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LITERATURA — JOSÉ SARAMAGO

14 julho, 2015


 JOSÉ SARAMAGO

O escritor José Saramago (*) — um dos nomes que atingiram o vértice da literatura portuguesa na modernidade — não carece de apresentação, nem mesmo no Brasil, um país de leitores de rasas estatísticas.

O que me impressiona é o presente que ele oferece ao leitor, de degustar a originalidade e a liberdade da forma como ele escrevia, e o encanto poético do seu versejar ao longo do texto, fazendo-nos saborear a exuberante riqueza do idioma português. Dos seus inúmeros livros — cujos títulos em grande parte foram lançados no Brasil pela Editora Companhia das Letras — os que mais me impressionaram foram: "Ensaio sobre a Cegueira"; "Ensaio sobre a Lucidez"; "História do Cerco de Lisboa"; "O Homem Duplicado"; "A Bagagem do Viajante" "Cadernos de Lanzarotte"; "Todos os Nomes" e "As Intemitências da Morte"... Deste último, já lí e relí inúmeras vezes a parte final do romance, descobindo sempre mais a profunda densidade e beleza de como o autor descreve uma relação de amor.

Mas, Saramago foi também poeta e cronista. Aliás, antes de descobrir-se escritor, ele foi serralheiro, desenhista, funcionário público e jornalista. Aquele mesmo que, em 1998, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se assim, ao lado de Fernando Pessoa - o poeta português universalmente conhecido - um grande representante da literatura lusitana.

Suas crônicas são daquelas que não se para de ler até o fim, levados na proeza encantadora do conto que frui, e atingidos por sua verve incisiva e direta, aliada a uma visão de mundo comprometido com a realidade cruel do viver humano. Deixo a vocês a leitura de uma dessas crônicas, aparentada com o verso eternizado do nosso grande Drumond.(*)

E AGORA JOSÉ?

Há versos célebres que se transmitem através das idades do homem, como roteiros, bandeiras, cartas de marear, sinais de trânsito, bússolas — ou segredos. Este, que veio ao mundo muito depois de mim, pelas mãos de Carlos Drummond de Andrade, acompanha-me desde que nasci, por um desses misteriosos acasos que fazem do que viveu já, do que vive e do que ainda não vive, um mesmo nó apertado e vertiginoso de tempo sem medida.

Considero privilégio meu dispor deste verso, porque me chamo José e muitas vezes na vida me tenho interrogado: «E agora?» Foram aquelas horas em que o mundo escureceu, em que o desânimo se fez muralha, fosso de víboras, em que as mãos ficaram vazias e atônitas. «E agora, José?» Grande, porém, é o poder da poesia para que aconteça, como juro que acontece, que esta pergunta simples aja como um tônico, um golpe de espora, e não seja, como poderia ser, tentação, o começo da interminável ladainha que é a piedade por nós próprios.

Em todo o caso há situações de tal modo absurdas (ou que o pareceriam vinte e quatro horas antes), que não se pode censurar a ninguém, um instante de desconforto total, um segundo em que tudo dentro de nós pede socorro, ainda que saibamos que logo a seguir a mola pisada, violentada, se vai distender vibrante e verticalmente armar. Nesse momento veloz toca-se o fundo do poço.


Mas outros Josés andam pelo mundo, não o esqueçamos nunca. A eles também sucedem casos, desencontros, acidentes, agressões, de que saem às vezes vencedores, às vezes vencidos. Alguns não têm nada nem ninguém a seu favor, e esses são, afinal, os que tornam insignificantes e fúteis as nossas penas. A esses, que chegaram ao limite das forças, acuados a um canto pela matilha, sem coragem para o último ainda que mortal arranco, é que a pergunta de Carlos Drummond de Andrade deve ser feita, como um derradeiro apelo ao orgulho de ser homem: «E agora, José?»


Precisamente um desses casos me mostra que já falei demasiado de mim. Um outro José está diante da mesa onde escrevo. Não tem rosto, é um vulto apenas, uma superfície que treme como uma dor contínua. Sei que se chama José Júnior, sem mais riqueza de apelidos e genealogias, e vive em São Jorge da Beira. É novo, embriaga-se, e tratam-no como se fosse uma espécie de bobo. Divertem-se à sua custa alguns adultos, e as crianças fazem-lhe assuadas, talvez o apedrejem de longe. E se isto não fizeram, empurraram-no com aquela súbita crueldade das crianças, ao mesmo tempo feroz e cobarde, e o José Júnior, perdido de bêbedo, caiu e partiu uma perna, ou talvez não, e foi para o hospital. Mísero corpo, alma pobre, orgulho ausente — «E agora, José?»

Afasto para o lado os meus próprios pesares e raivas diante deste quadro desolado de uma degradação, do gozo infinito que é para os homens esmagarem outros homens, afogá-los deliberadamente, aviltá-los, fazer deles objecto de troça, de irrisão, de chacota — matando sem matar, sob a asa da lei ou perante a sua indiferença. Tudo isto porque o pobre José Júnior é um José Júnior pobre. Tivesse ele bens avultados na terra, conta forte no banco, automóvel à porta — e todos os vícios lhe seriam perdoados. Mas assim, pobre, fraco e bêbedo, que grande fortuna para São Jorge da Beira. Nem todas as terras de Portugal se podem gabar de dispor de um alvo humano para darem livre expansão a ferocidades ocultas.

Escrevo estas palavras a muitos quilómetros de distância, não sei quem é José Júnior, e teria dificuldade em encontrar no mapa São Jorge da Beira. Mas estes nomes apenas designam casos particulares de um fenómeno geral: o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes ali como aqui mesmo, em toda a parte, uma espécie de loucura epidémica que prefere as vítimas fáceis. Escrevo estas palavras num fim de tarde cor de madrugada com espumas no céu, tendo diante dos olhos uma nesga do Tejo, onde há barcos vagarosos que vão de margem a margem levando pessoas e recados. E tudo isto parece pacífico e harmonioso como os dois pombos que pousam na varanda e sussurram confidencialmente. Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.

Entretanto, José Júnior está no hospital, ou saiu já e arrasta a perna coxa pelas ruas frias de São Jorge da Beira. Há uma taberna, o vinho ardente e exterminador, o esquecimento de tudo no fundo da garrafa, como um diamante, a embriaguez vitoriosa enquanto dura. A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio? Será possível que os homens matem José Júnior? Será possível?

Cheguei ao fim da crónica, fiz o meu dever. E agora José?"

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(*)  José Saramago, escritor português contemporâneo (1922/2010), recebeu o Pêmio Nobel de Literatura e o Prêmio Camões da Literatura Portuguesa. 






 



(*)  A crônica "E Agora José?  foi publicada em: www.contioutra.com - 25.06.2015

Créditos imagens:

1. José Saramago - imagem do rosto em cortiça - www.mediasociais.com/2014/09/10 
2. Imagem em bronze de Carlos Drumond de Andrade - RJ - www.noticias.universia.com.br
3. Pintura rosto de Saramago - www.kinareads.com/2011/06/19
4Zona rural (Nordeste do Brasil) - Fotografia - JC-Imagens (Galeria).
5. Menino pescador - Roberto Ploeg - o.s.t. - 80x120cm - 2006
6. Menino chupando cana - Roberto Ploeg - o.s.eucatex - 60x80cm
7. Capas de Livros - fotos divulgação.


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