CLARISSA PINKOLA ESTÉS
Psicanalista junguiana e escritora inspirada, enraizada na pisque feminina e em histórias da mulher de diferentes latitudes – ela própria, uma mulher combativa, nascida de família mexicana, imigrantes e contadores de histórias do velho continente. No seu primeiro livro "Mulheres que correm com os lobos", Clarissa analisa histórias antigas, especialmente aquelas que se contavam às crianças e que têm a ver com as mulheres. Nessas histórias, a autora identifica o modelo (arquétipo) da "Mulher Selvagem" – a essência da alma feminina – na sua profundeza. No livro, Clarissa nos apresenta a significância inteira e profunda desse arquétipo, convocando-nos a dar os primeiros passos na conquista da nossa própria afirmação.
Especialmente para os que ainda não a conhecem, reproduzimos, aqui, alguns trechos do primeiro capítulo desse seu livro instigante e encantador, sobre 'A Ressurreição da Mulher Selvagem': (1)
Na história de La Loba, a velha no deserto é uma recolhedora de ossos. Na simbologia arquetípica, os ossos representam a força indestrutível. (...) Nos mitos e nas histórias, eles representam a alma/espírito indestrutível. Sabemos que a alma/espírito pode ser ferida, até mesmo mutilada, mas é quase impossível eliminá-la.
Pode-se amassar a alma e dobrá-la. Pode-se feri-la e marcá-la com cicatrizes. Pode-se deixar nela os sinais da doença e as queimaduras do medo. Mas ela não morre, pois está protegida por La Loba no mundo subterrâneo. Ela é tanto quem descobre os ossos quanto quem os incuba. (...) Os ossos de lobo nessa história representam o aspecto indestrutível do Self selvagem – a natureza instintiva –, a criatura dedicada à liberdade e ao que permanece incólume, que jamais aceitará os rigores e as exigências de uma civilização morta ou excessivamente civilizadora.
As metáforas dessa história exemplificam o processo completo para devolver a mulher aos seus plenos sentidos selvagens institivos. Dentro de nós vive a velha que recolhe os ossos. Dentro de nós estão ossos espirituais da Mulher Selvagem. Dentro de nós está o potencial de readquirir nossa carne como a criatura que um dia fomos. Dentro de nós estão os ossos para que nos modifiquemos, bem como ao nosso mundo. Dentro de nós estão nosso fôlego, nossas verdades e nossos anseios – juntos, eles são a canção, o hino da criação que sempre desejamos entoar.
Isso não quer dizer que devamos sair por aí com o cabelo desgrenhado ou com garras enegrecidas no lugar das unhas. É, continuamos humanas, mas dentro da mulher humana está o Self animal instintivo. Não se trata de nenhuma personagem romântica de desenho animado. Ela tem dentes de verdade, um rosnado real, uma generosidade imensa, uma capacidade inigualável para ouvir, garras afiadas, seios generosos e peludos.
(...) Esse Self/mulher-lobo deve ter liberdade para se movimentar, para ter raiva e para criar. Esse Self é duradouro, possui boa capacidade de recuperação e grande intuição. É um Self formado nas questões espirituais do nascimento e da morte. Hoje La Loba dentro de você está recolhendo ossos. O que ela está recriando? Ela é o Self da alma, a construtora do lar da alma. "Ella lo hace a mano", ela faz e refaz a alma à mão.
O que ela está fazendo para você?
(...) La Loba é a guardiã da alma. Sem ela perdemos nossa forma. Sem uma linha direta com ela, diz-se que os seres humanos ficam desalmados ou que sua alma está perdida. Ela dá forma à casa da alma e constrói mais com suas própias mãos. (...) Algumas pessoas não apreciarão sua atitude de dar uma cheirada em tudo para ver o que é. E, pelo amor de Deus, nada de se deitar de costas no chão com as patas para cima. Menina feia. Lobo feio. Cachorro feio. Certo? Errado. Não ligue. Divirta-se.
