nos ligam para sempre. Esse, o meu sentimento após os dias passados  em Grottaferrata.
    Acredito que a amizade é a eucaristia dos que vivenciam, na simplicidade, a doçura do afeto.  Lembrei-me da citação bíblica de Lucas, o evangelista: dois discípulos de Jesus caminhavam na estrada de Emaús, após a sua morte. No caminho, Ele lhes apareceu, como fosse um caminhante. Depois que não mais o viram, comentaram: “Não ardia os nossos corações quando Ele nos falava pelo caminho, e explicava as Escrituras?" [1]. Assim, o que sinto, sem vocês por perto.

No trecho da minha viagem Rio/Recife reencontrei a natureza tropical intensamente bela: uma alvorada brilhante, matizada de luzes e cores. À chegada, viam-se os coqueiros a empinar suas franjas balançantes em meio à vegetação tropical: o verde era intenso, o sol pleno e difuso, e um forte cheiro de chuva banhando o chão da primavera – uma moldura extremamente viva para os semblantes cansados da gente sofrida de minha terra.

Num relance do olhar, identifiquei os rostos luminosos e felizes das minhas três –  Letícia, a primogênita, não se conteve: ultrapassou a barreira que a impedia de vir ao meu encontro e se lançou num abraço; depois, as outras duas e Luís Carlos a acompanharam, deixando para trás qualquer impedimento.

Os guardas não fizeram outra coisa que observar a alegria do encontro: Verinha me olhava encantada, dizendo-me que eu chegara mais bonita do que antes; Letícia confessou o seu temor de que o avião caísse e eu não chegasse... Carlinha saltou-me ao colo, e não me deixava mais. Luís Carlos  procurava fazer a parte do adulto, e gracejava sobre os quarenta quilos da minha bagagem. Comentei, brincante: Você viu, foram dois meses exatos! E ele: Dois meses, não: eu contei sessenta e três dias!

Em casa, muitas surpresas: o acesso e o terraço frontal estavam com a pintura renovada, também os assentos, na área aberta, tinham outro revestimento. As flores alegravam a casa; e no meu quarto haviam três grandes desenhos, em cartolina, colorindo a brancura das paredes. Lurdes, a secretária amiga, segunda mãe das minhas filhas, me tomou pelos braços a rodopiar, esnobando sua força.

Das malas abertas saltavam bonecas e outras lembranças que os amigos mandavam para as crianças. Só mais tarde me foi possível trocar as primeiras notícias e ver a alegria de Luís Carlos ao receber o conhaque e, especialmente, os livros que lhe trouxera.

À noite, Verinha me pediu para ler uma das histórias de um livro enviado por tio Silvano: 22 Contestatori Fuori Serie, com a dedicatória do autor, ele mesmo.[2].


A primeira história era de Melania, de Milão, uma riquíssima mulher que, ainda jovem, tomara a decisão de distribuir sua riqueza com os pobres. Verinha, minha pequena filósofa, comentou: Ela fez bem, dando tudo o que tinha aos pobres. Pra que ia servir a ela tanta riqueza? Quando a gente tem uma casa, pra que serve ter outras? Acho que com tanto dinheiro, ela não ia saber o que fazer na vida".  

O texto conclui: Vocês gostariam de saber como terminou a história de Melania? Posso contá-la em poucas palavras: 

Após ter feito várias peregrinações com a finalidade de ajudar os eremitas que viviam nos desertos, ela decidiu ir viver numa cela, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém.

Melania saia raramente da sua solidão meditativa de eremita: uma vez, para fundar um mosteiro feminino; uma segunda e ainda outra, para fundar dois mosteiros masculinos.


Ela era uma mulher enamorada de Deus e cheia de sabedoria. Dizia aos monges: Vocês podem jejuar quanto quiserem, podem velar à noite, se assim lhes parecer; mas saibam que o Espírito do Mal sabe fazer essas coisas melhor do que vocês. Querem saber em que ele não conseguirá vencer vocês? – No amor.

