Vanise Rezende - clique para ver seu perfil

O ATO INCONDICIONAL DO ABRAÇO - BOAVENTURA DE SOUZA SANTOS

02 julho, 2022


Publicado em: 2 de julho, 2022
Atualizado em: 21 de julho, 2022

O final de junho chegou com novas informações sobre o vírus Covid-19 e seus outros apelidos, que os entendidos chamam de cepa e variante. Precisamente na entrada das férias escolares de julho  quando todas os avós que resistiram ao Covid-19 teríamos os netos mais próximos. Coube à epidemiologista da Fiocruz, Dra. Margareth Dalcomo, divulgar um categórico aviso sobre uma nova variante do Omicron, com grande velocidade de transmissão. 

A recomendação é que, a partir de agora, devemos manter um maior cuidado: distância, máscara, lavar sempre as mãos, sair apenas se indispensável e, de consequência – digo eu  nem pensar em estar juntos, quanto mais abraçar! Durante esses quinze dias ou mais, devemos manter o adequado distanciamento, de modo que a situação não se agrave. No momento, há notícias de casos no sudeste do país. 

O fato me fez lembrar um artigo do sociólogo português Boaventura de Souza Santos, publicado por Outras Palavras em setembro passado, com o título: A urgência e a poética do abraço. Na ocasiãoem Portugal pensava-se ter superado o pior do terrível vírus. O editor assim apresenta o artigo: 

"Ao retomar, após 525 dias isolado, o gesto de abraçar, sociólogo reflete sobre seu significado, em diferentes culturas e épocas. Também tenta (em vão) descrever a emoção que o tomou. E indaga: “deixar de abraçar será viver como se morre?” 

Segue um trecho do artigo, em que Boaventura descreve a sua emoção de poder de novo abraçar alguém:

"No passado dia 28 de agosto de 2021 às 16h30 dei o primeiro abraço a alguém fora do círculo das poucas pessoas íntimas que convivem comigo diariamente, quinhentos e vinte cinco dias depois de me ter isolado na minha aldeia a 30km de Coimbra devido à pandemia. O que senti não tem descrição possível. Foi um ato incondicional, uma presença demasiado forte para poder ser objeto de planejamento ou representação. Sentir as minhas mãos deslizar e apertar outro corpo contra o meu, era algo tão familiar quanto estranho. O prazer de outro corpo contra o meu era mais que erótico. Era a verdade carnal da existência, uma prova de ser. Depois veio medo, mas seria medo ou punição pelo prazer? Terá sido um ato impensado e desnecessariamente arriscado? Seria preciso retreinar os sentidos e reaprender a lidar com as emoções do contato físico e com o conforto desafiador que delas deriva?"

Aqui no Brasil, na primeira fase viral, só falávamos com familiares e amigos por telefone e mensagens. Como não era conveniente viajar, usamos vídeos chamadas e outros meios para conversar com os que estavam mais distantes. As redes sociais foram uma ferramenta maravilhosa. Todavia, não nos dava "o prazer do outro corpo contra o nosso”, como escreve o grande Boaventura, referindo-se ao abraço. 

Em reclusão voluntária, usei o tempo, em casa, para escrever, revisar meu livro que acabo de escrever, ler os livros que me esperavam na estante e, como repouso, ver bons filmes e algumas séries na Netflix – as coreanas me agradam muito. Também acompanhei os quase sempre tristes acontecimentos do país e do mundo, nos canais que defendem a cidadania, os direitos humanos e a democracia. 

Um dos meus netos, então com dez anos, algumas vezes chega para me visitar de máscara. E logo corre para lavar as mãos. Com a sua criatividade, encontrou um modo de driblar a situação: abraça-me por trás, a cabeça encostada nas minhas costas  um abraço bem apertado e demorado, como ele gosta, embora sem beijos nem colo de vovó. O seu abraço ao avesso, deixa-me mais alentada quanto aos limites que o vírus nos impõe. Todos acalentávamos a esperança de que, à medida que aumentasse o número de vacinados, veríamos diminuir o número de infectados e de casos mais graves ou mortes. Mas o descuido do governo fez atrasar a chegada das vacinas, e perdemos muitos brasileiros.  

Como dizia, entramos em julho de 2022 enfrentando a presença de uma nova variante do Omicron. Começaremos tudo de novo: volta-se ao isolamento e aos severos cuidados. O que, na prática, chega-me feito uma mágoa: devo controlar os meus sentimentos e, portanto, estocar a minha saudade dos que mais amo:  minhas filhas, meus netos e os caros amigos! Confesso que essa nova onda me pegou despreparada. 

