Entre as formas possíveis de cuidar da saúde mental, neste período doloroso para todos nós, a jovem filósofa e romancista italiana Ilaria Gaspari nos fala da ideia grega de felicidade. A entrevista dada ao jornal Le Monde, em 30 de maio, foi publicada em versão portuguesa no portal IHU-Unisinos.
No final da entrevista estão informações sobre a autora.
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- Entrevista com: Ilaria Gaspari
- Entrevistador: Nicolas Truong
- Versão portuguesa: Ancré Langer
A filósofa italiana, Ilaria Gaspari, explica como a sabedoria dos Antigos, sejam epicuristas, estoicos ou pitagóricos, pode nos ajudar a vivenciar tanto os colapsos do confinamento como os alívios do desconfinamento.
A entrevistada, que é também romancista, publicou Lições de felicidade. Exercícios filosóficos
para o bom uso da vida (Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020), um
conjunto de exercícios de filosofia aplicada que narra como os preceitos das
escolas de sabedoria antiga podem nos ajudar a superar as rupturas e as feridas
da vida. Hoje, ela explica ao Le Monde como esses pensamentos
nos permitem apreender os tormentos e os impulsos de uma existência perturbada
pela pandemia da Covid-19. Segue a
entrevista.
Como outros países, a França está levantando algumas das restrições ligadas à crise de saúde. Como apreender esta alegria e estas felicidades redescobertas, que apesar de tudo permanecem muito condicionadas?
Como Sócrates diz
no Fédon, o prazer nasce também da cessação de uma dor. Ou seja,
nada é mais agradável do que o alívio... E acredito que se tratará, justamente,
de um momento de tranquilidade que tanto esperávamos. Essas coisas que antes
considerávamos quase banais, como compartilhar um copo no terraço, obter um
sorriso, ouvir conversas de vizinhos, sair com os amigos, ir comer no bistrô,
viver um ao lado do outro... Depois dessa interminável interrupção, elas
voltarão como novas. E tenho que admitir: mal posso esperar para experimentar
esse momento.
Existe uma atitude filosófica que poderia nos preparar para esse súbito “excesso” de prazeres?
Certamente! Toda a filosofia antiga, em certo sentido, é uma educação para a moderação, um princípio que perdemos de vista, mas que poderia muito bem nos ajudar agora. O que tentarei fazer todas as manhãs é sondar quais são as minhas necessidades de acordo com a prescrição de Epicuro: perguntar a mim mesmo, em relação a cada um dos meus desejos despertos, a que categoria ele pertence. Se é uma necessidade, uma necessidade natural ou mesmo imperiosa ou, pelo contrário, se não corro o risco de sofrê-la – de me tornar “escravo” deste novo prazer e, assim, desenvolver uma dependência. Já sei que não será fácil, mas este momento, este acontecimento que se avizinha, parece-me uma boa oportunidade para se testar e prestar-se a um novo exercício espiritual.
Por que você procurou os pensadores gregos da Antiguidade para encontrar
maneiras de sobreviver ao desespero?
Depois de uma ruptura amorosa dolorosa, decidi ir
para a escola dos filósofos gregos, seguindo suas regras de conduta de vida às
vezes misteriosas. Após estudar a doutrina de seis escolas antigas diferentes,
bem como a vida dos mestres, tentei seguir seus preceitos durante seis semanas:
fui sucessivamente pitagórica, eleata, cética, estoica, epicureia e finalmente
cínica. A minha ambição era perder os automatismos e os hábitos diários para me
reorientar e modificar a ideia que tinha da vida.
Por que faz bem ler Pitágoras ou Epicuro, Epicteto ou Diógenes ao passar
por uma provação, como a de uma pandemia?
Durante o primeiro confinamento, fiquei
impressionada com a forma como os gregos falaram conosco neste momento crítico.
Porque essas escolas, em particular as escolas helenísticas, também floresceram
em um período de crise, se por crise entendemos uma mudança seguida de uma
perda de pontos de referência: a época das conquistas de Alexandre marcou
uma passagem traumática através da qual os cidadãos da polis se
tornarão sujeitos, à medida que as fronteiras do mundo se expandiam.
Os gregos têm uma palavra para falar do tempo, não num sentido cronológico, mas
qualitativo: kairós. Na medicina antiga, o kairós, o
momento certo para intervir, é o momento da crise. Estamos em uma crise
coletiva que nos obriga a nos repensarmos. Pensar filosoficamente significa
sentir a tensão do desejo de compreender, sem esperar respostas prontas,
receitas a aplicar. Não se trata de desenvolvimento pessoal, mas de um ideal
pedagógico de educação de si mesmo. Entre os filósofos antigos, existe a ideia
de uma filosofia viva, vivida como um “exercício espiritual”, como muito bem
disse o filólogo e filósofo Pierre Hadot (1922-2010).
Pode nos dar exemplos desses exercícios espirituais?
Como não ceder ao medo, mas também superar o sentimento de opressão e às vezes até de colapso que estamos passando neste período?