As histórias do pequeno livro foram traduzidas e comentadas, uma a uma, nos dias que sucederam. Depois, Verinha quis escrever ao tio Silvano para lhe agradecer – agora que via o seu nome gravado em um livro (e ela gostava muito de ler), entendera que além de ser uma pessoa muito querida e especial, ele era um escritor importante.







[1] Evangelho de Lucas, 24,32
[2] Silvano Cola. 22 Contestatori Fuori Serie. Città Nuova Editrici. Roma, 1978

Fonte das imagens:

1. Iconografia dos discípulos de Emaús - Ditos e Benditos - www.marizandicarvalho.blogspot.com
2. Foto crianças - arquivo pessoal.
3. Iconografia : Le donne dei Pollaiolo - uma das três iconografias da mostra a ser realizada em Milão-It  (7/11/2014 a 16/02/2015) - www.italiadiscovey.it

4. Eremitério da atualidade (Italia) - www.voglioviverecosi.com




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AMIZADE - NA ALEGRIA E NA DOR

25 julho, 2014

A vida é repleta de surpresas: umas, de suaves ou ruidosas alegrias, outras, carregadas de dor. São dois lados do chão da vida que reclamam, com sensatez, os amigos por perto.

Na alegria, é mais espontâneo partilhar os sentimentos, disseminar o contentamento com aqueles que se ama – na ventania do barulho e da festa, a alegria comemora o prazer de viver.

A dor se reveste de outra mensagem: às vezes chega de repente, sem pedir licença de se instalar em nossos dias; noutras ocasiões achega-se devagar, silenciosa e dura – jamais é superficial, e exige profundez, coragem e fé. Quando acolhida com sabedoria e dignidade, a dor é compartida com os irmãos de fé, e com os amigos, ao tempo em que se cuida dos mais frágeis, que o sofrimento pega a gente quase sempre despreparada.


Nos momentos de dor, convém lembrar que não somos os únicos a sofrer neste mundo... 

Somos iguais a todos os seres humanos, nossos irmãos, milhares deles assolados em situações cruéis: há os atingidos pela crueza das guerras; os que padecem a penúria crônica da doença e da fome; os que são subjugados e suportam a violência de nações poderosas - como, há tantos anos, o povo palestino, sem o direito de viver em paz no chão em que nasceram. 

No Brasil de hoje, há os que sofrem as consequências da renitente estiagem e das enchentes periódicas – calamidades regionais a atingir pessoas de toda ordem social, mas, de forma impiedosa, os pobres. Tais cenários – agravados pela irresponsabilidade política, social e ecológica – quase sempre abrigam tragédias cujo entendimento assenta-se no grande mistério do viver.        

Embora na diversidade, há uma característica comum às situações de dor: são as particulares e duras histórias havidas na intimidade das famílias, sempre muito difíceis de entender e de aceitar – uma doença incurável, um casamento desfeito, a morte súbita de um ente querido ou o anúncio de um nascituro com uma síndrome específica: um filho, um sobrinho ou um neto que nos convida a recebê-lo com o carinho e o cuidado de que formos capazes (uma pessoa a quem – se por direito merece o respeito de todos – por designo da vida, terá o seu mundo reduzido ao entorno de um convívio familiar e social muita vez restrito à sua condição de mais diferente entre os diferentes que somos). A nós, a responsabilidade de compor o seu universo afetivo na troca de compreensões, sensações, e gratuidade.  


No correr da vida, os anúncios dolorosos exigem atitudes de reflexão e respeito. Cada um carrega as marcas de fatos inesperados e tristes já enfrentados. Abençoados os que puderam, e ainda podem contar com amigos sinceros presentes nesses momentos; benditos os que têm a humildade de reconhecer que, também eles, podem ser chamados à aceitação da dor – é que a vida é costurada com retalhos de eventos: ora mais alegres, ora difíceis, e, por vezes, de pesar. A nós, sempre, o aprendizado do amor.  

Nesses dias, ajuntando-me àqueles que apoiam uma difícil situação familiar, alguém lembrou um verseto de um salmo cristão: “Descarrega o teu fardo em Javé, e Ele cuidará de ti!”.


