Aos caros leitores minhas desculpas pela ausência nos últimos dias, por razões pessoais. Volto ao Espaço Poese trazendo informações sobre a PEC 32 - chamada de “Reforma Administrativa”. Trata da proposta de lei enviada pelo Governo Federal ao Congresso Nacional no dia 3/09/2020. A excelente análise aqui publicada sobre a tal "reforma" é assinada por pesquisadores da REMIR – Rede de Estudos e Monitoramento sobre a Reforma Trabalhista, uma rede "constituída por dezenas de sociólogos, economistas, cientistas políticos e filósofos de diversas instituições – referência na produção de estudos de excelência sobre Trabalho". Deixo com vocês a íntegra da matéria, com sete páginas. Os grifos em negrito são meus.
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Uma “reforma” para
devastar o serviço público
Com cobertura da mídia, Bolsonaro & Guedes agem
para impor novo ataque ao Social, no pós-pandemia. Corte de salários e
serviços. Desestruturação das carreiras. Contratações partidárias. Que está em
jogo na “Reforma” Administrativa.
OUTRASPALAVRAS - CRISE BRASILEIRA
Por: Graça Druck, Samara Reis e Emmanoel Leone, da Remir.
Nas
últimas semanas, intensificou-se a ofensiva da grande imprensa, em editoriais e
artigos de instituições empresariais e seus porta-vozes, alertando para a
“crise fiscal” e clamando pela “reforma administrativa” do governo. Com o uso
de informações distorcidas e manipuladas, sentencia-se que o Estado está
inchado e os servidores públicos ganham muito.
Manifestos
de empresários, economistas ultraliberais e parlamentares alinhados com o
capital financeiro saíram na defesa da Emenda Constitucional 95, que
congelou os gastos sociais por 20 anos. Isso porque no interior do próprio
governo, do Congresso e entre intelectuais, iniciou-se uma discussão sobre a possibilidade
de flexibilização do “teto dos gastos”, devido aos impactos da pandemia, da
crise econômica e da aproximação das eleições municipais. Todas essas manifestações
também foram motivadas pelo envio do Projeto de Lei orçamentária para 2021 ao
Congresso Nacional, pelo governo.
No
último dia 3 de setembro, o governo encaminhou ao Congresso Nacional a Proposta
de Emenda Constitucional – PEC 32, chamada de “Reforma Administrativa”, que
“altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização
administrativa”. É a “reforma trabalhista” dos servidores públicos.
Ao
anunciar a PEC 32, o Ministro da Economia ressaltou que os atuais
servidores não serão atingidos pela reforma. Entretanto, é importante
esclarecer que os servidores públicos civis ativos e aposentados já foram atingidos
por mudanças que reduziram salários, através da reforma da previdência que
aumentou as alíquotas de contribuição e, mais recentemente, já na crise da
pandemia, a Lei Complementar 723 (de ajuda aos estados e municípios), que
determinou o congelamento de salários, carreiras e concursos até dezembro de
2021 para o conjunto do funcionalismo público em todos os níveis federativos.
Tal determinação foi colocada como condição para a liberação e envio de
recursos aos estados e municípios para enfrentar a pandemia.
Além
dessas mudanças já em vigor, o governo já havia enviado ao Congresso Nacional,
o chamado “Plano Mais Brasil”, constituído por três propostas de emendas
constitucionais – PECs 186, 187, 188 – que tem por objetivo redefinir o Fundo
Público, radicalizando o espírito da Emenda Constitucional 95, ou seja: em nome
da “crise fiscal”, que se tornou permanente, reduz-se as despesas sociais,
diminuindo os gastos com servidores públicos, subordina-se os direitos sociais
assegurados pela Constituição à sustentabilidade da dívida pública; e se põe
fim a fundos públicos que têm assegurado políticas públicas fundamentais, a
exemplo do FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador. A PEC Emergencial (186), por
exemplo, além de vetar aumentos ou reajustes de salários, realização de
concursos públicos para novas vagas e qualquer reestruturação nas carreiras,
determina a redução de jornada de trabalho e de salários do funcionalismo
público em 25%, quando as despesas se aproximarem do teto dos gastos definidos
pela EC95. A PEC do Pacto Federativo (188) define a dívida pública como âncora
fiscal, isto é, todos os direitos sociais estarão subordinados ao “equilíbrio
fiscal intergeracional” e podem ser negados pelo critério fiscal que tem como
diretriz a sustentabilidade da dívida pública.
