Não bastassem as limitações a que todos nos impomos para nos livrar do vírus avassalador - que ainda não tem data para nos deixar - as políticas de desgoverno, no Brasil, continuam a apontar maiores dificuldades para os mais pobres, e o crescimento da riqueza para quem já tem em abundância. Se fizermos as contas, o insuficiente "Auxílio Brasil" que chegará a uma menor parcela dos necessitados, os obrigará a decidir entre comprar o gás ajustado ao preço do dólar ou comprar o feijão e a farinha de milho para o rango do dia a dia.
Em 2020, o Brasil enfrentou aumento de 14,09% no preço dos alimentos, cerca de 10 pontos percentuais a mais do que a inflação oficial do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA)" - afirma José Graciano, criador do Programa Fome Zero, em 2003, ex-diretor da FAO - Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura -, por dois mandatos, e diretor do Instituto Fome Zero, no Rio Grande do Sul, fundado em 2020.
Segue a entrevista.
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José Graciano - criador do Instituto Fome Zero - diz que governo é negligente no combate à fome: "Falta vontade política!"
Entrevista de Murilo Pajolla
Brasil de Fato | Lábrea (AM) | 11 de Agosto de 2021
Foto: Como diretor-geral da FAO, Graziano anunciou a saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014 - SIA KAMBOU / AFP©
Renda em queda, auxílio emergencial insuficiente, forte inflação de alimentos e a interrupção dos programas federais de combate à fome. Esses são os ingredientes da tempestade perfeita que tem tirado a comida do prato dos brasileiros, na avaliação de José Graciano.
“Eu me sinto indignado, essa
é a palavra. Nós fizemos um programa e acabamos com a fome no Brasil.
Introduzimos o direito à alimentação na Constituição para garantir que os
problemas alimentares seriam problemas de estado e não de governo. E em três
governos seguidos eles foram desmontados”, declarou em entrevista ao Brasil
de Fato.
:: Bolsonaro deixou país vulnerável à fome e
"preço será alto" na pandemia, diz Graziano ::
Na primeira avaliação global
da fome após o início da pandemia, a FAO estimou que o número de pessoas em insegurança alimentar severa no
país saltou de 3,9 milhões para 7,5 milhões em 2020.
"É preciso adotar
algumas medidas paliativas. Por exemplo, mudanças na tributação para criar
incentivo aos produtores de alimentos para o mercado interno",
sugere.
Ao se incluir também aqueles
em insegurança alimentar moderada, os dados da FAO revelam que um quarto da
população brasileira deixou de comer por falta de dinheiro.
“Além da fome, o Brasil
também está comendo mal, cada vez pior. Não são só os pobres. Há uma mudança de
hábitos alimentares importantes nas classes médias e até mesmo nas classes
altas”, aponta.
:: Insegurança alimentar atinge um quarto dos
brasileiros, aponta agência da ONU ::
Em 2020, o Brasil enfrentou aumento de 14,09% no preço dos
alimentos, cerca de 10 pontos percentuais a mais do
que a inflação oficial do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
“Eu diria que
a principal causa da inflação de alimentos é a indexação da nossa economia
ao dólar decorrente do nosso modelo agroexportador no mundo globalizado e
financeiro, onde o sistema financeiro predomina e dita todas as regras”,
avaliou Graziano.
Assim, os brasileiros têm
deixado de comer salada, arroz e feijão para se alimentar de macarrão
instantâneo, salsicha e presunto, produtos por vezes mais baratos e de forte apelo
comercial.
“Eu acho isso gravíssimo,
principalmente quando afeta a infância. O Brasil dá subsídios para uso de
agrotóxicos. Por que não dar para comer frutas, verduras e legumes?
Precisa ter vontade política, e é isso que não temos”, questiona o
ex-diretor da FAO.
Confira a entrevista
completa:
Brasil de Fato: Na última
entrevista ao Brasil de Fato, em maio de 2020, o senhor já indicava que a
negligência com as políticas alimentares iria trazer consequências graves.
Agora, pesquisas revelam que a velha chaga da fome foi definitivamente reaberta
no Brasil. No cenário atual, quais são os principais obstáculos que impedem a
chegada da comida no prato do brasileiro?
José Graziano: A
negligência do governo federal com as políticas alimentares tem consequências
muito graves. A situação atual dos mais pobres e desempregados é um dilema: “se
correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. Se ficar em casa, passa fome; se
sair de casa para procurar trabalho, pega covid. A incapacidade do governo
federal de ter um programa de auxílio emergencial à altura das necessidades do
segmento mais pobre da população, que ficou literalmente sem renda com a
pandemia, é o principal obstáculo. Sem auxílio emergencial e sem vacina,
estamos vivendo a tempestade perfeita. Não basta também só acelerar a
vacinação, porque as pessoas precisam sobreviver até ganharem a imunidade.
Então tem que combinar essa aceleração da vacinação com a reconstituição de um
auxílio emergencial à altura das necessidades.
Nós estamos hoje dependendo
das campanhas da sociedade civil organizada. A desarticulação do governo se
mede por esse número de campanhas de solidariedade, que, aliás, estão fazendo
coisas incríveis, como a Ação da Cidadania e a Cufa [Central Única das
Favelas]. Eu poderia citar inúmeras campanhas que estão entregando alimentos a
quem precisa. Mas nós não podemos viver eternamente de campanha. Afinal de
contas, a alimentação saudável é um direito dos brasileiros. Está no artigo 6º
da Constituição. Alguém em algum momento precisa acionar o Supremo Tribunal
Federal para que o governo garanta esse direito. Não é só ficar discutindo
aquilo que interessa à classe alta, como a liberdade de imprensa, a urna, se
imprime ou se não imprime [o voto]. Claro que essas coisas são fundamentais
para a democracia brasileira. Mas fundamental para a sobrevivência da população
mais pobre do Brasil é garantir o direito humano à alimentação adequada.
Enquanto cai a renda dos
brasileiros, sobem os preços dos alimentos. Especialistas apontam que o
fenômeno está relacionado ao aumento dos combustíveis, à desvalorização do
real, ao predomínio do agronegócio sobre a agricultura familiar e ao abandono
da regulação de preços por meio de estoques públicos. O que deveria ter sido
feito - e quais medidas ainda podem ser tomadas - para conter a alta no preço
da cesta básica?
A inflação de alimentos hoje
tem várias causas. Mas eu diria que a principal é a indexação da nossa economia
ao dólar decorrente do nosso modelo agroexportador no mundo globalizado e
financeiro, onde o sistema financeiro predomina e dita todas as regras. Nas
circunstâncias atuais, é impossível mudar o modelo agroexportador. Não porque
ele seja eterno, mas em função da hegemonia política do agronegócio no
Congresso Nacional. O agronegócio tem, junto com a bancada da bala e dos
evangélicos, uma ampla maioria e está exercendo essa hegemonia, inclusive
mudando os artigos constitucionais.
É preciso adotar algumas
medidas paliativas. Não precisa ficar de mãos abanando, como está atualmente.
Por exemplo, mudanças na tributação para criar incentivo aos produtores de
alimentos para o mercado interno, taxar exportação de produtos básicos em
caráter emergencial até a entrada das importações ou da próxima safra,
dependendo do produto. O feijão, por exemplo, tem safra curta, de 90 dias,
então isso pode ajudar. Não se pode usar essas medidas de caráter emergencial
de forma permanente. Porque aí vai afetar a produção da próxima safra,
desincentivando os produtores de alimentos básicos. Mas pode-se até mesmo
contingenciar as exportações, frear as exportações de regulagem, como fizeram
muitos países. Isso não é novidade. Não ajuda o comércio mundial, mas ajuda os
pobres do país.
Esses são todos mecanismos
de intervenção muito fortes e que só podem ser exercidos como medidas curativas
de curto prazo. E que precisam de medidas compensatórias para não criar
mercados negros e redução da produção na próxima safra. Porque os capitalistas
migram para os produtos não contingenciados, por exemplo, como ocorreu na
Argentina, nosso vizinho que tentou várias dessas medidas e nem todas deram
resultado. Enfim, dá para colocar algumas medidas em prática. Mas é preciso ter
vontade política.
Brasil de Fato - Na pandemia, estudos indicam
que o brasileiro tem deixado de comer salada, arroz e feijão para comer
macarrão instantâneo, salsicha e presunto. São produtos baratos e, muitas
vezes, de forte apelo comercial. Isso dá lugar a uma perversa ironia: a
convivência entre o sobrepeso adulto e a subalimentação em crianças. Como o
senhor enxerga esse panorama?
Graciano - Eu acho isso gravíssimo,
principalmente quando afeta a infância. Nós estamos comprometendo gerações
futuras de brasileiros. É um problema de saúde pública que não se discute. Não
vejo isso sendo discutido, exceto nas rodas de especialistas. Quero
parabenizá-lo por ter levantado essa questão. E tem muito que se pode fazer, a
começar por campanhas de esclarecimento. Pode-se também alterar alíquotas
tributárias para favorecer produtos mais saudáveis, dar subsídios. O Brasil dá
subsídios para uso de agrotóxicos. Por que não dar para comer frutas, verduras
e legumes? Enfim, precisa de novo ter vontade política, e é isso que não
temos.