As pessoas fazem meditação para conseguir um equilíbrio psíquico. É por isso que se faz psicoterapia e análise. É para isso que os seres humanos analisam seus sonhos e criam arte. É por isso que muitos consultam o tarô, o I Ching, dançam, batucam, fazem teatro, arrancam poemas das entranhas e criam a oração iluminada. É por isso que fazemos tudo o que fazemos. Trata-se da tarefa de reunir todos os ossos. Em seguida, devemos nos sentar diante do fogo para decidir que canção usaremos para cantar sobre os ossos, que hino da criação. E as verdades que dissermos formarão a canção.
Existem algumas boas perguntas a fazer enquanto decidimos qual será a canção, que é o nosso verdadeiro canto.
O que aconteceu com a voz da minha alma?
Quais são os ossos enterrados na minha vida? Em que condições está o meu relacinamento com o Self instintivo? Quando foi a última vez que corri livremente? Como posso fazer com que a vida volte a ter vida? Para onde foi La Loba?
Na história, a velha canta sobre os ossos e, enquanto ela canta, a carne começa a recobrí-los. Nós também 'nos tornamos' à medida que derramamos a alma sobre os ossos que encontramos. Enquanto vertemos nossos anseios e nossas mágoas sobre os ossos do que costumávamos ser quando jovens, do que tínhamos conhecimento há séculos, e sobre a aceleração que pressentimos no futuro, ficamos de quatro, inabaláveis. À medida que derramamos a alma, somos revitalizadas. Não somos mais uma solução fraca, algo frágil que se dissolve. Não. Estamos no estágio da transformação em que estamos 'nos tornando'.
Como La Loba, nós quase sempre começamos num deserto. Temos uma sensação de perda de direitos, de alienação, de não estarmos vinculadas nem mesmo a uma moita de cactos. Os antigos chamavam o deserto de lugar da revelação divina. Para as mulheres, porém, ele oferece muito mais do que isso. O deserto é um lugar em que a vida se apresenta muito condensada. As raízes das plantas se agarram à última gota d´água, e as flores armazenam umidade abrindo apenas de manhã cedo e ao final da tarde. A vida no deserto é pequena, mas brilhante, e quase tudo que acontece tem lugar no subsolo.
Essa descrição é semelhante à vida de muitas mulheres. O deserto não é exuberante como a floresta ou a selva. Ele é muito intenso e misterioso nas suas formas de vida. Muitas de nós vivem vidas desérticas: ínfimas na superfície e imensas por baixo. La Loba nos revela as belas consequências que podem advir desse tipo de distribuição psíquica.
A psique de uma mulher pode ter chegado ao deserto em virtude da ressonância de crueldades passadas ou por não lhe ter sido permitida uma vida mais ampla a céu aberto. Por isso, muitas vezes uma mulher tem a sensação de estar vivendo num local vazio, onde talvez haja apenas um cacto com uma flor de um vermelho vivo, e em todas as direções 500 quilômetros de nada. No entanto, para aquela que se dispuser a andar 501 quilômetros, existe mais alguma coisa. Uma casa pequena e admirável. Uma velha. Ela está à sua espera.
Algumas mulheres não querem estar no deserto psíquico. Elas detestam a fragilidade, a escassez. Não param de tentar fazer com que um calhambeque enferrujado funcione para que possam descer aos solavancos pela estrada, na direção a uma refulgente cidade que fantasiam na pisque. Decepcionam-se, porém, pois a exuberância e a vida selvagem não se encontram ali. Elas estão no mundo do espírito, no mundo entre os mundos, Río Abajo Río, no rio por baixo do rio.
Não seja tola. Volte para debaixo daquela única flor vermelha e siga em frente, percorrendo aquele último e árduo quilômetro. Aproxime-se e bata à porta castigada pelas intempéries. Suba até a caverna. Atravesse engatinhando a janela de um sonho. Peneire o deserto e veja o que encontra. Essa é a única tarefa que temos a cumprir.
Está querendo ajuda psicanalítica? Vá recolher ossos.
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(1) Estés, Clarissa Pinkola
In: Mulheres que correm com os lobos - Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1995 - Tradução de Waldéa Barcellos. p. 52 a 56.
