A vida dá voltas incríveis, especialmente quando se conta com uma memória afetiva que nos proporciona grandes alegrias. Uma delas foi o reencontro com Fernando Silva, não mais o garoto de 15 anos que conheci na época da fundação do Sedipo – um Serviço de Documentação e Informação Popular, que oferecia informações para os movimentos populares do Nordeste (1978/1988), com sede na Regional NE-II da CNBB.
Na crônica que reproduzo abaixo, Fernando Silva me dá o título honorífico de sua “mãe do coração”. Assim, o leitor pode entender o que significa, para mim, poder contar com ele como um cronista colaborador deste blog. O seu percurso, como pessoa e profissional, faz-me lembrar uma frase do nosso querido Dom Hélder Câmara: “É graça divina começar bem. Graça maior é persistir na caminhada certa. Mas, graça das graças é não desistir nunca.”
Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ). Contato: jfnando.silva@gmail.com
Vamos à crônica.
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Atualizado em 10.11.2021
Usei um telefone pela primeira vez aos 15 anos de idade. Espere, vou contextualizar. Morei até essa idade na zona rural de Agrestina, a Capital do Agreste. Lá não existia energia elétrica. Água encanada, nem pensar. Notícias das “terras civilizadas”, transmissão de jogos de futebol, escutar músicas e novela somente através do rádio de pilha. E com hora marcada. Sim, escutava rádio novela junto com mãe, irmã e irmãos. Papai ficava uma fera e dizia que novela era coisa de “muié”. Acho que era uma adaptação do latim (muliere, que origina a palavra mulher). E olhe que o cabra, papai, não sabia nem ler e nem escrever. Assinava o nome com extrema dificuldade. Brincava e dizia que sabia escrever a letra “o” porque a xícara tinha um fundo redondo. Genial! Papai, o meu melhor e maior amigo. De todos os tempos e lugares!
Época de
dormir cedo e acordar com o galo cantando, ainda escuro. A alimentação saudável
era produzida na roça. Ainda lembro, como se fosse agora, do cheiro e do gosto
do cuscuz de milho bem maduro, feito por mamãe, ao amanhecer do dia. Pena que
esse tipo de cuscuz, só era feito na época junina, quando o milho já caminhava
para ficar seco. Não podia passar do ponto. Comia até lamber os beiços. E do
queijo e da coalhada caseiros, feitos com leite totalmente natural. Direto do
peito da vaca. De beber a água fria, quase gelada, do fundo do pote de barro. O
ovo era da galinha da roça. Um dia, mamãe pediu para meu irmão Erivam, o mais
novo, pegar ovos no quintal. O primeiro, quando ela partiu, tinha um pintinho
em formação. Ele havia tirado debaixo de uma galinha que estava chocando para
receber uma ninhada de novos pintos. Um “pintincídio”. Ainda bem que os demais
ele tirou noutro lugar. Saudades de pegar, torrar e comer tanajura, uma iguaria
maravilhosa.
Geladeira, sem
energia, nem pensar. Só conhecia o caju para chupar e fazer doce (na época, sem
a danada da diabetes). Quando fiquei mais velho, passou a servir como
tira-gosto para tomar cachaça. Torrar as castanhas do caju era uma atividade
perigosa para os pequenos. Porém, as danadas são deliciosas. Lembro da primeira
vez que tomei suco de caju, batido no liquidificador, lá na casa da minha tia
Lica, irmã da minha mãe. Tia morava no bairro Petrópolis, em Caruaru. Ela batia
uns cajus com água, gelo, e um pouco de leite (natural, direto do peito da
vaca). Uma delícia. Ainda faço o dito suco com a receita da tia Lica. Acho
esquisito quando tomo o danado sem seguir a receita.
Mas, voltando ao telefone, fixo, diga-se de passagem. Fui apresentado a um aparelho por volta do final de abril de 1978, lá na casa da Madre Porto, na rua Viscondessa do Livramento, no bairro do Derby, Recife. Ela coordenava, se a memória não falha, a Pastoral da Comunicação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB – Regional NE-II). Com Madre Porto moravam as minhas tias, irmãs de papai, Irmã Maria e Irmã Dionísia, que articularam para eu iniciar a minha trajetória profissional (e militância política) na Rua do Giriquiti, onde funcionava a Regional da CNBB e as coordenações pastorais da Arquidiocese.
Só sabia conversar olho no olho, sem interferências e intermediações tecnológicas.
Comecei a trabalhar na CNBB-NE-II no início de maio de 1978. A sede ficava onde, atualmente, funciona o Centro Comercial (Shopping) da Boa Vista. Conheci pessoas maravilhosas: Vanise Rezende, Ceça da Mangueira, Fátima e Tânia, e muito mais. No primeiro dia de trabalho, Vanise – que também é minha mãe do coração –, explicou as minhas atividades (organizar arquivo, servir cafezinho, limpeza, trabalhos na rua e atender telefone). Um multiprofissional.
Matuto, aliás, escutei “ordem cronológica”, pela primeira vez, aos 15 anos.
Eram várias
salas no primeiro andar. Um dia o telefone tocou numa das salas. Fátima pediu
para eu atender. Cheguei no bicho, tirei-o do gancho e disse “alô e “bom dia”.
Ninguém respondeu. Voltei para minha sala para organizar, em ordem cronológica,
boletins das arquidioceses, dioceses, sindicatos e muitos mais. Matuto, aliás,
escutei “ordem cronológica” pela primeira vez aos 15 anos. Nunca esqueci.
