No texto, aqui reproduzido, fizemos pequenas adaptações na tradução de língua portuguesa, para os leitores do Brasil. Veja, no final, um vídeo com um detalhe da entrevista, quando o Papa silencia.
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A SUA IMAGEM
RAIUNO
A
ESPERANÇA SOB ASSÉDIO
O PAPA FRANCISCO
EM CONVERSA COM LORENA BIANCHETTI
(Especial da
Sexta-Feira Santa)
Lorena Bianchetti: Santidade, obrigada pela oportunidade de
estar aqui, em nome de todas as pessoas que neste momento vivem estados de
espírito complexos: de perplexidade, de angústia, de medo, de sofrimento.
Começo mencionando uma hora: três horas, três horas da tarde. Jesus morre
na cruz e morre inocente. Há tantas pessoas inocentes que não querem a guerra,
mas que são suas vítimas. Nos últimos dias veem-se imagens de corpos sem vida
nas ruas; fala-se até de fornos crematórios ambulantes e, também, de estupros,
devastações e barbáries. O que acontece hoje com a humanidade, Santidade?
Papa Francisco: Isso não é uma novidade, cara. Um escritor dizia que “Jesus Cristo está em agonia até ao fim do mundo”, está em agonia nos seus filhos, nos seus irmãos, sobretudo nos pobres, nos marginalizados, na pobre gente que não sabe se defender. Neste momento, na Europa, essa guerra nos atinge, e muito. Mas, olhemos um pouco mais além. O mundo está em guerra, o mundo está em guerra! A Síria, o Iémen, pensemos nos Rohingya, expulsos, [de Miranmar] sem pátria. Em todo o lado há guerra. E o genocídio ruandês há 25 anos... Porque o mundo escolheu – é difícil dizê-lo – mas escolheu o esquema de Caim e a guerra é implementar o cainismo, ou seja, matar o irmão.
Lorena Bianchetti: E precisamente porque existe o bem e o mal, o
senhor muitas vezes nos advertiu sobre a forma como o mal age. Disse-nos que o demônio
se apresenta de uma forma amável, alicia-nos, mas na realidade o mal só quer a
nossa falência: não há diálogo com o demônio. E por isso lhe pergunto, precisamente
à luz do que dizia: – Como podemos encontrar formas de mediação, formas de
diálogo com quem, ou, pelo menos, com aqueles que desejam e perseguem apenas a
prepotência?
Papa Francisco: Quando eu digo que não se dialoga com o demônio, é porque o demônio é mau, não tem nada de bom! Digamos: é como o mal absoluto. É aquele que se rebelou totalmente contra Deus! Mas com pessoas doentes, que têm a doença do ódio, falamos, dialogamos. Jesus dialogava com muitos pecadores, sempre com ternura. Até com Judas, que depois se tornou “amigo”, porque todos nós temos sempre o espírito do Senhor, pois Ele semeou em nós algo de bom. E quando estou diante de uma pessoa – e acontece sempre – quando estamos diante de uma pessoa, devemos pensar no que falar sobre essa pessoa: da sua parte feia, mais à vista, ou da sua parte oculta, a melhor. Todos nós temos algo de bom, todos! E esse lado bom é o selo de Deus em nós! Nunca devemos considerar que a vida de alguém está arrasada, que acabou mal... dizer: “Este está condenado!”.
Vem-me à mente a história de uma senhora que se
confessava com o Cura d’Ars, depois que o marido se jogara da ponte. O pároco a
escutava; ela chorava. E dizia: “Aquilo que me aperreia mais é que ele está no inferno!”
“Pare!”, disse-lhe o pároco: “Entre a ponte e o rio está a
misericórdia de Deus!”. Deus procura nos salvar até o fim, porque semeou em
nós a parte boa. Semeou-a também em Abel e Caim, mas Caim tomou uma atitude de
violência, e foi com a sua atitude que se fez uma guerra.
Lorena Bianchetti: Mas, na sua opinião, existe empenho suficiente do
ponto de vista cultural – também no âmbito eclesial, não apenas cultural – existe
empenho suficiente para alertar as pessoas contra a tentação de se cair e viver
o inferno no coração, já nesta terra? Digo isso porque às vezes vivemos
numa sociedade em que parece que o diabólico é decididamente mais fascinante,
mais estimulante do que o bom, o honesto, o gentil e, também, o espiritual, que
aparece e é tido como entediante.
