
O escritor José Saramago (*) — um dos nomes que atingiram o vértice da literatura portuguesa na modernidade — não carece de apresentação, nem mesmo no Brasil, um país de leitores de rasas estatísticas.
O que me impressiona é o presente que ele oferece ao leitor, de degustar a originalidade e a liberdade da forma como ele escrevia, e o encanto poético do seu versejar ao longo do texto, fazendo-nos saborear a exuberante riqueza do idioma português. Dos seus inúmeros livros — cujos títulos em grande parte foram lançados no Brasil pela Editora Companhia das Letras — os que mais me impressionaram foram: "Ensaio sobre a Cegueira"; "Ensaio sobre a Lucidez"; "História do Cerco de Lisboa"; "O Homem Duplicado"; "A Bagagem do Viajante" "Cadernos de Lanzarotte"; "Todos os Nomes" e "As Intemitências da Morte"... Deste último, já lí e relí inúmeras vezes a parte final do romance, descobindo sempre mais a profunda densidade e beleza de como o autor descreve uma relação de amor.
Mas, Saramago foi também poeta e cronista. Aliás, antes de descobrir-se escritor, ele foi serralheiro, desenhista, funcionário público e jornalista. Aquele mesmo que, em 1998, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se assim, ao lado de Fernando Pessoa - o poeta português universalmente conhecido - um grande representante da literatura lusitana.
Suas crônicas são daquelas que não se para de ler até o fim, levados na proeza encantadora do conto que frui, e atingidos por sua verve incisiva e direta, aliada a uma visão de mundo comprometido com a realidade cruel do viver humano. Deixo a vocês a leitura de uma dessas crônicas, aparentada com o verso eternizado do nosso grande Drumond.(*)
E AGORA JOSÉ?


Em todo o caso há situações de tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém, um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente armar. Nesse momento veloz toca-se o fundo do poço.

Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: «E agora, José?»

Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota — matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta — e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.

Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?
Cheguei ao fim da crónica, fiz o meu dever. E agora José?"
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(*) José Saramago, escritor português contemporâneo (1922/2010), recebeu o Pêmio Nobel de Literatura e o Prêmio Camões da Literatura Portuguesa.








(*) A crônica "E Agora José? foi publicada em: www.contioutra.com - 25.06.2015
Créditos imagens:
1. José Saramago - imagem do rosto em cortiça -
www.mediasociais.com/2014/09/10
2. Imagem em bronze de Carlos Drumond de Andrade - RJ
- www.noticias.universia.com.br
3. Pintura rosto de Saramago - www.kinareads.com/2011/06/19
4. Zona rural
(Nordeste do Brasil) - Fotografia - JC-Imagens (Galeria).
5. Menino pescador - Roberto
Ploeg - o.s.t. - 80x120cm - 2006
6. Menino chupando cana - Roberto Ploeg - o.s.eucatex - 60x80cm
7. Capas de Livros - fotos divulgação.
7. Capas de Livros - fotos divulgação.
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