Crédito Imagens
5.Mulheres retirantes - iconografia de Abelardo da Hora, foto em exposição no Recife-PE- Arquivo blog Espaço Poese - www.vaniserezende.com.br
6.Casa com janela iluminada - www.canstockphoto.com.br
7.Flores no deserto - www.canstockphoto.com.br
8.Fotografia de Clarissa Pinkola Estés - www.riverbankofruth.com
Especialmente para os que ainda não a conhecem, reproduzimos, aqui, alguns trechos do primeiro capítulo desse seu livro instigante e encantador, sobre 'A Ressurreição da Mulher Selvagem': (1)
Na história de La Loba, a velha no deserto é uma recolhedora de ossos. Na simbologia arquetípica, os ossos representam a força indestrutível. (...) Nos mitos e nas histórias, eles representam a alma/espírito indestrutível. Sabemos que a alma/espírito pode ser ferida, até mesmo mutilada, mas é quase impossível eliminá-la.
Pode-se amassar a alma e dobrá-la. Pode-se feri-la e marcá-la com cicatrizes. Pode-se deixar nela os sinais da doença e as queimaduras do medo. Mas ela não morre, pois está protegida por La Loba no mundo subterrâneo. Ela é tanto quem descobre os ossos quanto quem os incuba. (...) Os ossos de lobo nessa história representam o aspecto indestrutível do Self selvagem – a natureza instintiva –, a criatura dedicada à liberdade e ao que permanece incólume, que jamais aceitará os rigores e as exigências de uma civilização morta ou excessivamente civilizadora.
As metáforas dessa história exemplificam o processo completo para devolver a mulher aos seus plenos sentidos selvagens institivos. Dentro de nós vive a velha que recolhe os ossos. Dentro de nós estão ossos espirituais da Mulher Selvagem. Dentro de nós está o potencial de readquirir nossa carne como a criatura que um dia fomos. Dentro de nós estão os ossos para que nos modifiquemos, bem como ao nosso mundo. Dentro de nós estão nosso fôlego, nossas verdades e nossos anseios – juntos, eles são a canção, o hino da criação que sempre desejamos entoar.
Isso não quer dizer que devamos sair por aí com o cabelo desgrenhado ou com garras enegrecidas no lugar das unhas. É, continuamos humanas, mas dentro da mulher humana está o Self animal instintivo. Não se trata de nenhuma personagem romântica de desenho animado. Ela tem dentes de verdade, um rosnado real, uma generosidade imensa, uma capacidade inigualável para ouvir, garras afiadas, seios generosos e peludos.
(...) Esse Self/mulher-lobo deve ter liberdade para se movimentar, para ter raiva e para criar. Esse Self é duradouro, possui boa capacidade de recuperação e grande intuição. É um Self formado nas questões espirituais do nascimento e da morte. Hoje La Loba dentro de você está recolhendo ossos. O que ela está recriando? Ela é o Self da alma, a construtora do lar da alma. "Ella lo hace a mano", ela faz e refaz a alma à mão.
O que ela está fazendo para você?
(...) La Loba é a guardiã da alma. Sem ela perdemos nossa forma. Sem uma linha direta com ela, diz-se que os seres humanos ficam desalmados ou que sua alma está perdida. Ela dá forma à casa da alma e constrói mais com suas própias mãos. (...) Algumas pessoas não apreciarão sua atitude de dar uma cheirada em tudo para ver o que é. E, pelo amor de Deus, nada de se deitar de costas no chão com as patas para cima. Menina feia. Lobo feio. Cachorro feio. Certo? Errado. Não ligue. Divirta-se.
As pessoas fazem meditação para conseguir um equilíbrio psíquico. É por isso que se faz psicoterapia e análise. É para isso que os seres humanos analisam seus sonhos e criam arte. É por isso que muitos consultam o tarô, o I Ching, dançam, batucam, fazem teatro, arrancam poemas das entranhas e criam a oração iluminada. É por isso que fazemos tudo o que fazemos. Trata-se da tarefa de reunir todos os ossos. Em seguida, devemos nos sentar diante do fogo para decidir que canção usaremos para cantar sobre os ossos, que hino da criação. E as verdades que dissermos formarão a canção.
O que aconteceu com a voz da minha alma?
Quais são os ossos enterrados na minha vida? Em que condições está o meu relacinamento com o Self instintivo? Quando foi a última vez que corri livremente? Como posso fazer com que a vida volte a ter vida? Para onde foi La Loba?