Que difícil missão a sua, Dra. Margareth, e de toda a equipe da Fiocruz! É sabido que a Fiocruz é uma das poucas instituições que resistem ao desmancho desse governo que está aí. E reconhecemos que a qualidade do seu trabalho, muitas vezes premiada e elogiada, é a de nos proteger e proteger todos aqueles que se dispõem a colaborar pelo bem-estar social. 

Resta-me uma curiosidade: os governadores de vários estados do país - quem sabe assessorados por quais especialistas - já haviam estabelecido o fim do Covid, pois dispensaram a obrigatoriedade do uso de máscara ao aberto. É o que se via nas ruas, nos grandes espetáculos ao aberto nos campos de futebol, e nos cafés e restaurantes com lugares ao ar livre. Agora, que as pessoas se habituaram a não mais usarem máscara, como fazê-las voltar atrás? 

Bateu-me uma tristeza enorme, pelo povo que já não se sustenta com a onda do desemprego e a dolorosa fome que supera todos os índices históricos do país, atingindo a grande maioria dos empobrecidos. 

É grande demais a aperreação desses tempos obscuros – as más notícias nos chegam feito cascatas sobre os desmandos nos ministérios, no congresso nacional e em grandes empresas estatais. O povo brasileiro é vilipendiado pelo vírus nefasto da violência e da ignorância que, indevidamente, tomaram conta da presidência do país, responsável por tanta dor!

Os povos indígenas continuam sendo violentados, as mulheres desrespeitadas e estupradas, as leis são elaboradas por avestruzes da ganância e do poder, por pura maldade. Nossos patrícios negros são abertamente discriminados e nenhum desses casos alcança ressonância nos meios de comunicação instituídos. E, infelizmente, as crianças e os jovens estão à mercê do mesmo desamparo, e veem cada vez mais apagadas as esperanças de um futuro melhor. É que os pobres, os indígenas, os negros, as mulheres e as pessoas LGBT não são prioridade neste governo. E, menos ainda, os velhos e os doentes!   

Inúmeras organizações populares, movimentos e ONGs têm procurado reparar o sofrimento de uma parte da população, dando-lhe assistência em diversos pontos do país. Este é o momento de arregaçar as mangas, e, sem dar lugar ao ódio no coração, responder às ameaças da mamona do poder lançando-nos à atividade política como cada um puder, pois urge esperançar mais uma vez! É este o abraço que o povo sofrido e faminto do Brasil está esperando de nós.  

Haverá uma saída com a reconquista da plena democracia, após o resultado das eleições de outubro. E, com essa esperança, entramos na contagem regressiva para o alcance da nossa liberdade de exercer plenamente a cidadania. Não que acreditemos em mágica, pois o país está em derrocada, mas almejamos participar na escolha das prioridades do país, e voltaremos à luta por mudanças estruturais e justiça social. Queremos que seja dado ao povo plenas condições de exercer a cidadania, com corresponsabilidade. 

Veremos o Brasil voltar à sua posição de autonomia e de solidariedade com o seu povo, e reconquistar o seu lugar de liderança na América Latina, não para dominar outros povos, mas para que, juntos, cooperem entre si e com os que mais precisarem.

Então, voltaremos à alegria de nos abraçar, sentindo "o prazer do outro corpo contra o nosso, como uma prova de ser" e a leveza da luta para ser feliz! 

----------------------------------------------------------------

    Fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/urgencia-epoetica-do-abraco-segundo-boaventura/Publicado em: 21/09/2021

Observação: A imagem de abertura desta postagem integra o artigo escrito por Boaventura de Souza Santos, cuja fonte é referida acima.


Dra. Margareth Dalcomo

Pneumologista e pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Margareth Dalcolmo foi agraciada, na quarta-feira (19/5), com o prêmio Nise da Silveira. Oferecido pela Prefeitura do Rio de Janeiro, por meio da Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Mulher, a homenagem é um reconhecimento às “mulheres que abrem espaço para o amanhã” realizando diferentes esforços para salvar vidas, barrar o contágio e proteger os seus territórios durante a pandemia de Covid-19.

https://youtu.be/bM1tDqheqsE (um dos vídeos da Fiocruz, durante a pandemia).



Nenhum comentário :

Deixe seu comentário:

Posts + Lidos

Desenho de AlternativoBrasil e-studio