Conservo um livreto de poesias, em cuja capa está desenhada a casa onde antes funcionava o restaurante Mafuá do Malungo que eu costumava frequentar nos anos noventa. É a casa onde nasceu o nosso grande poeta Manuel Bandeira. Com o tempo, a casa já não é mais restaurante e nem é utilizada para preservar a memória do poeta. Está aparentemente abandonada e, segundo matéria publicada no Jornal do Commercio, estaria à venda.
Vivemos tristes momentos para a cultura e a
educação, também na cidade do Recife. As esculturas erguidas em homenagem aos seus poetas, em
vários pontos da cidade, foram deixadas ao descuido. O Cais do Sertão, um ponto turístico que
resgata a memória de Luiz Gonzaga, desde o início mantém difícil acesso aos
turistas. O rio Capibaribe, memória afetiva de todo recifense, carrega suas águas poluídas em zigue-zagues pela cidade, até desembocar no mar.
Talvez os que deveriam cuidar dos pontos turísticos da cidade e da sua cultura, não tiveram tempo de ler Manuel Bandeira, e nem percebem a
importância de preservar a memória dos cidadãos que enobrecem sua terra, de tanto ocupados com
interesses de outra natureza. Mas o poeta eternizou, no poema Evocação do Recife, minuciosos detalhes de sua cidade natal.
“Versos de um 'transplantado’ - escreve Diogo Guedes por ocasião da comemoração dos 130 anos do nascimento do poeta, em abril deste ano. Era assim que Manuel Bandeira sintetizava a busca de um dos seus mais famosos poemas, – espécie de prova de sua origem que ele usaria sempre que o acusassem de ser um poeta carioca. Ali estava a garantia que Bandeira era um ‘transplantado’ longe do seu Recife sem história nem literatura, do seu Recife sem mais nada, do seu Recife morto, que tinha visto até os dez anos de idade“[i]
Continua: “A
icônica rememoração do Recife foi criada pelo poeta ‘transplantado’ há mais de
90 anos. O convite – um pedido por versos sobre suas memórias de infância no
Recife – veio de Gilberto Freyre, que parecia adivinhar no autor pernambucano a
distância física e o afeto necessários para a empreitada. (...) Com a provocação na
cabeça, o poeta pernambucano fez o texto do seu quarto de pensão na Rua do
Curvelo, no Rio de Janeiro, enfermo de lembranças.”
E complementa: “O
pesquisador e jornalista André
Cervinskis, autor do livro Manuel
Bandeira, Poeta até o Fim, lembra que os nomes citados no texto, como
Totônio Rodrigues e Aninha Viegas, são de pessoas que realmente existiram: Não
é só um poema sobre a infância, comenta, é um resgate de como era o Recife
naquela época, de como era o falar do povo, da atmosfera familiar e provinciana
da cidade.”
Recife
Não a Veneza
americana
Não a
Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife
dos Mascates
Nem mesmo o
Recife que aprendi a amar depois –
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem
mais nada
Recife da
minha infância.
A Rua da
União onde eu brincava de
chicote-queimado e partia as vidraças
da casa de Dona Aninha Viegas
chicote-queimado e partia as vidraças
da casa de Dona Aninha Viegas
Teotônio
Rodrigues era muito velho
e botava o pincenê na ponta do nariz
e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias
tomavam a calçada com cadeiras,
mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos
gritavam:
Coelho sai! Não sai!
A distância as vozes macias
das meninas politonavam:
Coelho sai! Não sai!
A distância as vozes macias
das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longes da noite
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo
Antônio!
Outra contrariava:
São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens
punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha
raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
Rua da
União...
Como eram
lindos os nomes das ruas da minha infância:
Rua do Sol
(Tenho medo
que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa
ficava a Rua da Saudade...
...onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora
...onde se ia pescar escondido.
Capiberibe
- Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Banheiros de palha
Um dia vi
uma moça nuinha no banho
Fiquei parado
o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento.
Cheia! As
cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões
da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangada
de bananeiras.
de bananeiras.
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei
no colo da menina e ela começou
a passar a mão nos meus cabelos.
Capiberibe
- Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor
de roletes de cana
O de amendoim que se chamava midumbim
e não era torrado era cozido.
e não era torrado era cozido.
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos de baratos
Dez ovos por uma pataca!
A vida não me
chegava pelos jornais
nem pelos livros
nem pelos livros
Vinha da boca
do povo na língua errada do povo
Língua certa
do povo
Porque ele é
que fala gostoso
o português do Brasil
o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos é macaquear
A sintaxe lusíada.
A vida com
uma porção de coisa
que eu não entendia bem
que eu não entendia bem
Terras que
não sabia onde ficam...
Recife...
Rua da União...
A casa do meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse
Tudo parecia impregnado de eternidade.
Recife
Meu avô morto
Recife morto, Recife bom
Recife brasileiro como a casa do meu avô.
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Ver livro de André Cervinskis:
Manuel Bandeira - Poeta até o fim.
[i] Os 130 anos de Manuel Bandeira e seu inventário do Recife - Um dos gurus do modernismo, o poeta pernambucano recriou através da memória da cidade onde passou a infância. Publicado em JC 19/04/2016.
[ii] Poema copiado do livreto – Mafuá do
Malungo – Poemas selecionados de Manuel Bandeira.
Crédito das imagens:
1. Casa natal de Manuel Bandeira - Rua Joaquim Nabuco,738 - Graças-Recife-PE
in: www.cultura.pe.imagens
2. Cidade do Recife - escultura: Manuel Bandeira-www.leocadio.wikspaces.com 3. Retrato Manuel Bandeira - por: Cândido Portinari - www.faciletrando.wordpress.com
4. Recife antigo - Rua Marquês de Olinda 1930 - fotos divulgação.
5. Meninos brincando - Abelardo da Hora - foto em exposição no Recife.
6. Meninas brincando - idem
7. Recife antigo - Rua da Aurora - fotos divulgação.
8. Capa de livro: Meus Poemas Preferido - Manuel Bandeira.
Nota: As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma dessas imagens e deseja que ela seja removida deste espaço, por favor entre em contato com: vrblog@hotmail.com
Crédito das imagens:
1. Casa natal de Manuel Bandeira - Rua Joaquim Nabuco,738 - Graças-Recife-PE
in: www.cultura.pe.imagens
2. Cidade do Recife - escultura: Manuel Bandeira-www.leocadio.wikspaces.com 3. Retrato Manuel Bandeira - por: Cândido Portinari - www.faciletrando.wordpress.com
4. Recife antigo - Rua Marquês de Olinda 1930 - fotos divulgação.
5. Meninos brincando - Abelardo da Hora - foto em exposição no Recife.
6. Meninas brincando - idem
7. Recife antigo - Rua da Aurora - fotos divulgação.
8. Capa de livro: Meus Poemas Preferido - Manuel Bandeira.
Nota: As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma dessas imagens e deseja que ela seja removida deste espaço, por favor entre em contato com: vrblog@hotmail.com
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