Essa
é a agenda neoliberal que vem sendo aplicada desde o golpe de 2016, constituída
por um conjunto de contrarreformas, que começaram pela Lei da Reforma
Trabalhista e da Lei da Terceirização, aprovadas em 2017, da Reforma da
Previdência de 2019, que tem como ponto comum e central a rejeição da função
protetiva do Estado, através da negação do direito do trabalho e do direito
previdenciário. São todas contrarreformas defendidas unitariamente por todos os
segmentos do empresariado brasileiro, base fundamental de sustentação do
governo Bolsonaro-Guedes. Todas elas, incluindo as reformas do Estado que estão
no Congresso Nacional, são justificadas em nome de um ajuste fiscal permanente,
que começou a ser aplicado desde o final dos anos 1990 e cujos resultados
provocaram um aumento brutal da desigualdade econômica e social. A Reforma
Trabalhista, por exemplo, defendida pelo empresariado como instrumento
necessário para a criação de empregos e retomada do crescimento econômico,
mostrou a falácia desse discurso, quando as altas taxas de desemprego foram
mantidas, a economia ficou estagnada e a precarização do trabalho se tornou a
regra.
A
“Reforma Administrativa” proposta pelo governo é parte dessa agenda, situa-se
nessa perspectiva, pois defende um Estado sem servidores públicos estatutários,
cuja consequência será a impossibilidade de manter os serviços públicos tão
necessários – agora mais do que nunca –, em função da crise sanitária e
econômica amplificada pela pandemia do coronavírus.
Na
exposição de motivos da “Reforma Administrativa” (Mensagem nº 504), assinada
por Paulo Guedes, está escrito: “Apesar de contar com uma força de trabalho
profissional e altamente qualificada, a percepção do cidadão, corroborada por
indicadores diversos, é a de que o Estado custa muito, mas entrega pouco”. É
necessário evitar um duplo colapso: na prestação de serviços e no orçamento
público”.
Entretanto,
essa mesma exposição de motivos afirma: importante registrar que a proposta de
Emenda à Constituição ora apresentada não acarreta impacto
orçamentário-financeiro. No médio e no longo prazo, inclusive, poderá resultar
na redução dos gastos obrigatórios, possibilitando incremento nas taxas de
investimento público no país.”
Ora,
se não terá impacto orçamentário-financeiro, cai por terra o argumento de todos
que defendem a “reforma administrativa”, justificada pelos gastos com os
servidores públicos, acusados de serem responsáveis pelo desequilíbrio das
contas públicas que poderiam entrar em colapso.
Isso
porque essa justificativa não se sustenta. De acordo com dados oficiais,
utilizados pelo Banco Mundial, no documento encomendado pelo governo, Gestão
de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro: o que dizem os
dados, afirma-se que em 2015, a carga tributária no Brasil foi de 35,6% do
PIB, enquanto nos países da OCDE ela atingiu, em média, 42,4%. A proporção de
empregados no setor público, em relação ao total da população ocupada no
Brasil, foi de 12% e, na OCDE, 21,3%, o que levou o próprio Banco Mundial a
reconhecer que o Brasil tem um “número modesto de funcionários públicos”. O
mesmo documento informa que, entre 1997 e 2018, as despesas com pessoal do
governo federal se mantiveram relativamente estáveis como proporção do PIB. O
que é corroborado pelo “Atlas do Estado Brasileiro” (IPEA, 2019), ao informar
que a despesa com pessoal como proporção do PIB era de 9,6% em 2006 e passou a
10,5% em 2017. Ou seja, não houve nenhum descontrole de gastos, tão alardeado pela
direita neoliberal e o atual governo.
Na
realidade, sob o ponto de vista financeiro, o problema orçamentário não está
nos gastos correntes, pois ao se examinar a composição do orçamento federal
executado em 2019, o governo gastou 38,3% (R$ 1,038 trilhão de reais) com o
pagamento de juros e amortizações da dívida pública, destinados às instituições
financeiras e bancos. Dívida essa que nunca foi auditada nos termos
constitucionais. Já as áreas sociais de educação, saúde, segurança pública,
assistência social e transferências para estados e municípios somaram 21,9% do
total gasto pelo governo, conforme dados da Auditoria Cidadã da Dívida.
Ao
se analisar as despesas com os servidores públicos ativos, para o ano de 2017,
na esfera federal, as despesas com pessoal foram de R$ 184,17 bilhões incluindo
os três poderes e o Ministério Público; no nível estadual, foram de R$ 298,8
bilhões e no nível municipal R$ 268 bilhões, totalizando R$ 751,5 bilhões (Atlas
do Estado Brasileiro, IPEA, 2019). Nesse mesmo ano, segundo dados do Portal
da Transparência, da receita executada de R$ 2,484 trilhões do orçamento
federal, 39,7% (R$ 985,75 bi) foram destinados ao pagamento de juros e
amortizações da dívida pública, o que representa 1,3 vezes mais do que se gasta
com os servidores públicos nos três níveis federativos.