Papa Francisco: Sim, é verdade. O mal é mais sedutor. Voltando ao demônio,
alguns dizem que eu falo demasiado sobre o demônio. Mas é uma realidade. Eu
acredito nisso, sabe? Alguns dizem: “Não, é um mito!”. Eu
não vou com o mito, vou com a realidade, eu acredito. Mas é sedutor. A sedução
procura entrar, prometer algo sempre. Se os pecados fossem feios, se não
tivessem algo de belo, ninguém pecaria. O demônio apresenta algo belo no
pecado e leva ao pecado. Por exemplo, aqueles que fazem a guerra, aqueles que
destroem a vida dos outros, aqueles que exploram as pessoas no seu trabalho. Outro
dia ouvi uma família contar como o pai, que se casou jovem, teve de trabalhar
como operário, saindo de manhã cedo e voltando à noite, por pouco dinheiro,
explorado por uma empresa bilionária. Isso também é guerra. Também é
destruição, não apenas os tanques, isso também é destruição. O demônio procura
sempre a nossa destruição. Por quê? Porque nós somos a imagem de Deus. Voltemos
ao início, às três horas da tarde. Jesus morre, morre sozinho. A mais completa
solidão, abandonado até por Deus: “Porque me abandonaste?”. A
mais completa solidão, porque queria descer à mais terrível das solidões do
homem para nos livrar dela. Ele regressa ao Pai, mas é o primeiro a descer,
está em cada pessoa explorada, que sofre guerras, que sofre destruição, que
sofre tráfico. Quantas mulheres são escravas do tráfico, aqui em Roma e nas
grandes cidades. É obra do mal. É uma guerra.
Lorena Bianchetti: Em resumo, como Dostoievski disse, em Os Irmãos
Karamazov: “A batalha entre Deus e o demônio está no coração do
homem”. É aí que se decide o jogo.
Papa Francisco: É aí que se joga. É por isso que precisamos da
mansidão, da humildade para dizer a Deus: “Sou um pecador, mas
salva-me, ajuda-me!”. Pois cada um de nós tem dentro de si a possibilidade
de fazer o que fazem os que destroem as pessoas, exploram as pessoas. Porque o
pecado é uma possibilidade da nossa fraqueza e, também, da nossa soberba.
Lorena Bianchetti: Antes o senhor recordava a frase pronunciada por
Jesus na cruz: “Meu Deus, por que me abandonaste?” Essa frase
traduz a solidão, mas também o desânimo, a angústia e, portanto, também o
desespero, o estado de espírito que todos nós experimentamos quando não sabemos
qual pode ser a solução para uma dor, mas também para um sentimento de culpa. A
propósito de desespero, Santidade, vem-me à mente uma imagem desta guerra – e
digo isto como mãe – um pai a correr com o filho nos braços que fora atingido
por estilhaços de uma bomba. Ele e a esposa a correr para o hospital,
desesperados. A notícia que chegou foi que aquela criança infelizmente não se
salvou. Não consigo imaginar um desespero mais angustiante do que os pais que
perdem um filho dessa forma. O que diria aos pais que estão passando por essa
experiência angustiante?
Papa Francisco: Na vida, aprende-se. Tive que aprender muitas
coisas e ainda tenho que aprender porque espero viver um pouco mais, mas tenho que
aprender. E uma das coisas que aprendi foi a não falar quando alguém está sofrendo.
Seja uma pessoa doente, seja numa tragédia... Pego-lhe na mão, em silêncio. E
choro. Mas quando se está doente, e vêm dizer: “Não, mas isto, aquilo,
mas o Senhor...”. Cala-te! Cala-te! Diante da dor, silêncio. E pranto. É
verdade que chorar é um dom de Deus, é um dom que devemos pedir: a graça de
chorar, diante das nossas fraquezas e das tragédias do mundo. Mas não há palavras.
Quando citou Dostoiévski, veio-me à mente aquele livreto, que é como um resumo
de toda a sua filosofia, da sua teologia, de tudo: Memórias do Subsolo.