Sobre este ponto, o filósofo que mais claramente
nos fala é Epicuro, um personagem revolucionário à sua maneira, que
abriu sua escola não só para as mulheres, o que já era muito raro, mas também
para as escravas! Por meio de seus ensinamentos, ele garantiu que ninguém fosse
exposto à chantagem do que temia. Ele inventou um tetrapharmakos,
uma espécie de medicina lógica, um pensamento racional para ajudar aqueles de
nós que o medo aliena: o medo dos deuses, da morte, da dor, de não poder
alcançar o prazer da vida, etc. Medos que persistem ainda hoje, seja você um
politeísta ou não. É um patrimônio precioso, sobretudo porque testemunha um
grande amor pelos outros: o amor de um filósofo generoso que, apesar das
perseguições de que foi alvo, nunca desprezou a fraqueza dos homens. Epicuro também
aprende a fazer um exame muito sério de seus desejos, sem, no entanto,
reprimi-los.
Por que a amizade é um dos laços mais importantes em tempos de provação?
“De todas as coisas boas que a sabedoria nos
oferece para a felicidade de toda a nossa vida, a amizade é a maior”, diz Epicuro.
Mas ele não fala apenas da amizade entre amigos, mas de uma atenção devotada
aos outros, até mesmo aos desconhecidos. É um vínculo subterrâneo que permeia
qualquer relação: sempre se pode adotar a postura da amizade, isto é, de uma
atitude generosa, semelhante à benevolência desinteressada que constitui o
segredo de toda amizade verdadeira. Essa disposição decorre do reconhecimento
dos sinais universais da condição humana no outro. Penso que essa terrível
pandemia, que nos obriga a admitir nossa própria vulnerabilidade, nos oferece
uma oportunidade valiosa de exercer esse olhar e essa atitude.
Por que nossa relação com o tempo e inclusive com o espaço pode ser
compreendida de forma diferente graças aos pensadores antigos?
Ao tentar interpretar os paradoxos de Zenão como uma chave existencial, eu refleti sobre o que a pandemia nos apresentou na sequência: que o tempo é apenas uma coleção de momentos que estão todos presentes. O esforço que os anos 2020 e 2021 nos exigiram, nomeadamente o de desistir de nos projetarmos no futuro, é difícil. A menos que você seja um sábio estoico, acho que é impossível para um ser humano viver completamente no presente; mas pensar criticamente sobre a forma que damos ao tempo em nossa própria imaginação pode ser de grande ajuda. Graças aos gregos, que eram muito apegados ao tempo livre (schole é a palavra para designá-lo, da qual deriva nossa “escola”), aprendi (um pouco) a me libertar das injunções contemporâneas para capitalizar o tempo, para investi-lo. Devo acrescentar que tive outro mestre para isso: meu cachorro, adotado após minha semana cínica. Os cães têm um sentido maravilhoso do presente: observar outras formas de vida, partilhar momentos de vida com eles, é um excelente exercício de filosofia!
Depois deste ano doloroso, a felicidade pode voltar a ser uma ideia nova na Europa?Penso – espero, embora seja uma atitude pouco
estoica – que sim. Nossa imagem muito fotogênica de felicidade, concebida como
um momento de euforia, um sorriso no Instagram, mostrou seus
limites. E se aproveitássemos esse momento para retomar a ideia grega de
felicidade? Ou seja, a eudaimonìa, “o apaziguamento do seu daemon pessoal”.
Uma jornada repleta de armadilhas, certamente, mas que leva a se conhecer, a se
tornar o que se é.
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* Ilaria Gaspari, a
filosofia conjugada no futuro do pretérito
Um rompimento amoroso brutal leva-a a retornar aos filósofos antigos. E perceber que “a filósofa se tornou acadêmica demais”. Porque Epicuro ou Epicteto não são apenas teóricos, mas mestres de vida. “Desesperada, escreve, largada da noite para o dia após dez anos de amor”, ela tem que se mudar e se encontra diante de “trinta caixas de pura sabedoria humana”, que a reenviam à sua história, porque “esvaziar uma biblioteca é como se inventar arqueólogo de si mesmo”, mas também à sua relação com o saber: uma disciplina estudada no “tanatófilo” como uma “ciência morta”. Ela então decide literalmente desempacotar tudo e viver de acordo com os preceitos dessas escolas, algumas das quais, como a de Pitágoras, “não são tão diferentes de uma seita”, admite.
Seis semanas de questionamentos depois, ela volta a se encontrar com as cores, à semelhança das suas roupas e de seu interior: “Desde que perdi minhas velhas certezas e aprendi a me deixar dominar pelas regras das escolas antigas, encontrei um prazer há muito tempo perdido”, escreve esta jovem que adora os clássicos,e, ao mesmo tempo se mantém firme nas preocupações de sua geração e de seu tempo. Este desejo de lutar contra as paixões tristes continua no seu último livro, Vita segreta delle emozioni (A vida secreta das emoções), que acaba de ser publicado pelas Edições Einaudi na Itália. Não surpreende, vindo de uma autora que se arrisca a “redescobrir a juventude da filosofia”.
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Fonte
do texto:
http://www.ihu.unisinos.br/609796-e-se-aproveitassemos-este-momento-para-retomar-a-ideia-grega-de-felicidade-entrevista-com-ilaria-gaspari
Publicado em: Le Monde - 30/05/2021
Crédito Imagens:
- 1.Imagem de abertura - arquivo pessoal
- 2. Ilaria Gaspari - Vogue-ES
- 3. Capa do Livro - Lições de Felicidade - Editora Âyiné - Belo Horizonte/MG - 2020 - www.ayine.com.br/catalogo/licoes-de-felicidade/
- 4. Ilaria Gspari - www.popsophia.com.jpg
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