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LITERATURA — LYGIA FAGUNDES TELLES

06 agosto, 2015

Para apresentar a grande escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, valho-me de um seu depoimento – p.135 do seu livro: Ombvemção e Memória - Ed. Companhia das Letras. O prazer inteiro da sua escrita – e das suas deliciosas “invenções” deixo-o para quando o livro estiver em suas mãos... Vamos ao depoimento.

"Comecei a escrever quando aprendi a escrever – tinha sete, oito anos? E se falo naquele tempo descabelado, selvagem, é porque acho importante o chão da infância. Nesse chão pisei descalça, ouvindo histórias das minhas pajens, as mocinhas perdidas que eram expulsas de casa e que minha mãe recolhia para os pequenos serviços. (...). 

As histórias eram sempre de terror (o medo era necessário) com caveiras de voz fanhosa e mulas sem cabeça (...). Eu só escutava, mas na noite em que também comecei a inventar, descobri que, enquanto ia falando, o medo ia diminuindo – não era eu que tremia, mas os outros, aqueles ouvintes amontoados na nossa escada de pedra, isso foi em Descalvado? (...) Algumas histórias tinham de ser repetidas, as crianças gostam das repetições, as crianças e os velhos. Mas no auge da emoção eu acabava por fundir enredos, trocar os nomes das personagens, mudar o fim da história. Então, algum ouvinte mais atento protestava, mas essa não acabava desse jeito!  

A solução foi começar a escrever as histórias assim que aprendi a escrever – mas onde conseguir papel? As últimas páginas do meu caderno de escola estavam sempre em branco e foi nesses cadernos que comecei com aquela letra bem redonda a embrulhar (ou desembrulhar) os enredos, ô Deus! E agora estou me lembrando, ah, que difícil contar a história do lenhador da floresta com a mulher e a criança, essa história fazia o maior sucesso e por isso resolvi escrevê-la, sim, contar até que era fácil, mas escrever?... (...)
   
Sou escritora e sou mulher – ofício e condição duplamente difíceis de contornar, principalmente quando me lembro como o País (a mentalidade brasileira) interferiu negativamente no meu processo de crescimento como profissional. Eu era reprimida, tímida em meio à imensa carga de convenções cristalizadas na época. Penso que minha libertação foi facilitada durante as extraordinárias alterações pelas quais passou o Brasil desde a minha adolescência até os dias atuais. A arrancada principal coincidiu com a estimulante ebulição notadamente a partir do suicídio do ditador Getúlio Vargas.


Nasci em São Paulo, estudei em São Paulo. Eu estava na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (1944?), onde participava de passeatas, era uma jovenzinha de boina e lenço preto amarrado na boca, os estudantes podiam se agrupar, mas não falar, era a passeata do silêncio. E se não gosto do ruído de patas de cavalo nas pedras da rua é porque me lembro daquela tarde, quase noite: fugíamos da cavalaria que apareceu de repente, corríamos desatinados buscando um abrigo, o comércio fechando as portas...



Caiu, então, ao meu lado um colega borbulhando em sangue, tentei levantá-lo e ele morrendo ali nas pedras, não, Castro Alves, meu poeta, esse não era o “borbulhar do gênio”, mas o borbulhar do sangue. Se me libertei mais do que o próprio País é simplesmente porque a libertação individual é mais fácil. Estimulada pelo maior pensador do nosso tempo, Norberto Bobbio, considero a libertação da mulher a mais importante revolução do século.

(...) Em 1982, no meu livro A Disciplina do Amor, escrevi num fragmento que há três espécies em processo de extinção: a árvore, o índio e o escritor. Mas resistimos. Quando andei pela África, um dos homens da Unesco me disse: “Cada vez que morre um velho africano é assim como uma biblioteca que se incendeia”. Será que antes de chegarmos à solução do nosso problema indígena teremos tempo de captar um pouco da sua arte e da sua vida, nas quais o sagrado e a beleza se confundem para alimentar nossa cultura e nosso remorso?


 


 E resistimos, testemunhas e participantes deste tempo e desta sociedade com o que tem de bom. E de ruim. E tem ruim à beça, assunto e inspiração para os escritores é o que não falta. Falei agora numa palavra que saiu de moda e, no entanto, é insubstituível na terminologia da criação, inspiração. Algumas das minhas ficções se inspiraram na simples imagem de algo que vi e retive na memória, um objeto, uma casa, uma pessoa... Outros contos (ou romances) nasceram de uma simples frase que ouvi ou eu mesma disse e lá ficou registrada na minha natureza mais profunda. Um dia, sem razão aparente, essa memória (memória ou tenha isso o nome que tiver) me devolve a frase. Há ainda as ficções que nasceram do nevoeiro (ou da claridade) de um sonho, fluxo de símbolos nas cavernas do inconsciente que de repente escancara as portas, saiam todos! A evasão. Há que selecionar. Interpretar, e eis aí um trabalho que exige lucidez. Paciência. E paixão."


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Créditos imagens:


  • Capas de alguns livros de Lygia F. Teles - divulgação. 
  • Largo de São Francisco - Faculdade de Direito - São Paulo
  • Foto de Castro Alves quando jovem - 

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