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Crédito das Imagens: 

1. Fotografia - arquivo pessoal
2. Escultura - Abelardo da Hora (fotos de uma exposição).

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CAMINHOS DE SE ENCONTRAR

18 julho, 2014


Tenho dedicado parte de meu tempo a ajuntar os retalhos da vida – fotos e rabiscos de quase meio século. Hoje encontrei um texto do meu companheiro de tantos anos, que já fez sua viagem ao coração de Deus. Um registro que agora partilho neste espaço:


"A comunhão entre duas pessoas não é um produto, é um acontecimento. A primeira condição para que essa comunhão aconteça, é que uma das pessoas que ama consiga viver, na centralidade, a sua solidão. Viver é, simplesmente, estar só.

A segunda condição é que a pessoa que ama, ame gratuitamente: No amor, o que vale é amar. [i]. A terceira condição, é que aconteça que a pessoa amada também proceda assim – na sua solidão e no amor sem interesse."


'A graça de se achar, de flutuar sem ansiedade, nas ondas da vida, a graça de se sentir viver, acontece quando você se abre, gratuitamente, para a vida – e isso surpreendentemente, também é graça'.(ii)  

No linguajar saboroso e único adotado por João Guimarães Rosas, no romance Grande Sertão: Veredas, ele afirma: “Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de  a gente perdidos no vai-e-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se pode facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença nenhuma! Porque existe dor”. (iii)





Para estar com Deus  - concluo, agora - a gente precisa, antes de tudo, buscar os caminhos de se encontrar. E a gente só se encontra na relação entre as pessoas.  O amor a Deus é um convite a cada um, de acolher a diferença do outro no gesto solidário da reciprocidade  o dar e o receber, como um dom recíproco.  É nesse gesto que se aprende a reconhecer o outro como o diferente de mim, a ser amado e respeitado.

Viver a solidão seria, então, o exercício contínuo de navegar para dentro de si , e aprender a olhar o outro sem a poluição do preconcebido, do pressentido. Uma solidão ativa, mobilizadora, que, ao tempo em que renova, abre  o caminho em direção ao outro.    



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[i] Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares.
[ii] No texto não há registro autoral.
(iii) Grandes Sertões: Veredas. Ed. Nova Fronteira, Biblioteca do Estudante. Rio de Janeiro-RJ, 2010, p.60.


Crédito Imagens - arquivo privado.

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O TEMPO URGE

15 julho, 2014

A gente vai deixando o tempo esvair-se, esquecendo pelo pelo caminho o cuidado com a essência da vida. 

Hoje, vendo a imagem de um antigo telefone, pensei que a gente precisa “ligar” para si mesmono profundo do ser – e se chamar, com urgência, para cuidar da vida. Se não se atende a esse chamado, nada acontece, e a vida se dissipa no tempo como rasgos de papel ao vento, dissipando-se sem norte e sem destino.

É cada vez mais presente, em mim, a percepção de que o tempo urge. 

Certa vez tive um sonho – encontrava-me num grandioso supermercado, com inúmeros departamentos distribuídos em vários andares: eu precisava fazer minhas compras, mas estava atrasada, e o tempo passava... Olhava o relógio, o mostrador já indicava o dia seguinte, o tempo esvaía-se – eu na preocupação de ser cada vez mais tarde!

Hoje, procuro entender aquela mensagem: o tempo perdido é gerado na inércia diante dos sonhos, na preguiça que temos de ir atrás daquilo que se quer alcançar. Ficamos no desejo de que a vida se transforme de motu proprio... Pudera! Como a vida pode acontecer sem a nossa interveniência, cada um a fazer suas escolhas, e a decidir como alcançá-las?


Os sonhos da vida acordada, exigem a percepção correta da parte que nos cabe para construir o queremos. Assim, podemos sair em busca de veredas e atalhos que nos conduzam lá onde o sonho nos convoca. 