Na história, a velha canta sobre os ossos e, enquanto ela canta, a carne começa a recobrí-los. Nós também 'nos tornamos' à medida que derramamos a alma sobre os ossos que encontramos. Enquanto vertemos nossos anseios e nossas mágoas sobre os ossos do que costumávamos ser quando jovens, do que tínhamos conhecimento há séculos, e sobre a aceleração que pressentimos no futuro, ficamos de quatro, inabaláveis. À medida que derramamos a alma, somos revitalizadas. Não somos mais uma solução fraca, algo frágil que se dissolve. Não. Estamos no estágio da transformação em que estamos 'nos tornando'.
Como La Loba, nós quase sempre começamos num deserto. Temos uma sensação de perda de direitos, de alienação, de não estarmos vinculadas nem mesmo a uma moita de cactos. Os antigos chamavam o deserto de lugar da revelação divina. Para as mulheres, porém, ele oferece muito mais do que isso. O deserto é um lugar em que a vida se apresenta muito condensada. As raízes das plantas se agarram à última gota d´água, e as flores armazenam umidade abrindo apenas de manhã cedo e ao final da tarde. A vida no deserto é pequena, mas brilhante, e quase tudo que acontece tem lugar no subsolo.
Essa descrição é semelhante à vida de muitas mulheres. O deserto não é exuberante como a floresta ou a selva. Ele é muito intenso e misterioso nas suas formas de vida. Muitas de nós vivem vidas desérticas: ínfimas na superfície e imensas por baixo. La Loba nos revela as belas consequências que podem advir desse tipo de distribuição psíquica.
A psique de uma mulher pode ter chegado ao deserto em virtude da ressonância de crueldades passadas ou por não lhe ter sido permitida uma vida mais ampla a céu aberto. Por isso, muitas vezes uma mulher tem a sensação de estar vivendo num local vazio, onde talvez haja apenas um cacto com uma flor de um vermelho vivo, e em todas as direções 500 quilômetros de nada. No entanto, para aquela que se dispuser a andar 501 quilômetros, existe mais alguma coisa. Uma casa pequena e admirável. Uma velha. Ela está à sua espera.
Algumas mulheres não querem estar no deserto psíquico. Elas detestam a fragilidade, a escassez. Não param de tentar fazer com que um calhambeque enferrujado funcione para que possam descer aos solavancos pela estrada, na direção a uma refulgente cidade que fantasiam na pisque. Decepcionam-se, porém, pois a exuberância e a vida selvagem não se encontram ali. Elas estão no mundo do espírito, no mundo entre os mundos, Río Abajo Río, no rio por baixo do rio.
Não seja tola. Volte para debaixo daquela única flor vermelha e siga em frente, percorrendo aquele último e árduo quilômetro. Aproxime-se e bata à porta castigada pelas intempéries. Suba até a caverna. Atravesse engatinhando a janela de um sonho. Peneire o deserto e veja o que encontra. Essa é a única tarefa que temos a cumprir.
Está querendo ajuda psicanalítica? Vá recolher ossos.
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(1) Estés, Clarissa Pinkola
In: Mulheres que correm com os lobos - Mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1995 - Tradução de Waldéa Barcellos. p. 52 a 56.
Crédito Imagens
1.Rosto de mulher amazônica - My.Mother.Garden.Rossi - www.rabbitdowload.ga
2.Mulher de cocá com lobo - www.widmothers-pan-kajtrivedi1
3.Mulher-de-cabeça-p-baixo - iconografia de Roberto Ploeg - www.robertoploeg.com.br
4. Mulher idosa com chapéu e brincos - www.e-stanged.com5.Mulheres retirantes - iconografia de Abelardo da Hora, foto em exposição no Recife-PE- Arquivo blog Espaço Poese - www.vaniserezende.com.br
6.Casa com janela iluminada - www.canstockphoto.com.br
7.Flores no deserto - www.canstockphoto.com.br
8.Fotografia de Clarissa Pinkola Estés - www.riverbankofruth.com
Nota: As imagens publicadas neste blog pertencem aos seus autores. Se alguém possui os direitos de uma dessas imagens e deseja que ela seja removida deste espaço, por favor entre em contato com: vrblog@hotmail.com
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