E ali está, quando alguém morre, morre um – são condenados, prisioneiros que
estão no hospital que o pegam e o levam. Um outro, da outra cama, diz: “Por
favor, pare! Ele também tinha uma mãe!” A figura da mulher, a figura da mãe
diante da cruz. Esta é uma mensagem, uma mensagem de Jesus para nós; é a
mensagem da sua ternura em sua mãe. No pior momento da sua vida, Jesus não
insultou.
Lorena Bianchetti: Dado que menciona as mulheres,
Santidade, havia mulheres ao pé da cruz de Jesus. Há outra imagem que gostaria
de lhe propor. Voltemos novamente à Ucrânia. Uma grávida, carregada numa maca
porque foi ferida na guerra, transportada no meio dos escombros, tentando
acariciar o seu ventre com o último suspiro de força que lhe restava. Pelo que
sabemos, nem essa mulher com o seu filho se salvaram. Mas o que realmente me
vem à mente são as mulheres, a força das mulheres. Vêm-me à mente as mães
russas, vêm-me à mente as mães ucranianas. E por isso pergunto-lhe sobre o papel
das mulheres: - Qual a importância do papel ativo das mulheres na mesa de
negociações, para construírem concretamente a paz?
Papa Francisco: “As mulheres são capazes de dar vida até a um
morto” - é um ditado. As mulheres estão na encruzilhada das maiores
fatalidades, elas estão lá, são fortes. É interessante. Jesus é o esposo da
Igreja e a Igreja é uma mulher, é por isso que a Igreja-Mãe é tão forte. Não falo
de clericalismo, dos pecados da Igreja. Não, Igreja-Mãe significa aquela que
está aos pés da cruz a apoiar-nos, a nós pecadores. Algo que me impressiona muito,
quando penso em Maria e nas outras mulheres aos pés da cruz. Em Buenos Aires, por
vezes tive de ir a alguma paróquia num bairro chamado Villa Devoto,
e ia de ônibus, o 86. Ele passava diante da casa de detenção, e muitas vezes eu
via uma fila de mães de presos lá. Expunham os seus rostos pelos seus filhos,
porque todos os que passavam, diziam: “Esta é a mãe de alguém que está
dentro”. E toleravam os controles mais vergonhosos, para verem o seu filho.
A força de uma mulher, de uma mãe que é capaz de acompanhar os seus filhos até
o fim. E esta é Maria: as mulheres aos pés da cruz. Acompanha o filho, sabendo
que muitas pessoas dizem: “Mas como educou o filho que acabou assim?”.
Tagarelice de rua. Mas as mulheres não se preocupam: quando há um filho
envolvido, quando há vida envolvida, as mulheres vão em frente. Por isso, dar
às mulheres um papel em momentos difíceis, em momentos de tragédia é tão
importante; é muito importante. Elas sabem o que é a vida, o que se prepara
para a vida e o que é a morte, conhecem-na bem. Falam essa linguagem.
Lorena Bianchetti: E há também, Santidade – porque estamos a falar das
muitas mortes causadas pela guerra – há mortes mais silenciosas, mas não menos
sangrentas. Penso naqueles que foram assassinados pelas máfias e penso nas
mulheres mortas pelos seus companheiros. É verdade que os últimos serão os
primeiros no Céu, mas: como podem essas
pessoas e aqueles que perdem os seus afetos. acreditar na justiça, numa
recompensa já nesta terra?
Papa Francisco: A exploração das mulheres é o nosso pão quotidiano.
A violência contra as mulheres é o nosso pão de cada dia. Mulheres que sofrem
golpes, que sofrem violência por parte dos seus companheiros e carregam isso em
silêncio ou afastam-se sem dizer por quê. Nós, homens, teremos sempre razão:
somos os perfeitos. E as mulheres estão condenadas ao silêncio pela
sociedade. “Não, mas essa é louca, é uma pecadora!”. Era o que
costumavam dizer sobre Madalena: “Olha o que ela fez, é uma pecadora!”. “E
tu não és um pecador? Não erras?”. Mas as mulheres são a reserva da
humanidade, posso dizer isso: estou convencido disso. As mulheres são a força.
E ali, aos pés da cruz, os discípulos fugiram, as mulheres, que o seguiram ao
longo da vida. Jesus, a caminho do Calvário, para em frente de um grupo de
mulheres que choravam. Elas têm a capacidade de chorar, nós, homens, somos mais
brutos. Ele para [e diz]: “Chorai pelos vossos filhos!”, porque
farão muitas coisas contra eles.
