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O RECIFE DE MANUEL BANDEIRA

08 novembro, 2016


Conservo  um  livreto  de  poesias,  em cuja capa  está  desenhada  a casa  onde  antes funcionava o restaurante Mafuá do Malungo que   eu costumava  frequentar  nos  anos noventa.  É  a  casa onde nasceu  o nosso grande   poeta   Manuel   Bandeira. Com o tempo,  a  casa já não é mais restaurante e nem é utilizada para preservar  a  memória do poeta. Está  aparentemente abandonada e, segundo matéria publicada no Jornal do Commercio, estaria à venda. 

Vivemos tristes momentos para a cultura e a educação, também na cidade do Recife. As esculturas erguidas em homenagem aos seus poetas, em vários pontos da cidade, foram deixadas ao descuido. O Cais do Sertão, um ponto turístico que resgata a memória de Luiz Gonzaga, desde o início mantém difícil acesso aos turistas. O rio Capibaribe, memória afetiva de todo recifense, carrega suas águas poluídas em zigue-zagues pela cidade, até desembocar no mar.

Talvez os que deveriam cuidar dos pontos turísticos da cidade e da sua cultura, não tiveram tempo de ler Manuel Bandeira, e nem percebem a importância de preservar a memória dos cidadãos que enobrecem sua terra, de tanto ocupados com interesses de outra natureza. Mas o poeta eternizou, no poema Evocação do Recife, minuciosos detalhes de sua cidade natal. 


           “Versos  de   um 'transplantado’  -  escreve Diogo Guedes  por  ocasião da comemoração dos 130 anos do nascimento do poeta, em abril deste ano. Era assim que Manuel Bandeira sintetizava a busca de um dos seus mais famosos poemas, – espécie de prova de sua origem que ele usaria sempre  que  o acusassem  de  ser um poeta carioca. Ali estava a garantia que Bandeira era um ‘transplantado’ longe do seu Recife sem história nem literatura, do seu Recife  sem mais nada,  do seu Recife morto, que tinha visto até os dez anos de idade“[i]

Continua: “A icônica rememoração do Recife foi criada pelo poeta ‘transplantado’ há mais de 90 anos. O convite – um pedido por versos sobre suas memórias de infância no Recife – veio de Gilberto Freyre, que parecia adivinhar no autor pernambucano a distância física e o afeto necessários para a empreitada. (...) Com a provocação na cabeça, o poeta pernambucano fez o texto do seu quarto de pensão na Rua do Curvelo, no Rio de Janeiro, enfermo de lembranças.”

E complementa: “O pesquisador e jornalista André Cervinskis, autor do livro Manuel Bandeira, Poeta até o Fim, lembra que os nomes citados no texto, como Totônio Rodrigues e Aninha Viegas, são de pessoas que realmente existiram: Não é só um poema sobre a infância, comenta, é um resgate de como era o Recife naquela época, de como era o falar do povo, da atmosfera familiar e provinciana da cidade.”


EVOCAÇÃO DO RECIFE *

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois –
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância.
A Rua da União onde eu brincava de 
chicote-queimado e partia as vidraças 
da casa de Dona Aninha Viegas
Teotônio Rodrigues era muito velho 
e botava o pincenê na ponta do nariz     


Depois do jantar as famílias
tomavam a calçada com cadeiras, 
mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua 
Os meninos gritavam:
Coelho sai! Não sai!
A distância as vozes macias 
das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)

                                            
                 De repente
                                      nos longes da noite
                                                                            um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!

Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.

Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância:
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
                                                
 ...onde se ia fumar escondido 
 Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora
 ...onde se ia pescar escondido.
          
 Capiberibe
                  - Capibaribe
     
           Lá longe o sertãozinho de Caxangá
           Banheiros de palha
           Um dia vi uma moça nuinha no banho
           Fiquei parado o coração batendo      
                       Ela se riu
                       Foi o meu primeiro alumbramento.

   Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
   E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangada 
   de bananeiras.

  Novenas

  Cavalhadas

      Eu me deitei no colo da menina e ela começou
      a passar a mão nos meus  cabelos.
   
     Capiberibe
                       - Capibaribe
   
     Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
     com o xale vistoso de pano da Costa
     E o vendedor de roletes de cana
     O de amendoim que se chamava midumbim 
     e não era torrado era cozido.
     
      Me lembro de todos os pregões:
                                                       Ovos frescos de baratos
                                                                Dez ovos por uma pataca!
   
                
           
           Foi há muito tempo...
           A vida não me chegava pelos jornais 
           nem pelos livros
           Vinha da boca do povo na língua errada do povo
           Língua certa do povo
           Porque ele é que fala gostoso 
           o português do Brasil
           Ao passo que nós
           O que fazemos é macaquear
           A sintaxe lusíada.
           A vida com uma porção de coisa  
           que eu não entendia bem
           Terras que não sabia onde ficam...
          


         
           Recife...  
                            Rua da União... 
                                                                           
                                     A casa do meu avô... 
          
              Nunca pensei que ela acabasse
                  Tudo parecia impregnado de eternidade. 

             Recife   

                            Meu avô morto 
                            Recife morto, Recife bom 
                            Recife brasileiro como a casa do meu avô.
                             
                                                 
         -----------------------------------------------                                                





Ver livro de André Cervinskis

Manuel Bandeira - Poeta até o fim.


[i] Os 130 anos de Manuel Bandeira e seu inventário do Recife - Um dos gurus do modernismo, o poeta pernambucano recriou através da memória da cidade onde passou a infância. Publicado em JC 19/04/2016.

[ii]  Poema copiado do livreto – Mafuá do Malungo – Poemas selecionados de Manuel Bandeira. 




Crédito das imagens:

1. Casa natal de Manuel Bandeira - Rua Joaquim Nabuco,738 - Graças-Recife-PE
    in: www.cultura.pe.imagens
2. Cidade do Recife - escultura: Manuel Bandeira-www.leocadio.wikspaces.com                             3Retrato Manuel Bandeira - por: Cândido Portinari - www.faciletrando.wordpress.com                                    
4. Recife antigo - Rua Marquês de Olinda 1930 - fotos divulgação.
5. Meninos brincando - Abelardo da Hora - foto em exposição no Recife.
6. Meninas brincando - idem
7. Recife antigo - Rua da Aurora - fotos divulgação.
8. Capa de livro: Meus Poemas Preferido - Manuel Bandeira. 

Nota:  As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma dessas imagens e deseja que ela seja removida deste espaço, por favor entre em contato com: vrblog@hotmail.com

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