Muitos se perdem porque não buscam aprender a exercer a própria autonomia. Uma autonomia que significa saber  discernir com quem e com que posso contar - pois o aprendizado se dá na busca e na partilha livre e sincera de apoio, de talentos e de saberes. Somos seres sociáveis, não podemos dispensar apoio e colaboração. Mas, ao mesmo tempo, nos diminuímos se nos tornamos cada vez mais dependentes do outro. Mesmo quando se trata de uma relação de afeto.

Alguns pensam que o aprendizado é exclusivo da juventude. Mas, não há idade nem diploma que nos dê um atestado de sabedoria: somos eternos aprendizes, embora a garganta do tempo siga devorando as horas e os dias da nossa vida.

Hoje, versejei assim os meus desejos:

Quero um tempo pra sonhar
Quero um tempo pra pensar
E um bom tempo pra aprender!

Também quero um bem-querer
E a força de renascer
Da dor que a vida me traz
Tempo alegre de viver!

Quero os amigos juntar
E cuidar também de amar
Um tempo só pra servir!

Um tempo também pra mim
Para encontrar o meu ser
E inventar novo tempo
Um bom tempo pra viver!


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Fonte imagens: www.canstockphotos.com.br

O DIÁLOGO NO AMOR

05 julho, 2014


Vivemos em busca de uma linguagem que exprima, com clareza, o que lá dentro do coração, no mais profundo, desejamos comunicar. Mas, como fazer para que o outro nos escute, e compreenda, e acolha - o dito e o não dito - como fosse uma telemetria de coração a coração?

Como seria diferente se a linguagem da gente expressasse, de fato, o que se deseja transmitir! A fala, muita vez, tem apenas a capacidade de anular o sentimento, de esconder o que se quer dizer, e quase sempre está aquém, ou até pode negar o que nos move o coração.


Para expressar o amor – a carícia essencial – faz-se necessário o gesto. O amor, longe de ser um sentimento, é uma arte que se expressa no cuidado, no bem-querer. A escuta atenta, o vazio do pressentido, e o falar como oferenda que nasce da minha atenção pelo outro... Tudo isso compõe o desprendimento desejado, nas duas pontas de contato.  

O que seria o diálogo com uma pessoa crivada pela dor do amor doído, do amor ofendido, do amor perdido? Se não se permite à dor que se torne a passagem para a mudança, abre-se o caminho da desistência, da renúncia a tudo o que a vida tem a oferecer, enxergando-se apenas uma pedra no meio do caminho..."No meio do caminho tinha uma pedra!"

Tudo se esvai numa dor expectante, na agonia do mistério, do não previsto a espancar-nos o coração, da negação do sonho.


Mas, atenção: na vida, há fortes sinais de que não há lugar para acomodar-se, deixar pra lá... Alguns fatos ou situações nos convidam a assumir uma sólida posição,  para além das nossas possibilidades. O amor é exigente e o viver convida à sabedoria de se colocar, por inteiro, no momento que se vive. Sempre tentando abrir nosso coração para o amor, a começar pelo amor por nós mesmos.

É quando se consegue escutar as sensações profundas do ser, o corpo, a razão, tudo em nós parece sussurrar, com suave intensidade, que aquela sentida agonia representa a convulsão que vai gerar o novo, pois toda mudança nasce  de um rebuliço social, ou de um sofrimento pessoal, ou de uma perda irreparável. Devagar vai surgindo a madrugada, o sol deixa a noturna escuridão do outro lado do mundo... E, para nós, do lado de cá, explode a aurora!

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Créditos das Imagens:

1. Cachimbos e Feirantes - facebook.com/photo.php?fbid - Do Sertão ao Litoral - as encantadoras feiras livres.
2. Janela - arquivo pessoal.

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MEMÓRIAS DO SERTÃO

04 julho, 2014

Assim, elas chegam sem avisar, as memórias, e nos levam de volta à infância, a minha lá no sertão do Moxotó, banho de bica no calçadão da igreja, correria às tanajuras em buliçosa cortina esvoaçante, (fartura de macaxeira, jerimum, melancia e goiaba) – jumentos amarrados nos pés de algaroba, pão-doce mordido no caminho de casa, brinquedos de barro e bonecas de pano na feira de rua (um shopping center esparramado na poeira do chão), e quanta alegria!


