Após um longo período ausente, neste espaço -- para finalizar um romance que ousei escrever -- é com alegria que volto para registrar mais uma viravolta democrática na América Latina; desta vez na Colômbia. Para comentar esse fato, ninguém mais autorizado do que o reconhecido sociólogo português, Boaventura de Souza Santos.
Quanto ao romance, que se dá nos anos 70 -
período da ditadura militar, no Brasil, e das grandes mudanças na Europa - logo
mais farei a devida apresentação.
Boaventura de Sousa Santos é doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de
Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e
Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
-------------------------------
Boaventura: como a Colômbia venceu
Eleição de Petro-Francia abala décadas de domínio das oligarquias. Resultado mostra: para enfrentar direita antissistema, é preciso expor seu vazio programático, mobilizar ruas, dialogar com jovens e apostar num projeto radical de mudanças.
- Por: Boaventura de Souza Santos
- Publicado em 21/06/2022
- Em: OUTRASPALAVRAS
Pela primeira vez na história da Colômbia um
candidato de esquerda ganhou as eleições presidenciais. Pela primeira vez, uma
mulher negra e da classe trabalhadora (mineira e empregada doméstica) foi
eleita vice-presidente. O continente latino-americano não cessa de nos
surpreender e, se as surpresas por vezes nos deprimem, outras vezes enchem-nos
de esperança. Neste caso, a esperança é decisiva porque a alternativa, tanto na
Colômbia como no continente, seria o desespero e o possível colapso da já
frágil democracia. É, pois, importante analisar as causas desta vitória e o que
ela significa.
Neste país de 49 milhões de habitantes, em que um
quarto dos eleitores tem 28 anos ou menos, a grande maioria dos jovens votou em
Gustavo Petro e Francia Marquez (sobretudo os de idade entre 18 e 24 anos). É
na juventude que está mais viva a necessidade de mudança. Foi ela uma das
principais forças da mobilização nacional que em 2021 parou o país para
reclamar o fim das políticas neoliberais de austeridade. Foi o famoso Paro
Nacional de que resultaram 46 mortos em confrontos com a polícia e o exército.
A energia inconformista que o Paro gerou foi canalizada com êxito para estas
eleições. Para isso contribuíram decisivamente dois fatores: o uso persistente
e competente das redes sociais que seduziu a geração TikTok e logrou desmontar
a argumentação fraudulenta, elitista, misógina e racista do candidato de
direita, ao mesmo tempo que expôs os “esqueletos no armário” de muitos
(incluindo jornalistas) que o apoiavam; a mobilização de artistas e
intelectuais que transformaram a eleição de Petro e Francia num ato de cultura
contra a barbárie.
As principais reformas estruturais propostas por
Petro e Francia são as seguintes: mobilizar a sociedade colombiana como
sociedade cuidadora que reconheça e recompense o trabalho de cuidado das
mulheres; estabelecer uma nova relação entre a sociedade e a natureza que dê
prioridade à defesa da vida sobre os interesses econômicos, promova a transição
energética e democratize o conhecimento ambiental; passar de uma economia
extrativista a uma economia produtiva que diminua a desigualdade na propriedade
e uso da terra mediante a reforma agrária que inclua o acesso e uso da água e
transforme o mundo rural colombiano em peça-chave da justiça social e
ambiental; garantir o cumprimento dos acordos de paz de 2016, promovendo um
novo contrato social que garanta os direitos fundamentais, em particular os
direitos das vítimas do conflito armado, e estimule uma política de convivência
pacífica e de reconciliação.
É a primeira vez no continente em que uma agenda
feminista centrada no cuidado tem tanta prioridade. Não se trata do feminismo
de classe média, tantas vezes falsamente radical e politicamente equivocado
(por exemplo, no caso do golpe de 2019 contra Evo Morales), mas antes do
feminismo negro consciente da multiplicidade das opressões (sexistas, racistas,
classistas) na esteira de Ângela Davis. É igualmente a primeira vez que a
agenda ambiental assume tanta prioridade num programa de governo. Em qualquer
destes casos não se trata de improvisações de última hora, mas de políticas e
convicções construídas ao longo de anos e testadas na prática da atividade
política anterior tanto de Petro como de Francia.
Estas eleições terão impacto no continente.
Contribuirão certamente para fortalecer o momento de soberania e de autonomia
em relação aos EUA que o continente vive em vésperas do endurecimento das
relações entre os EUA e a China e da luta pelo controle dos recursos naturais e
do comércio internacional que daí decorrerá. A partir de hoje, os presidentes
do México e da Bolívia sentir-se-ão menos sós (e mesmo recompensados) na luta
que recentemente travaram contra a farsa da última cimeira das Américas
convocada pelos EUA, com as suas habituais exclusões unilaterais. Além disso, a
democracia colombiana pode contribuir para desarmar os golpes antidemocráticos
que se preparam no continente. É reconfortante ver o candidato perdedor, que se
afirmara como antissistema, apressar-se a reconhecer os resultados eleitorais e
a felicitar o candidato vencedor. E o mesmo se pode dizer do atual presidente
Ivan Duque, com o seu telefonema a Petro, convocando-o para reuniões nos
próximos dias de modo a garantir uma transição tranquila e transparente. Por
outro lado, as eleições na Colômbia mostram a fragilidade dos candidatos da
direita antissistema. A obsessão de Rodolfo Hernández com a corrupção apenas
pretendia esconder que ele próprio estava acusado de corrupção. Talvez a
obsessão de Bolsonaro com a possibilidade de fraude eleitoral pretenda apenas
esconder que a fraude é ele próprio.
O impacto real destas eleições na Colômbia vai
depender de muitos fatores. Para já, voltou a respirar-se paz, o que não
sucedia desde 2018. No final do mês, a Comissão da Verdade entregará o seu
relatório final. Será certamente um documento importante com recomendações que
a nova equipa política não deixará de tomar em conta. Surge num momento de
esperança e estou certo de que contribuirá para a fortalecer e lhe dar
consistência. Não será, como se temia, um documento contracorrente. Será um
documento que impulsará a corrente. Com o peso do chumbo da guerra enterrado, a
navegação será mais leve.
------------------------------------
FONTE:
Nenhum comentário :
Deixe seu comentário: