Judith Butler
reivindica
a não violência ativa
Filósofa
vê o ato violento – irrealista e impraticável como caminho para a transformação
contemporânea – como um produto do ego e o individualismo. E reafirma: é
preciso driblar a “realidade” imposta pelo Estado e suas instituições
Por: L’Espresso (Itália) - Traduzido por: Moisés Sbardelotto/IHU
Judith
Butler é uma das filósofas mais conhecidas do panorama contemporâneo. Ela
inaugurou o debate sobre a identidade de gênero. Também se devem a ela
importantes contribuições éticas e políticas centradas particularmente nos
temas do poder e da violência. O seu livro mais recente, lançado na tália em setembro, pela editora Nottetempo: “La forza della
nonviolenza. Un vincolo etico-político.” [A força da não violência.
Um vínculo ético-político].
Butler
conversou com Donatella Di Cesare, filósofa e professora da Universidade
“La Sapienza” de Roma, em entrevista publicada por L’Espresso, em 27-09-2020.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nota deste blog
- Pensando em facilitar a leitura desta excelente entrevista, indicamos, com os respectivos nomes, os trechos da professora entrevistadora e da filósofa entrevistada. Os negritos são nossos.
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Di Cesare - Em seu novo livro, você escreve que “vivemos em um tempo de grandes atrocidades e de mortes insensatas”. Essa correta constatação vem acompanhada da denúncia da violência perpetrada pelo Estado, que exerce seu próprio poder discriminando as “pessoas não brancas” e, em geral, criminalizando a dissidência. Como responder? De uma forma muito corajosa, você desconstrói o preconceito da esquerda em relação à não violência. E mostra como a autodefesa é ilusória: porque se pressupõe que haja um eu íntegro transparente, idêntico a si mesmo, embora saibamos muito bem que o “eu” está sempre implicado nas vidas alheias – e as vidas alheias no eu. Portanto, a alavanca do seu discurso sobre a não violência é a crítica à ética egolátrica. Pode nos falar sobre isso?
Butler - Em muitos debates, a não violência é tratada como uma questão de moral individual ou como uma posição política irrealista e impraticável. Se considerarmos tanto a base ética quanto política da não violência, deveremos reconhecer que ela requer uma crítica do individualismo e uma rejeição da versão da realidade imposta pela “realpolitik”. Quando alguns de nós agem de modo violento, isso não vai apenas contra os objetos em si, os outros, as instituições e a natureza, mas também despedaça os laços sociais que nos sustentam.
É
claro que existem instituições pelas quais somos explorados e prejudicados,
além daquelas que realmente devem ser desmanteladas. A não violência
pode envolver todos os tipos de estratégias de “desmantelamento”, incluindo a
greve, o boicote ou o “deplatforming” (desmanche programático de uma
plataforma). Porém, até mesmo uma violência considerada instrumental traz
mais violência para o mundo, tornando-o um lugar ainda mais violento.
Além
disso, a violência que ataca as nossas relações sociais acaba
sendo um ataque contra nós mesmos, pois prejudica as condições de uma vida
vivível. Ser não violento não significa demonstrar a nossa virtude como
indivíduos, mas sim reconhecer que somos definidos pelas nossas relações
sociais com outros seres vivos. Ou seja, significa compreender que somos
seres relacionais e não egolátricos.
Di Cesare - O mito do Palácio de Inverno já ruiu há muito
tempo. A violência na verdade acaba servindo-se de quem pretende usá-la como um
simples instrumento. “Um ato violento contribui para a construção de um mundo
mais violento”, você escreve. A não violência portanto, não é uma
postura moral. Em vez disso, é uma política que deveria frear a destruição
sistêmica. Muitas vezes, você também fala de “resistência”. É um sinônimo?
Quem resiste não se resigna, aumenta a vigilância, abre caminhos transversais…
Porém, isso me parece redutivo em comparação com aquilo que você quer dizer.
Butler - Se pensarmos na não violência de uma forma nova, não mais apenas como uma reação física, então poderemos começar a ver que instituições inteiras são violentas e que devemos lutar para modificá-las ou aboli-las. O movimento pela abolição das prisões, por exemplo, denuncia a sua violência. As prisões operam como se fossem legitimadas para punir quem está dentro. Mas a violência que elas exercem não difere daquela que pretendem punir ou conter. Isso vale ainda mais para os centros de detenção nos quais os migrantes são detidos em condições indescritíveis.
A
política migratória deveria ser repensada e concebida
como uma rede de distribuição de alimentos. A partir daí, deveríamos nos
perguntar, então, o que significa reestruturar essas instituições e essas
economias de uma forma não violenta. A resistência continua sendo para mim um
termo importante, porque um aspecto da não violência é se recusar a reproduzir
a violência sofrida por um indivíduo ou por um grupo, naquela que se tornaria
uma escalada. Eu vejo a não violência no seu traço agressivo e criativo, mas
também a vejo como uma forma de resistência. No entanto, é verdade que,
para mim, “resistência” não é o único nome para essa política…
Di Cesare - Você faz referência a Gandhi. Parece-me que hoje há
uma grande novidade no espaço público, ou seja, aqueles que eu chamo de “novos
desobedientes”. Penso em Mimmo Lucano, em Carola Rackete. Mas não se trata da
desobediência civil tradicional que, no fundo, não rompe com o Estado de
direito. Os “novos desobedientes” se movem no limite do espaço público,
cruzam-no, sacodem a arquitetura política, desestabilizam a ordem Estado-cêntrica.
Não é por acaso que eles ajudam os migrantes… Por isso, são criminalizados.
Butler - Parecem-me muito interessantes esses
movimentos que já recorrem ao digital e tentam usar o espaço público para
desmantelar as políticas que produzem precariedade, racismo, violência contra
as mulheres e as pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais).
E é particularmente interessante ver
agora as suas ações em tempos de pandemia, por exemplo, as manifestações do Black
Lives Matter, que seguem os protocolos de segurança e são predominantemente
não violentas. As novas ideias de igualdade, liberdade e justiça não são
mais geradas na política eleitoral, mas nos movimentos de massa. Quando
a lei se torna injusta – como no caso da Europa, que criminaliza quem tenta
salvar as vidas dos migrantes, – então é justo se tornar criminoso. Ou talvez
devêssemos dizer “criminoso” entre aspas, pois é a própria lei que é criminosa.
Da mesma forma, a resistência, durante o fascismo, teve que lutar contra
um regime legal, mas violento e racista.
Di
Cesare – No seu novo livro você relança uma crítica, que já
havia delineado em parte, anteriormente, ao conceito de “vida nua”. Eu
concordo muito com a sua crítica. Se dissermos que os migrantes amontoados nos
campos de concentração ao longo das fronteiras da Europa são “vida nua”,
correremos o risco de os relegar a um abismo apolítico, a uma indigência
existencial da qual seria difícil sair. Em suma, essa tendência interpretativa “essencializa”
a vida nua que, isolada no seu mutismo, oprimida no seu destino trágico, não
poderia opor nenhuma resistência. Para você, os excluídos, mesmo assim,
continuam sempre em uma relação…
Butler -Acima de tudo, devemos nos interrogar sobre a perspectiva em que se considera a “vida nua”. Eu acredito que, do ponto de vista assumido por Agamben, o da soberania estatal, aqueles que são “vida nua” foram privados de todos os direitos legais, até mesmo da condição de sujeito. A lei que deveria protegê-los é retirada ou suspensa por decisão soberana. É inútil dizer que eu estou bem ciente dessas exclusões da proteção legal e, obviamente, eu as critico. Além disso, certamente não faz sentido depender de um poder soberano onde é possível se retirar e assim evitar que o ser humano continue sendo exposto à violência e à degradação. O problema é que toda a cena é desenhada como se houvesse a lei de um lado e a vida do outro. Contudo, aqueles que são privados do status jurídico por vários poderes soberanos interconectados podem, mesmo assim, fazer parte de redes de solidariedade, podem agir politicamente e encontrar formas para defender a sua própria mobilidade. Ser abandonado pelas formas soberanas do poder não significa que não existam outras formas de resposta. Assim, um grupo pode ser abandonado, e precisamente como tal pode se organizar. Não vejo contradição nisso.
Di
Cesare – “Nem uma Menos” significa perdas que
não deveríamos ter aceitado, mulheres que não são dignas de luto. Como você
deve saber, na Itália as mulheres – refiro-me realmente a todas elas – são
marginalizadas no espaço público. Se aparecem, pagam o preço do insulto
sexista. E não por acaso o feminicídio é um evento quase cotidiano, aliás
narrado em termos sensacionalistas ou na forma do epílogo inelutável. Depois de
décadas, não se consegue articular outra narrativa e não se consegue ter voz.
Muitas estão esgotadas.
Butler - Eu partilho esse mesmo desconforto. E mal consigo
ler as estatísticas dos feminicídios em diversos países, incluindo os Estados
Unidos. Temos um presidente que ficaria feliz em negar a existência desse
crime. A lição que aprendi com as feministas latino-americanas é que
matar uma mulher, uma trans, uma gay ou uma lésbica deve ser considerado um
crime em si. Para muitas pessoas, essas mortes são um mistério, ou o
resultado de paixões e encontros privados – mas não são entendidas como
formas sistemáticas de violência que devem ser impedidas em nível político,
institucional e especialmente na prática dos movimentos. Grande parte disso
depende de como a história do feminicídio é narrada. Certos jornais fornecem
versões sensacionalistas, e, por isso, o tema é ignorado.
A
narrativa da singular vida de uma mulher (e obviamente incluo
a das mulheres trans) deveria ser apresentada juntamente com uma análise que,
além de dar conta do feminicídio, levasse em consideração todos os álibis que o
endossam. O movimento “Nem uma Menos” conseguiu reunir
milhões de pessoas (em vários países) que não só se opõem à violência contra as
mulheres, mas que também pedem paridade salarial, assistência à saúde e formas
mais radicais de liberdade social e política. É um movimento baseado na
raiva e na alegria, e a isso ele deve o poder extraordinário que tem na
América Latina e na Europa.
Di Cesare – Na minha opinião, a pandemia é um evento de época. Até
ontem, podíamos nos considerar onipotentes entre os escombros, os primeiros e
os únicos também no primado da destruição. Esse primado nos foi tirado por um
poder superior ao nosso, e mais destrutivo. Além disso, o fato de ser um vírus,
uma ínfima porção da matéria organizada, torna o evento ainda mais traumático.
Até mesmo a menor criatura pode nos destronar, nos destituir, nos descalçar. Em
sua opinião, vai mudar o nosso modo de viver e de perceber a vulnerabilidade?
Butler - Por um lado, o vírus nos expõe, faz-nos sentir criaturas
precárias. De certa forma, não faz diferença entre ricos e pobres, porque de
qualquer maneira estamos sempre sujeitos ao seu efeito letal. Por outro lado,
porém, vemos que os países que adotaram poucas medidas são aqueles cujos
hospitais têm falta de pessoal e estão mal equipados. A diferença entre quem
vive e quem morre, então, depende da desigualdade social, do modo como os
serviços públicos foram demolidos pelo neoliberalismo, mas também pelos
sistemas de discriminação racial. Nos Estados Unidos, as comunidades não
brancas sofrem de doenças graves, em alguns casos mortais, precisamente porque
as instituições de saúde há muito tempo estão subfinanciadas – e essa também é
uma forma de discriminação. O vírus, portanto, é destrutivo e nos faz sentir
vulneráveis. Mas também nos leva a olhar para as formas brutais de desigualdade
social que tornaram tantas vidas supérfluas. Cada vida, no seu potencial de
dor, tem significado aqui e agora. Ainda não aprendemos a perceber a ideia
da igualdade radical de todas as vidas, do seu igual valor. Para fazer
isso, deveríamos primeiro nos perguntar quem são aqueles cujas vidas não são
consideradas importantes, quem são aqueles cujas vidas não foram consideradas
dignas de serem preservadas.
Para
muitas pessoas, especialmente para as excluídas, humilhadas, abandonadas por
governos nacionalistas e racistas, infelizmente a tarefa de sobreviver é cotidiana,
e elas a enfrentam sem a ajuda institucional que deveria ser garantido a todos.
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Fonte da entrevista: https://outraspalavras.net/outrasmidias/judith-butler-reivindica-a-nao-violencia-ativa/
Crédito das imagens:
1. Judith Butler - foto da matéria aqui reportada.
2. Capa do livro lançado na Itália - ainda não traduzido para o português.
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