Vanise orientou: organize o boletim de notícias da Arquidiocese de Natal (RN)
em ordem cronológica, deixando os números (lembro como se fosse agora) os mais
antigos no fundo da pasta A-Z e os recentes na parte de cima. Tarefa cumprida,
rápido e segundo a avaliação de Vanise, muito bem executada. Já ia esquecendo,
o danado do telefone continuou tocando.
Voltei lá na
sala e refiz o procedimento ensinado por Madre Porto e ninguém respondeu. Para encurtar a história, Fátima perguntou como eu estava atendendo
a ligação e eu, prontamente, expliquei. Nova descoberta: o telefone fixo tinha
quatro ramais (A, B, C e D) e recebi a transferência das chamadas atendidas na
central no térreo do belo edifício na Rua do Giriquiti. Era para apertar a
letra que piscava e tocava, freneticamente. Matuto sofre quando se depara com a
tecnologia.
Agora já posso
falar da saudade do telefone fixo. Mas, outra vez, muita hora nessa calma. Ou
muita calma nessa hora! É que o telefone celular não deixa ninguém em paz. O
bicho vai para tudo o que é lugar. Sala, cozinha, mesa, cama, sofá, trabalho,
cinema, teatro, estádio de futebol, bar, casa de parente, amigo, vaquejada,
aniversário, casamento, casa do vizinho, restaurante, praia, piscina,
lanchonete, padaria, feira livre, supermercado, missa, culto, Natal, Ano Novo,
festa de padroeira, São João, Carnaval e Noite dos Tambores Silenciosos.
Inté no banheiro. Viaja de carro, charrete, carro de boi, barco. E inté de
avião. O telefone fixo, não. Fica fixo. O celular é um tremendo intrometido e
tem múltiplas funcionalidades. Utilidades. Algumas até interessantes. Deixa
para lá. Não é o assunto.
Lembro que
quando eu estava no Governo do Estado de Pernambuco –Secretário-executivo dos Sistemas Protetivo e Socioeducativo –, o celular era um tormento. Tocava a qualquer momento. Funcionava 24
horas. Estou fazendo um esforço, mas preciso melhorar para ter desapego com o
danado. Agora, estou definindo o horário de olhar as mensagens e, normalmente,
deixo-o no silencioso. As mensagens chegam, freneticamente, a qualquer
instante.
Às vezes sou (e
você também é) inserido em grupos passadores de mensagem etc. e tal (conhecido
por ‘zap’ ou WhatsApp), sem autorização. Lembro de Carlinhos, colega de jogar
bola lá no Clube Líbano (Recife) que falou algo do tipo: “tem gente que cria
grupo só para ser administrador e pensa que é possível colocar isso no seu
currículo, no lattes”, aquela plataforma do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), para alimentar o currículo.
No celular tem grupo para todo e qualquer assunto e muitíssimo mais. Se não
tiver cuidado, é possível passar 24 horas só respondendo ou comentando assuntos
que vão da catota ao foguete. Haja criatividade! Pense num bicho sem educação,
o passador de mensagem! As mensagens chegam sem um “bom dia”, “boa tarde”. “Boa
noite”, nem pensar.
Com a pandemia
da Covid–19 – não vou escrever nada sobre a Covid-17,
pois ele desistiu desse número –, o celular ganhou mais força. O que tem
de atividades virtuais! Overdose perde feio. Deixa para lá.
Confesso que
estou pensando seriamente em comprar um telefone fixo e abandonar o celular.
Quem quiser falar comigo, se for coisa importante, vai ter múltiplas possibilidades:
telefonar no fixo (e não quero aquele sem fio, o bicho também anda), enviar
mensagem pelo correio eletrônico, ou mandar carta (sim, a famosa
correspondência, pelo Correio Postal). E olhe, querem privatizar o danado, como
se a privatização fosse a alternativa). Não vamos nos esquecer de Mariana e
Brumadinho.
Estou
esperando um novo normal – que chegue logo a 3ª dose para todos! –, e vamos ampliar (ou retomar) as possibilidades: tomar cafezinho, comer
torta dietética. Beber cerveja, vinho ou como diz Silvino Neto – ex-presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do
Adolescente do Estado de Pernambuco –, é melhor
marcar para “tomar uma cachaça”. Tem assunto que precisa de algo forte. Estou
com Silvino.
Reconheço as
possibilidades de comunicação que o celular oferece. Porém, o bicho se
movimenta e perturba demais. Tem gente que passa mais tempo agarrado com o
celular, do que lendo um bom livro, uma revista, um jornal (impressos, de
preferência). Deixo duas dicas: assistam o documentário “O dilema das Redes
Sociais” e o “Excêntrico”, do Portas dos Fundos, disponíveis em plataformas
digitais. Ambos ajudam na reflexão.
Viva o
telefone fixo! Viva o suco de caju da Tia Lica! Viva o cuscuz, de milho quase
seco, feito por mamãe. Viva a vida matuta. Viva o planeta Terra e a Mãe
Natureza, tão castigados.
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Texto originalmente publicado em:
ResponderExcluirQuerida, Vanise,
Muito feliz pelo nosso reencontro, mãe do coração. Obrigado pela oportunidade de compartilhar um pouco da experiência de escrever. Grande abraço.