Lorena Bianchetti: Hoje, Santidade, penso na fuga: há imagens que
falam da fuga de ucranianos que são forçados a deixar as suas terras, as suas
casas, os seus afetos. É um dos últimos êxodos a que, provavelmente, e
infelizmente estamos nos habituando a ver. Mas, neste caso, houve uma resposta
concreta e real. Na sua opinião, é uma resposta que derruba os muros da
indiferença, do preconceito para com aqueles que fogem de outras partes do
mundo, porque estão feridos pela guerra, ou continua-se a dividir os refugiados
em categorias incômodas?
Papa Francisco: É verdade. Os refugiados são divididos. Primeira
classe, segunda classe, cor da pele, [quer sejam] provenientes de um país
desenvolvido ou de um que não é desenvolvido. Nós somos racistas, somos
racistas. E isto é mau. O problema dos refugiados é um problema que até Jesus
sofreu, porque era um migrante e refugiado no Egito, quando era criança, para
escapar à morte. Quantos desses sofrem para escapar à morte! Há um quadro da
fuga para o Egito que um pintor piemontês fez. Ele o mandou a mim e eu fiz
alguns santinhos: é José com o menino em fuga. Mas não é São José com a barba,
não. É um sírio, de hoje, com a criança, fugindo da guerra de hoje. O rosto de
angústia que dessas pessoas, como Jesus, forçado a fugir. Jesus já passou por tudo
isso, e está lá, na cruz, nos povos dos países da África em guerra, do Médio
Oriente em guerra, da América Latina em guerra, da Ásia em guerra.
Há alguns anos eu disse que estávamos vivenciando a
terceira guerra mundial em pedaços. Mas ainda não aprendemos. Eu – sou um
ministro do Senhor e um pecador, escolhido pelo Senhor – mas, pecador assim,
quando fui a Redipuglia, (na província de Gorizia) em 2014, para a comemorar o centenário [da
II guerra mundial]. Vi e chorei. Simplesmente chorei. Todos aqueles jovens! [cerca de 100 mil mortos]. Depois visitei o cemitério de Anzio, onde se lembrava os jovens que (na época) tinham desembarcado em Anzio. Todos,
jovens! E eu chorei lá, outra vez. Choro diante dessas realidades. Creio que há
dois anos, quando houve a comemoração do desembarque na Normandia, com os chefes de governo, houve um encontro... eles estavam comemorando. Mas por que
não comemoramos todos nós os 30.000 soldados que morreram na praia da
Normandia? A guerra cresce suprimindo a vida dos nossos filhos, dos nossos
jovens. É por isso que digo que a guerra é uma monstruosidade! Vamos a esses
cemitérios que são precisamente a memória dessas vidas. Pensemos naquela cena
que está escrita: barcos a chegar à Normandia, abriam-se, saltavam fora com os
fuzis os jovens e os alemães... [o Papa imita o gesto de disparar] 30.000, na praia.
Lorena Bianchetti: Isso leva-me precisamente à corrida aos armamentos,
a este tema. Um argumento que [o senhor] já abordou muitas vezes, e talvez nem
sempre se tenha dado a ênfase certa. Disse que, nos últimos tempos, se investiu
mais em armas do que em educação e formação. Por que os seres humanos não
aprenderam com o passado e continuam a usar armas para resolver os seus
problemas?
Papa Francisco: Eu compreendo os governantes que compram armas,
compreendo-os. Não os justifico, mas compreendo-os. Porque temos de nos defender,
porque há o esquema cainista de guerra. Se fosse um esquema de paz, isso
não seria necessário. Mas vivemos com este esquema demoníaco, para nos matar
uns aos outros por causa do poder, por causa da segurança, por causa de muitas
coisas. E penso nas guerras ocultas, que ninguém vê, que estão longe de nós.
Tantas! Para quê? Para explorar? Esquecemos a linguagem da paz: esquecemo-nos
dela. Fala-se de paz. As Nações Unidas fizeram tudo, mas não tiveram êxito.
Regresso ao Calvário. Lá Jesus fez tudo. Ele tentou com piedade, com
benevolência, convencer os líderes e [em vez disso] não: guerra, guerra, guerra
contra ele! Por mansidão, opõem-se à guerra pela segurança. “É melhor que um
homem morra pelo povo”, diz o sumo sacerdote, porque, do contrário, os romanos
virão. E a guerra.
