Sabe-se que atualmente grande parte do mundo está em crise, e o Brasil – também enredado numa dura crise política – está longe de resolver as graves questões econômicas e sociais que o assolam. Mesmo assim, um pequeno percentual dos que ainda não foram atingidos pela crise econômica passeiam pelos centros de compras, nesta época que anuncia as diversas festividades de final de ano.
O comércio explora as oportunidades do dia das crianças, do dia do professor, dos casamentos de gala... E está cada vez mais especializado em estimular o consumo e a expectativa do novo e do mais, desde a população infantil a nós todos, das classes média e alta de todo o mundo.
O clima da necessidade de presentear é mantido nos anúncios televisivos, nos cartazes chamativos das lojas de rua e dos shoppings centers que já adornam os seus espaços luminosos, para abrigar... Adivinha quem??? A figura do velho "Papai Noel"! Porque não há qualquer conveniência de lembrar, – nos suntuosos ambientes comerciais – a identidade de uma certa criança nascida há séculos atrás. A mensagem do menino de Nazaré não conduziria com os festejos e a abundância da festa que hoje chamamos "Natal"...
É impressionante o resultado de uma pesquisa que fiz, em busca de imagens de decoração natalina dos shoppings centers brasileiros. Acreditem: não encontrei uma só delas que me falasse de um recém-nascido acolhido pobremente entre as palhas de um curral. Só encontrei pinheirinhos carregados de sinos, estrelas brilhantes, presentes e laços coloridos, com ao lado um Papai Noel branco e gorducho, uma longa barba de algodão e um roupão vermelho, quase sempre sentado em lindas cadeiras, abraçando criancinhas inocentes que lhe confidenciam seus desejos...
O velhinho das terras do norte do planeta tornou-se o ícone natalino, o sígno do querer sempre mais e mais... também em terras tropicais. Na decoração não há cavalos nem bois, gatos nem cachorros, só esquilos e girafas, até mesmo o Mikey! Também há casinhas enfeitadas com luzes, cores e jardins... O habitante é o bonzinho Papai Noel, com um saco de presentes!
Recentemente lí um artigo sobre o significado do querer e do desejar, escrito pela professora Rita Almeida – psicanalista, blogueira e doutoranda em Educação (UFJF) – publicado no site Carta Maior, no início deste mês. O seu texto ajuda a refletir sobre os hábitos consumistas que nos constrangem, especialmente às vésperas do significativo evento histórico que envolve uma pobre família, de quem se conta a conhecida lenda de uns reis magos em busca de um menino anunciado pelos anjos, e uma grande estrela alumiando o seu abrigo nas palhas de um curral, porque na cidade "não havia lugar para eles". Segue o texto.
"Há quem pense que querer e desejar sejam a mesma coisa. Não são! Ao menos, não para a psicanálise. O querer é uma enorme prateleira, o desejo uma tesoura. A operação matemática do querer é a soma e a do desejo a divisão, nunca exata, sempre com resto. O querer é cumulativo, já o desejo envolve escolha e perda.
Jacques Lacan, ao construir sua teoria dos discursos faz menção
ao que ele chama de Discurso Capitalista, que seria uma mutação pervertida do Discurso do Mestre. Enquanto o Discurso do Mestre se baseia na relação do senhor e do escravo –
resgatado da dialética hegeliana – o Discurso Capitalista se dá pelo eclipse da relação entre os sujeitos.
Em tal discurso, um sujeito não se relaciona com outro, se relaciona apenas com
os objetos–mercadoria. Tudo vira objeto a ser consumido, até mesmo os próprios
sujeitos.
O agente do Discurso Capitalista é o consumidor, seu interesse é pelo consumo. Como diria Viviane Forrester, na sociedade atual consumir é nosso último recurso, nossa última utilidade. Somos clientes necessários à sustentação do modelo capitalista.
Mas, consumidor é aquele sujeito que está sempre aquém, sempre em déficit, pois sempre haverá uma bugiganga, uma tecnologia, um bem, um saber e um modelo mais novo, que ele ainda não conseguiu adquirir, portanto, o verbo que ele conjuga é o querer. Entretanto, o engano do consumidor não é se considerar incompleto, já que a incompletude é uma realidade irremediável para todos nós, mas sim acreditar que irá alcançar a completude por meio da aquisição de coisas; coisas que ainda não tem.
Neste sentido, o querer é uma armadilha, pois por mais que o sujeito adquira coisas estará sempre se sentindo em falta, e ao invés de aceitá-la, seu movimento é continuar a buscar, no consumo, coisas que criem uma falsa sensação de completude. O querer é sempre mais, sempre sem limites. O querer funciona como negação da castração. No excesso de querer o sujeito se perde, pois perde a capacidade de fazer escolhas, e com isso, seu potencial singular.
Mas, e o desejo?
A psicanálise se sustenta sobre a ética do desejo. Ao contrário do querer – em que o sujeito quer tudo, até que sua prateleira fique completa – o desejo implica em escolhas, portanto, em perdas. O desejo é uma tesoura, sendo assim desejar implica em fazer opções. Ou isto ou aquilo, diria Cecília Meireles.
'Ou se tem chuva e não se tem sol,
Ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel
Ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão,
Quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa
Estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
Ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
E vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo,
Se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda
Qual é melhor: se é isto ou aquilo'.[i]
O desejo seria, portanto, um antídoto para intervir numa sociedade baseada no querer consumista. Desejar implica no sujeito admitir sua própria divisão, aceitar sua incapacidade de ter tudo. Desejar não é produzir um acúmulo de coisas, mas sim, definir o que é mais fundamental e importante. Desejar é cortar o excesso, é aceitar a perda de gozo, é escapar da mera sobreposição de bugigangas a fim de produzir singularidade e estilo.
Num mundo onde o imperativo categórico é que abarrotemos nossas prateleiras e que queiramos tudo, todo o tempo, utilizar a tesoura do desejo seria a verdadeira revolução."
[i] Cecília Meireles - Ou isto ou aquilo. Global Editora. São Paulo, 2012, p.63
Créditos de imagens:
1. Christimas Shopping - www.canstockphoto.com.br
2. Mensagem da chegada de Papai Noel - divulgação
3. Papai Noel - Natal Shopping Plaza - foto de Fernanda Acioly
4. Decoração Shopping - www.canstockphoto.com.br
5. Natal do quebra-nozes - foto de Fernando Machado
6. Capa do livro: "Ou isto ou aquilo" - divulgação da editora.
7. O querer e o desejo - www.canstockphoto.com.br
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