Às seis da tarde o badalo triste do sino, a melodia a se espalhar num céu azul brilhante e sem nuvens, se não chover como fica a plantação, em março nem sinal, essa esperança da festa de São José (inda vejo a correria ao primeiro sinal de luz, nove da noite todo mundo pra casa, vão desligar o motor!) e a misturança de sabores do doce de mamão com coco, goiabada e bananada, rapadura com farinha, a meninada a rodear a praça ao som da rádio difusora - índia teus cabelos nos ombros caídos, negros como a noite que não tem luar! - e os ecos tristes de folhas mortas, você é jornal de ontem... Nem uma carta deixou!




Os namorados de minha irmã – como eram bonitos! – tão vivos nos sonhos da menina mulher; e as serenatas, ah, as serenatas na calçada da igreja, ao lado de casa, os sonhos embalados nas cordas do violão, e as canções que minha mãe cantava: Sertaneja se eu pudesse,  se papai do céu me desse o espaço pra voar... Eu corria a natureza, acabava com a tristeza só pra não te ver chorar!  E o burburinho da máquina Singer a me ver crescer...

Quero banhar-me na água trazida por Dona Quitéria, subindo a escada, lata       d´água na cabeça - contemplar Maria Grande na cozinha espaçosa (o fogão a carvão, colher de pau a se enroscar na panela de barro e os bolinhos de feijão amassados nas mãos, tão saborosos!), e tornar aos cuidados de Maria Pequena – éramos sete, as crianças, ela a nos fazer o lavapés, à tardinha, vivíamos descalços.


Vou seguir em direção à fazenda de Teté, (um longo corredor de avelós embrenhado no cipó retorcido da cerca); sentir a gostosa acolhida da boa gente de Custódia, sair nos pastoris – Viva o azul! Viva o encarnado! – (a minha irmã do azul, eu a contramestra), e os teatros ensaiados em casa: Seu doutor eu mandei lhe chamar, pra o senhor uma receita passar: dói-me aqui e dói-me cá!

Volver a los siete ...  Sentir o ardor das chineladas da minha mãe, nas palmas das mãos, o cheiro do café torrado no tacho, o gosto da paçoca de carne seca e farinha, pisada no pilão, (minha avó e seu longo rosário azul, absorta, a rezar por todos nós); voltar às férias em Tabira, no Pajeú, favos de mel lambidos num doce prazer, as laranjeiras carregadas no quintal do meu avô, bastava tirar e a mãe descascava deixando a pele inteira, apenas um corte para sugá-la (Mãe Velha, paciente e cuidadosa, a costurar camisas de homem) e, no quintal de Tia Emília, as rodas alegres de assar castanhas e a doce amizade de Josete, até hoje tão presente!  




Vontade de subir no caminhão pra ir à fonte de Sabá, de tomar banho de rio como todo mundo fazia, e, como todo mundo, montar a cavalo, correr pelas ruas e me chafurdar feito moleque... Mas, era proibido!

A casa tão grande e comprida, a casa limpa e arrumada, e minha mãe que sabia de tudo: onde está o meu livro, a tesoura, o cordão, o lápis, onde está? E minha mãe sabia! Quero de volta meus vestidos de organdi, minha saia rodada com babados e sianinha, e o São João caipira da minha infância, a faca na bananeira, a fogueira em frente de casa, o nosso olhar curioso na bacia d´água, pra ver o rosto, que ninguém queria morrer naquele ano.  




Vou correr dos papangus na festa de carnaval, sair gritando com o palhaço do circo, (Hoje tem espetáculo? Tem, sim senhor! ) cantar as modinhas das eleições (torcidas acirradas em grande suspeição), acompanhar a procissão de ramos e a malhação do Judas na semana santa, e volver às danças animadas do bar Fênix, eu a rodopiar, levemente índia, o coração em solavancos! 