Lorena Bianchetti: Então faço uma ligação com o que estava a dizer. Há
pouco falamos sobre as mulheres aos pés da cruz. Mas, a propósito dos homens
que têm poder. Na época havia Pilatos, Herodes, Caifás. Cada um deles poderia
ter salvado pessoas inocentes, mas não o fizeram: preferiram não enfrentar o
risco da verdade. Essas pessoas morreram, mas a sua forma de fazer as coisas
continua a ser atual. Por que não temos a coragem de escolher o bem e defender
o Homem que nos tinha simplesmente pedido para nos amarmos uns aos outros?
Papa Francisco: Há uma mulher no Evangelho sobre a qual não se fala
muito – um pouco en passant – é a esposa de Pilatos. Ela
compreendeu alguma coisa. Diz ao marido: “Não te envolvas com este
homem justo!”. Mas Pilatos não a ouve, “coisas de mulher!”. Mas
essa mulher - que passa esquecida e sem força no Evangelho - compreendeu o drama
lá de longe. Por quê? Talvez ela fosse mãe, tinha essa intuição de
mulher. “Toma cuidado para que não te enganem!”. Quem? O poder! O
poder que é capaz de mudar a opinião das pessoas de domingo para sexta-feira.
O Hosana do domingo torna-se o Crucifica-o! da
sexta-feira. E este é o nosso pão quotidiano. Precisamos de mulheres que deem o
alarme.
Lorena Bianchetti: Então, Santidade, Jesus na cruz, depois daquela
frase, “Meu Deus, por que me abandonaste?”. Falávamos de desespero,
desânimo e, também, solidão: Sexta-feira Santa é um pouco como o dia da
solidão. E a solidão faz-me pensar, inevitavelmente, no que cada um de nós
sentiu durante o período mais difícil da pandemia. Penso nos idosos, nos
jovens, nas pessoas que vivem a provação da doença, naqueles que usavam
aparelhos porque não conseguiam respirar. E, também, penso em Sua Santidade, no
dia 27 de março de 2020. Quais foram os seus pensamentos naquele momento, ao
atravessar a Praça de São Pedro completamente vazia, molhada pela chuva, e
chegar ao átrio?
Papa Francisco: Não sei se pensei. Senti, sim. Procurava, sentia o
drama daquele momento, de tantas pessoas. A senhora sublinhou a solidão, o
sofrimento daquele momento, e dos idosos. É curioso: são eles que pagam sempre
a conta. E os jovens também, porque roubamos a esperança aos jovens. Nós os
fazemos seguir o caminho da Turandot: “A esperança que
sempre desilude”. Não, a esperança não desilude! Mas são os jovens e os
idosos que têm nas mãos e no coração a possibilidade de reagir: é por isso que
insisto tanto para que os jovens e os idosos dialoguem. A sabedoria dos idosos,
com a solidão que eles sofrem. A sabedoria dos idosos é muitas vezes
negligenciada e deixada de lado num lar de idosos. Eu gostava de visitar os
lares de idosos em Buenos Aires; havia muitos na cidade. Perguntei a uma
mulher: “Como estás? Quantos filhos? Ah, quatro? E eles vêm?”. “Sim, não
me deixam sozinha!”. A enfermeira ouviu e na saída disse: “Padre,
há seis meses que não vem ninguém”. O abandono dos idosos e o abandono da
sabedoria, porque por vezes somos super-homens, sabemos tudo. Nós não sabemos
nada! A solidão dos idosos e o uso dos jovens, porque os jovens, sem a
sabedoria que vem do seu povo, terminarão mal.
Jesus tinha tudo isso no seu coração naquele momento:
estávamos todos lá. A senhora lembrou a Statio Orbis de março,
há dois anos, e sentia tudo isso. Mas eu não sabia que a praça estaria vazia,
não sabia. Eu cheguei lá e não havia ninguém. Sim, eu sabia que com a chuva
haveria poucas pessoas, mas, ninguém. Foi uma mensagem do Senhor para que eu compreendesse
bem a solidão. A solidão dos idosos, a solidão dos jovens que deixamos sozinhos. “Deixem que eles sejam livres!”. Não! Sozinhos, eles serão escravos. Acompanhemos-los! É por isso que é importante que eles recebam a herança dos idosos, a sua
bandeira devedora. A solidão dos jovens, dos idosos. A solidão das pessoas com
problemas mentais em casas de saúde. A solidão das pessoas que passam por uma
tragédia pessoal e familiar. A solidão de uma mulher que é espancada pelo
marido, mas se cala para salvar a sua família. Temos muitas solidões ao nosso
redor. Também a senhora tem a sua. Eu tenho as minhas: a senhora terá as suas,
com certeza. Pequenas solidões, mas é nessas pequenas solidões que podemos
compreender a solidão de Jesus, a solidão da cruz.
Lorena Bianchetti: Alguma vez se sentiu sozinho no exercício do seu
ministério?
Papa Francisco: Não, Deus tem sido bom para mim. Não sei. Sempre,
quando há algo negativo, ele põe alguém para me ajudar! Faz-se presente. Tem
sido muito generoso. Talvez porque Ele sabe que eu não conseguiria fazê-lo
sozinho! (risos).
Lorena Bianchetti: Saiba que no dia 27 de março – penso que estou
realmente a falar em nome de todos – o senhor nos pegou realmente no colo,
deu-nos muita força naquele dia. A partir de então, cada um de nós tomou
consciência e, de alguma forma, penso que recomeçamos. Mas tenho outra pergunta:
como já dissemos, Jesus foi flagelado, humilhado, coroado de espinhos,
crucificado. E tudo isso, de alguma forma, veio-lhe da sua família, porque foi
traído por Judas, foi negado por Pedro. Em suma, os golpes mortais vieram
precisamente dos seus próximos. Quais são as feridas que a Igreja, hoje, continua
a infligir ao Crucificado?
Papa Francisco: Falo claramente, porque estou convencido disso. A
cruz mais dura que a Igreja hoje carrega sobre o Senhor é a mundanidade, o espírito
da mundanidade. O espírito de mundanidade, que é um pouco como o espírito
de poder, mas não apenas de poder, dá-se num estilo mundano que – curiosamente
– é alimentado e cresce com dinheiro. Há uma coisa interessante. Nas três
tentações do demônio a Jesus, o demônio faz propostas mundanas. A primeira, a
fome, e se compreende: é humana – mas depois o quê? Poder, vaidade: coisas
mundanas. Porque o caminho é atraente e quando cai na mundanidade, no espírito
mundano, a Igreja é derrotada. O espírito de mundanidade é o que mais dói hoje,
mas tem sido sempre assim. Quando Jesus nos diz: “Por favor, fazei uma
opção clara, não podeis servir a dois senhores!”. Ou servis a Deus... –
e eu esperava que Ele dissesse: “ou servis ao demônio” –, mas Ele não diz
isso. Ele diz: “Ou servis a Deus ou servis ao dinheiro”. Usar
dinheiro para fazer o bem, para apoiar a família através do trabalho, é ótimo.
Mas, servir! Mas a mundanidade se detém no dinheiro.
Lorena Bianchetti: Li que Leão XIII tinha uma oração contra o demônio,
que foi introduzida no final da missa porque, se diz, havia o risco de o demônio
poder entrar na Igreja também através das fendas das portas. Na sua opinião,
terá sido essa a fenda através da qual o demônio conseguiu entrar hoje na
Igreja?
Papa Francisco: A mundanidade, mas isto acontece desde sempre. Em
cada época a mundanidade muda de nome, mas é sempre o mesmo. Rezo a prece a São
Miguel Arcanjo todos os dias, pela manhã. Todos os dias! Para que me ajude a vencer
o demônio. Quem me ouvir pode dizer: “Mas Santidade, estudou, é Papa e
ainda acredita no demônio?”. Sim, acredito, caro, acredito. Tenho medo
dele, é por isso que tenho que me defender tanto. O demônio fez todas as
manobras para que Jesus acabasse, como aconteceu, na cruz: o poder das trevas
sobre Jesus: “Esta é a vossa hora!”, o poder das trevas.
Lorena Bianchetti: E assim, Santidade, volto à guerra na Ucrânia,
porque Kiev –as imagens continuam a chegar – está completamente destruída.
