A recomendação é que, a partir de agora, devemos manter um maior cuidado: distância, máscara, lavar sempre as mãos, sair apenas se indispensável e, de consequência – digo eu – nem pensar em estar juntos, quanto mais abraçar! Durante esses quinze dias ou mais, devemos manter o adequado distanciamento, de modo que a situação não se agrave. No momento, há notícias de casos no sudeste do país.
O fato me fez lembrar um artigo do sociólogo português Boaventura
de Souza Santos, publicado por Outras Palavras em setembro
passado, com o título: A
urgência e a poética do abraço. Na ocasião, em Portugal pensava-se ter superado o pior do terrível vírus. O editor assim
apresenta o artigo:
"Ao retomar, após 525 dias isolado, o gesto de abraçar, sociólogo reflete sobre seu significado, em diferentes culturas e épocas. Também tenta (em vão) descrever a emoção que o tomou. E indaga: “deixar de abraçar será viver como se morre?”
Segue um trecho do artigo, em que Boaventura descreve a sua emoção de poder de novo abraçar alguém:
"No passado dia 28 de agosto de 2021 às 16h30 dei o primeiro abraço a alguém fora do círculo das poucas pessoas íntimas que convivem comigo diariamente, quinhentos e vinte cinco dias depois de me ter isolado na minha aldeia a 30km de Coimbra devido à pandemia. O que senti não tem descrição possível. Foi um ato incondicional, uma presença demasiado forte para poder ser objeto de planejamento ou representação. Sentir as minhas mãos deslizar e apertar outro corpo contra o meu, era algo tão familiar quanto estranho. O prazer de outro corpo contra o meu era mais que erótico. Era a verdade carnal da existência, uma prova de ser. Depois veio medo, mas seria medo ou punição pelo prazer? Terá sido um ato impensado e desnecessariamente arriscado? Seria preciso retreinar os sentidos e reaprender a lidar com as emoções do contato físico e com o conforto desafiador que delas deriva?"
Aqui no Brasil, na primeira fase viral, só falávamos com familiares e amigos
por telefone e mensagens. Como não era conveniente viajar, usamos vídeos chamadas e outros meios para conversar com os que estavam mais distantes. As redes sociais foram uma ferramenta
maravilhosa. Todavia, não nos dava "o prazer do outro corpo contra o nosso”,
como escreve o grande Boaventura, referindo-se ao abraço.
Em reclusão voluntária, usei o tempo, em casa, para escrever, revisar meu livro que acabo de escrever, ler os livros que me esperavam na estante e, como repouso, ver bons filmes e algumas séries na Netflix – as coreanas me agradam muito. Também acompanhei os quase sempre tristes acontecimentos do país e do mundo, nos canais que defendem a cidadania, os direitos humanos e a democracia.
Um dos meus netos, então com dez anos, algumas vezes chega para me visitar de máscara. E logo corre para lavar as mãos. Com a sua criatividade, encontrou um modo de driblar a situação: abraça-me por trás, a cabeça encostada nas minhas costas – um abraço bem apertado e demorado, como ele gosta, embora sem beijos nem colo de vovó. O seu abraço ao avesso, deixa-me mais alentada quanto aos limites que o vírus nos impõe. Todos acalentávamos a esperança de que, à medida que aumentasse o número de vacinados, veríamos diminuir o número de infectados e de casos mais graves ou mortes. Mas o descuido do governo fez atrasar a chegada das vacinas, e perdemos muitos brasileiros.
Como dizia, entramos em julho de 2022 enfrentando a presença de uma nova variante do Omicron. Começaremos tudo de novo: volta-se ao isolamento e aos severos cuidados. O que, na prática, chega-me feito uma mágoa: devo controlar os meus sentimentos e, portanto, estocar a minha saudade dos que mais amo: minhas filhas, meus netos e os caros amigos! Confesso que essa nova onda me pegou despreparada.
Que difícil missão a sua, Dra. Margareth, e de toda a equipe da Fiocruz! É sabido que a Fiocruz é uma das poucas instituições que resistem ao desmancho desse governo que está aí. E reconhecemos que a qualidade do seu trabalho, muitas vezes premiada e elogiada, é a de nos proteger e proteger todos aqueles que se dispõem a colaborar pelo bem-estar social.
Resta-me uma curiosidade: os governadores de vários estados do país - quem sabe assessorados por quais especialistas - já haviam estabelecido o fim do Covid, pois dispensaram a obrigatoriedade do uso de máscara ao aberto. É o que se via nas ruas, nos grandes espetáculos ao aberto nos campos de futebol, e nos cafés e restaurantes com lugares ao ar livre. Agora, que as pessoas se habituaram a não mais usarem máscara, como fazê-las voltar atrás?
Bateu-me
uma tristeza enorme, pelo povo que já não se sustenta com a onda do desemprego e a dolorosa fome que supera todos os
índices históricos do país, atingindo
a grande maioria dos empobrecidos.
É grande demais a aperreação desses tempos obscuros – as más notícias nos chegam feito cascatas sobre os desmandos nos ministérios, no congresso nacional e em grandes empresas estatais. O povo brasileiro é vilipendiado pelo vírus nefasto da violência e da ignorância que, indevidamente, tomaram conta da presidência do país, responsável por tanta dor!
Os povos indígenas
continuam sendo violentados, as mulheres desrespeitadas e estupradas, as leis são elaboradas por avestruzes da ganância e do poder, por pura maldade. Nossos patrícios negros são abertamente discriminados e nenhum
desses casos alcança ressonância nos meios de comunicação instituídos. E, infelizmente, as crianças e os jovens estão à mercê do mesmo desamparo, e veem cada vez mais apagadas as esperanças de um futuro melhor. É que os pobres,
os indígenas, os negros, as mulheres e as pessoas LGBT não são prioridade neste governo. E, menos ainda, os velhos e os doentes!
Inúmeras organizações populares, movimentos e ONGs têm procurado reparar o sofrimento de uma parte da população, dando-lhe assistência em diversos pontos do país. Este é o momento de arregaçar as mangas, e, sem dar lugar ao ódio no coração, responder às ameaças da mamona do poder lançando-nos à atividade política como cada um puder, pois urge esperançar mais uma vez! É este o abraço que o povo sofrido e faminto do Brasil está esperando de nós.
Haverá uma saída com a reconquista da plena democracia, após o resultado das eleições de outubro. E, com essa esperança, entramos na contagem regressiva para o alcance da nossa liberdade de exercer plenamente a cidadania. Não que acreditemos em mágica, pois o país está em derrocada, mas almejamos participar na escolha das prioridades do país, e voltaremos à luta por mudanças estruturais e justiça social. Queremos que seja dado ao povo plenas condições de exercer a cidadania, com corresponsabilidade.
Veremos o Brasil voltar à sua posição de autonomia e de solidariedade com o seu povo, e reconquistar o seu lugar de liderança na América Latina, não para dominar outros povos, mas para que, juntos, cooperem entre si e com os que mais precisarem.Então, voltaremos à alegria de nos abraçar, sentindo "o prazer do outro corpo contra o nosso, como uma prova de ser" e a leveza da luta para ser feliz!
Fonte: https://outraspalavras.net/poeticas/urgencia-epoetica-do-abraco-segundo-boaventura/Publicado em: 21/09/2021
Observação: A imagem de abertura desta postagem integra o artigo escrito por Boaventura de Souza Santos, cuja fonte é referida acima.
Dra. Margareth Dalcomo
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