Um caro amigo me enviou um precioso texto de Frei Beto, muito atual para esses dias carregados de aflições. Fala de uma amiga que, como a maioria dos brasileiros, sente-se angustiada por tais aflições. Ela desabafa. Diz que não consegue mais suportar o silêncio de Deus diante de tudo isso.
No seu texto, Frei Beto chega a afirmar: “convém assinalar que Deus também é evocado pelos terroristas, pelos autocratas, como Bolsonaro, e seu nome é amplamente tomado em vão e utilizado para justificar as mais terríveis atrocidades.”
É sobre o silêncio de Deus diante das nossas aflições que Frei Beto nos fala, trazendo um sopro de conforto ao nosso coração tão angustiado.
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Chega a amiga sem o sorriso que lhe é peculiar. Recebo-a no parlatório do convento com o pressentimento de que algo lhe esmaga o coração. Então, desabafa. Fala do genocídio (mais de 630 mil mortos) promovido pelo governo federal ao minimizar a pandemia e negar a ciência; das invasões de terras indígenas; do feminicídio alarmante; dos múltiplos casos de racismo; dos sucessivos assassinatos de crianças, no Rio, por supostas “balas perdidas”. E antes de se calar, conclui: “Não suporto o silêncio de Deus”.
Uma longa pausa se abre entre nós. Porque não me julgo portador de elixires capazes de consolar os aflitos. Também carrego minhas angústias e tantas interrogações que me oprimem o coração. O silêncio de Deus também me inquieta. Não creio em um deus “pronto socorro” que venha em resposta às minhas súplicas. Nem mesmo sei quem é Deus, digo a ela, por mais que os catecismos e as teologias se esforcem em defini-lo. Pura bravata!
"Também carrego minhas angústias e tantas interrogações que me oprimem o coração. O silêncio de Deus também me inquieta. Não creio em um deus 'pronto socorro' que venha em resposta às minhas súplicas.”
Admito que Deus extrapola todos os nossos conceitos e nossas palavras, ideias e fantasias. Não cabe na mente nem na alma dos humanos. É radicalmente o Outro! O Inominável, como o considera o centésimo nome da divindade na lista muçulmana.
Mesmo na Bíblia - com raras exceções, como no batismo de Jesus (Marcos 1,11) –, Deus se cala. Faz-se presente disfarçado de nuvem, de brisa suave, de sopro, de anjo etc. É o “Deus absconditus” (oculto) de Pascal. Fez silêncio inclusive na agonia do Filho pregado na cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”, clamou Jesus ao ecoar o Salmo 22 (Marcos 15,34). Aquele que Jesus tratava com tanta intimidade, a ponto de chamá-lo Abba – “meu pai querido”, em aramaico – agora estava tão distante que foi invocado pelo nome genérico.
Deus também fez silêncio nos campos
de concentração nazistas. Até o papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz, em abril
de 2010, exclamou: “Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste
tolerar isto? Onde estavas nesses dias?” Da mesma forma, o salmista clamou:
“Meus Deus, eu grito de dia e não me respondes!” (Salmo 22,2). E Javé adverte
no livro dos Provérbios: "Vocês me chamarão, mas não responderei;
procurarão por mim, e não me encontrarão.” (1,28). Deus é
definitivamente um ser insondável, enigmático. É isso, na opinião de João da
Cruz, que nos permite crer ou não crer. “Onde tu te escondes?”, indaga o
místico espanhol, ao fazer eco ao profeta Isaías: “Tu és um Deus que se
esconde.” (45,15).
Minha amiga diz que está em crise de fé. Como os amigos de Jó. Recordo o conselho de Alfred de Vigny: “Nunca fale e nunca escreva sobre Deus. Restitua-lhe o silêncio com o silêncio”. Esse silêncio significa a morte de Deus, como alertou Nietzsche? Óbvio que não. A religiosidade está em plena ascensão no mundo. Nos EUA é politicamente incorreto se declarar ateu… Figuras como o Papa Francisco e o Dalai Lama se destacam como as mais respeitáveis.
“Digo à minha amiga que prezo com profundo respeito o silêncio de Deus. De certa forma, invejo-o. Nesse mundo tão ruidoso, de zoadas auditivas e virtuais, guardar silêncio é uma atitude de profunda sabedoria.”
Mas convém assinalar que Deus também é evocado pelos terroristas, pelos autocratas, como Bolsonaro, e seu nome é amplamente tomado em vão e utilizado para justificar as mais terríveis atrocidades. “Graças a Deus”, roga uma família que, por pouco, não foi esmagada pela grande pedra que se desprendeu no canyon de Capitólio (MG). E o que dizer aos familiares das vítimas fatais? Dizer que não mereceram a bênção de serem agraciados pela mão salvadora de Deus?
Digo à minha amiga que prezo com profundo respeito o silêncio de Deus. De certa forma, invejo-o. Nesse mundo tão ruidoso, de zoadas auditivas e virtuais, guardar silêncio é uma atitude de profunda sabedoria. De saúde psíquica. Não vale a pena falar se minhas palavras não forem melhores que o meu silêncio.
Temos medo do silêncio. Deus não, o que comprova a sua sapiência. Temos dificuldades frente a tudo que requer silêncio, como dormir, orar, meditar, ocupar-se com um livro… O silêncio nos atordoa. E tememos o mais definitivo dos silêncios – a morte.
Após nossa conversa, minha amiga
parecia menos angustiada. Fez-se prolongado e leve silêncio entre nós. Até que
ela se levantou, deu-me um abraço apertado e partiu em silêncio.
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Sobre este tema, confira, do mesmo autor:
https://www.freibetto.org/index.php/todos-os-artigos/214-o-Em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Representa%C3%A7%C3%A3o_de_Jesus_na_arte
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