Cinzas. Talvez seja essa a paisagem que o demônio tanto gosta. Por isso
pergunto-lhe: Kiev já não é apenas um lugar geográfico, mas aos olhos do
mundo representa muito mais. No seu coração, o que é?
Papa Francisco: Uma dor. A dor é uma certeza, é um sentimento que
tira tudo. Quando alguém, após uma cirurgia, sente dor física, a ferida que foi
feita, pede uma anestesia, algo para ajudar a tolerá-la. Mas, para a dor
humana, dor moral, não há anestesia. Há apenas oração e choro. Estou convencido
de que hoje não choramos bem. Esquecemo-nos de chorar. Se posso dar um
conselho, para mim e para as pessoas, devemos pedir o dom das lágrimas. E
chorar, como Pedro chorou, depois de ter traído Jesus. Ele chorou, quando
fugiu, quando o negou. Ele chorou. Um grito que não é um desabafo, não. É uma
vergonha feita fisicamente e creio que nos falta vergonha. Estamos tantas vezes
sem vergonha – é um insulto que se usa na minha terra natal: “fulano é um
sem-vergonha!” – mas precisamos da graça de chorar. Há uma bela
oração, há uma missa para pedir o dom das lágrimas. Uma bela prece nessa missa
é assim: “Senhor, tu que da rocha fizeste sair água, faz sair lágrimas
da rocha do meu coração!”. O coração duro, o coração que não se
comove, não sabe chorar. Pergunto-me: quantas pessoas, diante das imagens de
guerras, quaisquer guerras, foram capazes de chorar? Alguns, sim, tenho a
certeza, mas muitos, não. Começam a justificar ou a atacar. Não, isto (o Santo
Padre aponta para o coração): é preciso curar isto. E Jesus toca aqui! Hoje,
Sexta-feira Santa, diante de Jesus Crucificado, deixe que ele toque o teu
coração, deixa que Ele te fale com o seu silêncio e com a sua dor. Que Ele te
fale através daquelas pessoas que sofrem no mundo: sofrem de fome, sofrem de
guerra, sofrem de tanta exploração e de todas essas coisas. Deixa que Jesus te
fale, e por favor não fales tu. Silêncio. Deixe que seja Ele a falar, e pede a
graça de chorar!
Lorena Bianchetti: Quanto pode fazer as religiões para remover essa
desertificação dos corações? Quanto e que palavras pretende dirigir também aos
bispos ortodoxos?
Papa Francisco: Sim, eles também estão preparando a Páscoa conosco,
com uma semana de diferença, porque – também os católicos orientais – seguem o
calendário juliano, não o gregoriano. Aproveito a oportunidade para enviar uma
mensagem de fraternidade a todos os meus irmãos bispos ortodoxos, que estão vivendo
essa Páscoa com a mesma dor que nós, eu e muitos católicos a estamos vivendo.
Não é fácil ser bispo... e graças a Deus que não é fácil! É por isso que não
compreendo aqueles que querem tornar-se bispos! Eles não sabem o que os espera!
Mas gostaria de aproveitar essa oportunidade para saudar todos os bispos
ortodoxos como irmãos na fé.
Lorena Bianchetti: Há outra frase que Jesus pronuncia na cruz: “Pai,
perdoa-lhes porque não sabem o que fazem!”. Perdão. O senhor disse que
oferecer a outra face não significa sofrer em silêncio, ceder à injustiça.
Recordou-nos que Jesus também denuncia a injustiça, e especificou que ele o faz
sem raiva nem violência, mas com ternura. Santidade, como podemos ser
amáveis ou perdoar todas as pessoas que nos ferem, aquelas pessoas que matam inocentes,
que agridem não só fisicamente, mas também psicologicamente?
Papa Francisco: Dou-lhe a minha receita. Se eu não fiz esse mal, é
porque Ele me impediu com a Sua mão, com a Sua misericórdia. Disto estou certo,
porque de outra forma teria feito tanto mal como eles! Nisto posso dizer que
sou uma testemunha da misericórdia de Deus. É por isso que não posso condenar
alguém que vem pedir perdão. Devo perdoar sempre. Cada um de nós pode dizer isso
sobre si mesmo, no seu exame de consciência. É verdade que talvez não sejamos
capazes de dizer, afetivamente: “Vem caro, dá-me um beijo!”. Não,
talvez eu fique zangado! Mas digo: “Senhor, livra-me da raiva, eu perdoo,
mas não tenho o sentimento de perdão. Eu perdoo. Tu, arranja-te, para levar esse
perdão...".