O
texto da PEC 32 não apresenta nenhum diagnóstico do quadro dos servidores
públicos. Mas em declarações à imprensa e seminários para debater a “reforma
administrativa”, o ministro da economia, sem qualquer base real, afirmou que se
poderá ter uma economia de R$300 bilhões em 10 anos!
Ora,
mesmo que esse dado fosse levado a sério, isso representa um terço do que foi
transferido aos bancos somente no ano de 2019. Do lado das receitas, o governo
federal vai abrir mão de R$ 331,18 bilhões de arrecadação só em 2020 por conta
de renúncias tributárias. No ano de 2019, a renúncia fiscal foi de R$ 348,4
bilhões, correspondendo a 4,8% do Produto Interno Bruto (PIB).
Nessa
redução das receitas, não está computado, por exemplo, o estoque das dívidas
previdenciárias de grandes empresas, bancos e igrejas com o Estado que, até
hoje (2020), acumularam R$ 1,850 trilhão (bancos e instituições financeiras) e
R$ 728,6 bilhões (das igrejas), segundo dados da Procuradoria Geral da Fazenda
Nacional (PGFN). A somatória dessas dívidas (R$ 2,578 trilhões) representa 8,6
vezes mais do que o valor anunciado de 300 bilhões em 10 anos com a “reforma
administrativa”.
Mas, então, qual é o objetivo central da “Reforma
Administrativa” de Bolsonaro/Guedes?
O
eixo da “Reforma Administrativa” é o fim da estabilidade e do Regime Jurídico
Único (RJU) e a redução dos concursos públicos, estabelecidos pela Constituição
de 1988; o que está em pauta desde há 25 anos, quando da reforma do aparelho de
Estado do governo Fernando Henrique Cardoso, que também propunha acabar com o
RJU, a estabilidade dos servidores públicos e flexibilizar o ingresso à
carreira pública.
A PEC 32 propõe a criação do Regime Jurídico de
Pessoal com cinco tipos de vínculos e a redução de concursos públicos. São os
seguintes: a) vínculo de experiência; b) cargo
com vínculo por prazo indeterminado; c) cargo típico de Estado; d) vínculo por
prazo determinado e e) cargo de liderança e assessoramento.
O
concurso público será mantido para os vínculos de experiência, prazo
indeterminado e cargo típico de Estado; para os vínculos com prazo determinado
e liderança e assessoramento, serão processos de seleção simplificada ou
indicação. Poderia se acrescentar aos sem concurso público, a terceirização,
através dos “instrumentos de cooperação” propostos pela PEC 32, espelhados nas
Organizações Sociais (OSs), criadas a partir da reforma do aparelho de estado
de FHC/Bresser e, que viraram uma epidemia, especialmente na área de saúde,
onde as OSs assumiram a gestão dos hospitais públicos. Fonte de precarização
dos contratos e das condições de trabalho e, também, de denúncias de desvio de
recursos, inclusive agora na pandemia do coronavírus.
Neste
novo Regime Jurídico de Pessoal, a estabilidade só será mantida para os
“cargos típicos de Estado”, que ainda serão definidos por lei complementar.
E, mesmo para esses, após o concurso público, só obterão estabilidade, após
três anos com avaliação de desempenho e estágio probatório. Todos os demais
vínculos, que constituem a imensa maioria dos servidores públicos não terão
estabilidade.
Na
realidade, é o fim dos servidores públicos estatutários, pois segundo dados
do próprio governo, 26% dos atuais servidores se aposentarão até 2022, e a
previsão é que 40% se aposentem até 2030.
Por que os concursos e a estabilidade são
imprescindíveis para a garantia dos serviços públicos para a sociedade
brasileira?
Os
concursos públicos e a estabilidade são conquistas da Constituinte de 1988, que
representam um avanço para a construção de um Estado democrático e social. Os
concursos são a forma mais democrática (e moderna) de ingresso na carreira
pública, pois comprovam a qualificação/conhecimento/capacidade de forma
impessoal para o cargo, rompendo com as práticas do “coronelismo”, onde o
quadro de pessoal era composto por indicação de políticos e autoridades do
poder público Apadrinhamento, nepotismo, favores eleitorais, dentre outros, são
valores que não respeitam as necessidades da população de contar com um
profissional competente para prestar os serviços públicos. Condição que
reaparece por atos administrativos de governos, a exemplo do que acontece hoje
no RJ, com as milícias contratadas diretamente pela prefeitura, que tem por
objetivo impedir o acesso da imprensa e outros entes aos órgãos públicos para
mostrar como estão funcionando.