A pandemia desnudou o que
nós já vínhamos prevendo. O aumento da fome e da insegurança alimentar em
geral. Além da fome, o Brasil também está comendo mal, cada vez pior. Não são
só os pobres. Há uma mudança de hábitos alimentares importantes nas classes
médias e até mesmo nas classes altas. É mais fácil comprar produtos
ultra processados. E eles são, digamos, mais saborosos, do ponto de vista de
alguns, porque possuem uma grande quantidade de açúcar, ou uma grande
quantidade de sal, ou uma grande quantidade de ácidos graxos não
saturados.
Ao deixar isso continuar,
nós estamos comprometendo nossos hábitos alimentares. E isso custa tempo para
reverter. É preciso uma campanha de alimentação saudável, é preciso uma
educação alimentar que seja capaz de reverter esse processo. E o prejuízo
imediato nós estamos vendo. Outro dia, fui pegar um ônibus perto da minha casa
e o ponto de ônibus estava em reforma para aumentar o tamanho dos bancos. As
pessoas já não conseguem mais sentar naqueles espaços reservados. Imagina isso
para a saúde. Nós tivemos o aumento da obesidade como causa mortis [causa da
morte] na pandemia, em função de comorbidades existentes entre os
pacientes.
Brasil de Fato - Com o cancelamento do Censo
2021, existe a possibilidade de um apagão de dados prejudicar a elaboração de
políticas públicas para garantir a alimentação da população?
Graciano - A não realização do Censo
prejudica o país em todos os seus aspectos. Veja bem, estamos falando de censos
que são feitos de 10 em 10 anos. Um a cada década. Se não tivermos esses dados
atualizados, fica muito difícil qualquer planejamento, qualquer alocação
eficiente de recursos. E o país fica ao sabor dos especuladores, dos livres
mercados. Porque ninguém sabe o que se produz, o quanto se produz, onde se
produz e quem consome. Isso não interessa nem mesmo aos capitalistas.
Brasil de Fato - Enquanto diretor-geral da
Organização da ONU para Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês), o senhor
anunciou a saída do Brasil do Mapa da Fome em 2014. Como se sente ao observar
os retrocessos na política alimentar desde então?
Eu me sinto indignado, essa
é a palavra. Nós fizemos um programa e acabamos com a fome no Brasil.
Introduzimos o direito à alimentação na Constituição para garantir que os
problemas alimentares seriam problemas de estado e não de governo. E em três
governos seguidos eles foram desmontados. Primeiro, começou com a redução dos
valores orçamentários para os programas da política alimentar. Segundo,
passou-se ao desmonte puro e simples de extinguir órgãos ou privatizar pedaços
fundamentais do sistema. Então esse abandono me deixa indignado.
E mais ainda porque nós
mostramos que acabar com fome não só é possível, como não é tão complicado,
como mandar uma nave para Marte. Nós não estamos falando de novas tecnologias,
de informática, de questões mirabolantes. Nós sabemos o que é preciso para acabar
com a fome: comida. Nós já fizemos isso uma vez, e esse país não tem problema
de produzir comida. Aqui não falta comida, não falta alimento. Falta dinheiro
para comprar os alimentos. É uma questão fundamentalmente econômica. E, para
resolver isso, é uma questão de vontade política, de o governo botar a fome e a
má alimentação como prioridade no topo da agenda política. E não ficar aí
cuidando da reeleição, enquanto a população morre ou de fome, ou do Covid ou
tem comprometido o desenvolvimento futuro das crianças e dos filhos.
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Especial Fome no Brasil
Ficha técnica:
Coordenação do projeto: Mariana
Pitasse e Rodrigo Chagas | Edição: Kátia Marko, Monyse Ravena,
Fredi Vasconcelos, Vanessa Gonzaga, Larissa Costa, Leandro Melito, Mariana
Pitasse e Rodrigo Chagas | Reportagem: Eduardo Miranda,
Jaqueline Deister, Wallace Oliveira, Ayrton Centeno, Vinícius Sobreira, Lucila
Bezerra, Giorgia Prates, Pedro Carrano, Ana Carolina Caldas, Marcelo Gomes,
Francisco Barbosa, Pedro Rafael Vilela, Pedro Stropasolas e Daniel Giovanaz
| Identidade visual: Fernando Bertolo | Artes: Michele
Gonçalves | Rádio: Camila Salmazio, Geisa Marques, Douglas
Matos, Daniel Lamir, Adilson Oliveira, André Paroche e Lua Gatinoni | Audiovisual: Marina
Rara, Isa Chedid, Leonardo Rodrigues e Jorge Mendes | Redes sociais: Cris
Rodrigues, Larissa Guold, Joanne Motta e Vitor Shimomura | Coordenação
de jornalismo: Rodrigo Durão | Direção CPMídias: Lucio
Centeno e Nina Fideles
Edição: Vinicius Segalla
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