Lorena Bianchetti: O perdão tem uma raiz apenas divina.
Papa Francisco: Sim, no final o perdão é algo assim.
Lorena Bianchetti: Voltando a Jesus na cruz, também penso na solidão,
penso em todas aquelas pessoas que, como consequência da Covid, perderam os
seus empregos. Há muitas pessoas, Santidade, que vivem com esse tipo de
dificuldade. Que palavras de esperança lhes quer transmitir?
Papa Francisco: A palavra-chave que acabou de dizer é esperança. A esperança não é acariciar e
dizer: “Ah, tudo vai passar, não te preocupes!”. A esperança é uma
tensão para o futuro, para o céu também. É por isso que a figura da esperança é
a âncora: a âncora atirada ali e eu aqui com a corda, para chegar lá, para
resolver situações, mas sempre com essa corda. A esperança nunca desilude, mas faz-nos
esperar. A esperança é a doméstica da vida cristã. É
realmente a mais humilde das virtudes. Está escondida, mas se não a tiveres (à
mão), não encontrarás o caminho certo. É a esperança que te faz encontrar o
caminho certo. Ter esperança é não ter ilusão: “Vou… (falar
com) alguém para ler a mão... isto vai dar certo!”.
Não, isto não é esperança. A esperança é a certeza de que tenho na minha mão a
corda daquela âncora lançada. Gostamos tanto de falar da fé, da caridade...Olha
para ela! A esperança é uma virtude oculta, pequenina, a pequenina de casa. Mas
é a mais forte para nós.
Lorena Bianchetti: Então esta é também a mensagem para os
jovens, porque penso naqueles que veem o futuro a ser arrancado das suas mãos: há
pouco disse isto muito claramente. É por isso que não planejam muito, e nem
sempre acreditam em relações duradouras, não formam famílias. Em suma, digamos
que mesmo no nível institucional e cultural não são muito ajudados. Portanto,
que palavras gostaria de lhes dizer?
Papa Francisco: Não confundir esperança com otimismo. Podemos
comprar o otimismo no quiosque. Sabe, o otimismo é vendido! Mas a esperança é
outra coisa. A esperança é ter a certeza de que estamos a caminhar para a vida.
Há um poeta argentino que – bom, um grande poeta – [há] uma frase, um poema,
que sempre me impressionou, uma definição de vida: “A vida é uma morte
que chega”. Não, a vida não é uma morte que chega: a vida é, talvez, da
morte voltar à vida! A esperança é forte nisso: é aquela corda da âncora.
Nunca desilude! Mas é humilde, é, na verdade a doméstica da vida
cristã. Muitas vezes, são as domésticas que levam em
frente a vida de uma família.
Lorena Bianchetti: Santidade, para concluir. Hoje é Sexta-feira Santa,
mas a história da salvação não termina aqui. Graças a Deus, o Evangelho tem um
final feliz porque há a ressurreição de Jesus: esse é o centro da história da
salvação. Quais são os seus votos para esta Páscoa?
Papa Francisco: Uma alegria interior. Há um salmo que diz: “Quando
o Senhor nos libertou da Babilónia, parecia-nos sonhar!”. O pranto de
alegria. Alegria. Os meus votos são para que não se perca a esperança, a
verdadeira esperança – que não desilude. É pedir a graça de chorar, mas o choro
de alegria, o choro de consolação, o choro de esperança! Tenho a certeza,
repito: precisamos chorar mais! Esquecemo-nos de chorar. Vamos pedir a Pedro
que nos ensine a chorar como ele chorou. E depois, o silêncio da Sexta-feira
Santa.
Lorena Bianchetti: Santidade, são quase três horas. Como devemos viver
este momento hoje?
Papa Francisco: (não responde, permanece em silêncio).
Lorena Bianchetti: Posso abraçá-lo em nome de todos?
Obrigada, Santidade! Obrigada!
Papa Francisco: Sou eu que agradeço! O Senhor a abençoe!
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Fonte do texto:
htttps://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2022-04/papa-francisco-entrevista-rai-lorena-bianchetti-guerra.html
Veja: Vídeo do silêncio de Francisco:
https://twitter.com/i/status/1514950324255174658
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