Ai, com essas lembranças tantas e tão boas, como pensar alguma coisa que era ruim?

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Crédito de Imagens:

1. Igreja de Custódia - www.diocesedefloresta.wordpress.com

2. Máquina de costura -  www.canstockphoto.com.br/foto-imagens
3. Sertanejo com jumento - www.canindesoares.com/fotojornalismo
4. Banho de rio -  www.cnstockphoto.com.br/foto-imagens
5. Malhação Judas - www.riodejaneiroaqui.com.br 


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PROCURA-SE CÉU PARA ALUGAR...

01 julho, 2014

O texto que segue, traz uma feliz amostra da arte de escrever, e nos põe em contato com uma mulher que lida com a escrita de forma brilhante – a jornalista portuguesa Eduarda Freitas:

Ando a procura de um pequeno céu para alugar.  Um céu sem grandes luxos, uma coisa simples, não muito grande, onde caiba uma pessoa nem gorda nem magra: eu.                                        
Um céu com vistas para cima, mais para cima, para cima de cima. Não tenho preferência pela cor. Pode ser um céu pintado de azul, mas, também pode ser pintado de cor-de-laranja-fim-de-tarde  ou  de preto-cor-de- boas-noites ou quase-branco- de-nuvens-aos-molhos. Um céu sem divisões obrigatórias, qualquer coisa como um open space, com espaço suficiente para me esticar ao sol. 

Gostava também que tivesse um pequeno jardim, ou uma varanda, para plantar estrelas. Dizem que as estrelas, no céu, são boas de cultivar e dão luz em pouco tempo. Percebo pouco de céu-cultura, mas para isso é que servem os livros com ensinamentos, e como penso seriamente em dedicar-me a esse tipo de ofício, tenho andado a ler diversos textos de cultivadores de palavras, que explicam direitinho a altura do coração em que as estrelas dão mais luz.

Espero aprender alguma coisa nos próximos tempos, aprender de verdade, porque pelos vistos é preciso muita dedicação. O céu que ando a procura, para alugar, não precisa ter aquecimento central. Muito menos global. Quero um céu que seja bem local. Fácil de localizar até na palma da mão. Para receber o mundo sem sair do céu. Estico a toalha e faço de todos os dias fins de tarde. Para que seja sempre cedo e tenha sempre tempo para o tempo. Que até pode chover que eu não me importo. Sou uma Maria vai com o vento.



A minha única exigência é que os vizinhos dos céus ao lado ou acima, não reclamem se alguma clave de sol lhes for tocar à porta, ou algum balão de risos subir tão alto que bata no tecto do meu céu que pode muito bem ser o chão deles. Temos que ser uns para os outros. 

Eu – inicialmente – até pensei em comprar um céu pequeno, um céu que depois ficasse mesmo para mim. Mas hoje em dia um céu comprado fica muito caro. E depois há os bancos que pedem este mundo e o outro por um simples pedaço de céu e esquecemos a vida toda a paga-lo.

Eu pensei pouco e decidi que preferia alugar. Até porque se me fartar do meu espaço, alugo outro céu. É só juntar as estrelas e virar a lua ao contrário. Não há compromissos com bancos. Só com bancos de ar. Que fazem tremer a barriga.

Tenho andado numa agitação: já fui a várias imobiliárias e até procurei na internet, mas só me aparecem céus-de-faz-de-conta. Desses, conto eu vários. Se por acaso alguém souber de um céu – que até pode ser usado – para alugar, diga-me, por favor.
A minha morada (para já) é: Rua na Terra, 100 número.

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 Eduarda Freitas é jornalista da RTP - Rádio e Televisão de Portugal - e colaboradora do jornal português EXPRESSO. Foi correspondente do jornal A BOLA e jornalista na SIC - Televisão. Trabalhou como jornalista no Semanário TRANSMONTANO e na Rádio INDEPENDENTE.

Fonte Imagens:
Casa -  Can Stock Photo – www.cnstockphoto.com.br/foto-imagens
Eduarda Freitas – www.advivo.com.br/re--fora-de-pauta/19968


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