A
“Reforma Administrativa”, ao reduzir concursos, com a substituição por
“processos simplificados” de seleção e indicação para cargos de liderança e
assessoramento (os atuais cargos em comissão e funções de confiança), coloca
por terra o avanço constitucional, e conduz a uma regressão na
profissionalização que os concursos trazem para a gestão pública.
A
estabilidade é indissociável da concepção de servidores públicos, que não são
empregados do governo de plantão, mas são agentes do Estado que executam os
serviços públicos; produtores, através do seu trabalho, dos bens
público-coletivos, como saúde, educação, assistência social, segurança, dentre
outros. São servidores da sociedade e, para cumprirem essa função, precisam
garantir a continuidade do seu trabalho. Por isso, não podem ficar à mercê de
chefias ou de políticos que possam demiti-los, inclusive por perseguição
política.
A estabilidade é uma proteção para a sociedade, pois só com estabilidade é
possível contar com serviços públicos que atendam as demandas sociais e não as
demandas do mercado. É preciso compreender que há uma diferença fundamental
entre trabalhadores da iniciativa privada, que estão subordinados a um “mercado
de trabalho” sob a lógica da acumulação, do lucro dos empresários para os quais
trabalham e os trabalhadores do serviço público, que não estão subordinados a
essa lógica da concorrência. Por isso não podem ser comparados, nem igualados,
porque têm uma natureza diferente.
Na
atual fase do capitalismo, o Estado de formato neoliberal adota uma perspectiva
gerencial nos moldes da empresa privada, expressão da tendência do
neoliberalismo de mercantilizar tudo, transformando os bens públicos em bens
privados – isto é, vendidos com o objetivo de lucro, e buscando anular a
existência de um conjunto de trabalhadores, cujo trabalho não é produzir
mercadorias, mas bens coletivos socialmente necessários, cuja ética é
incompatível com o estado gerencial/empresarial, gerido como se fosse uma
empresa.
Nas
sociedades capitalistas os serviços públicos representam o “anti-valor”, pois
são bens coletivos produzidos por servidores que não estão diretamente
subordinados à lógica mercantil. Neste sentido, representam uma contra
tendência ao capital. É essa condição que pode explicar o ódio dos neoliberais
aos servidores públicos, qualificados ora como “parasitas”, ora como
“inimigos”, ora como “privilegiados”, ora como “ineficientes”, na defesa da sua
extinção. É isso o que representa a “Reforma Administrativa” do governo
Bolsonaro-Guedes, apoiada pelas lideranças do Congresso Nacional, por ministros
da suprema corte e setores importantes do poder judiciário, que não será
atingido pela reforma juntamente com os militares.
Por
fim, mas não menos importante, a PEC 32 concede ao presidente da República, o
poder de “extinção, transformação e fusão de entidades da administração pública
autárquica e fundacional” por meio de decreto, portanto sem submeter ao
Congresso Nacional. Isto significa que fundações como a Fiocruz – responsável
pelo combate às epidemias com produção de vacinas, desempenhando um papel
central hoje na orientação frente à pandemia do coronavírus – pode ser extinta
por um ato presidencial. O mesmo pode acontecer com as autarquias, como o Ibama e as universidades e institutos federais, que poderão ser fechados por decreto
do presidente. Em tempos de um governo que nega a ciência, que desautoriza a
fiscalização do meio ambiente e que acusa as universidades federais de serem
centros de balbúrdia, tal proposição, se aprovada, contribuirá para a morte da
democracia no país.
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Fonte
da matéria:
https://www.eco.unicamp.br/remir/index.php/remir-2
Reproduzido de: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/uma-reforma-para- devastar-serviço-publico/
Autores / Pesquisadores da Remir:
GRAÇA DUQUE é professora titular de Sociologia da UFBA, pesquisadora do CRH/UFBA e do CNPq, membro da REMIR (Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista)
SAMARA REIS é graduanda em Serviço Social/UFBA e Bolsista de Iniciação Científica/CNPq.
EMMANUEL LEONE é graduando em Serviço Social/UFBA e Bolsista de Iniciação Científica/CNPq.
Crédito da imagem – ilustração integrada à publicação do Portal Outras Palavras - publicado em: 21/09/2020.
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