Alegro-me de registrar aqui a memória de uma inspirada atitude do Cacique RAONI que, nos dias 14 a 17 de janeiro passado, reuniu mais de 600 pessoas representantes de 45 Povos Nativos do Brasil e alguns colaboradores. Após quatro dias de diálogo e considerações, eles assinaram um manifesto pela vida denunciando o descuido e a perseguição que veem sofrendo do atual governo do Brasil.
O Cacique Raoni Metuktire é um líder indígena brasileiro da etnia caiapó originária de Mato Grosso. É conhecido internacionalmente por sua luta pela preservação da Amazônia e dos povos indígenas.
"O evento na Terra Indígena Capoto Jarina foi marcado de simbolismo. Além de um documento conciso, o encontro promoveu o diálogo entre os povos de todas as regiões do país" - escreve a jornalista Juliana Arini, da Agência Amazônia Real. No final da reportagem acesse a íntegra do manifesto.
Segue o texto.
RAONI REÚNE REPRESENTANTES DE
45 POVOS NATIVOS E LANÇAM UM MANIFESTO
"Vou continuar até quando meu corpo resistir. Estamos unidos para defender o Povo e a terra”, declarou Raoni, em entrevista à Amazônia Real.
Por
quatro dias, a aldeia Piaraçu, na Terra Indígena Capoto Jarina (MT), tornou-se
o centro do mundo para 45 povos indígenas. Cerca de 600 lideranças indígenas
protagonizaram um evento inédito em todo o país, o Encontro dos Povos Mebengokrê. No final do encontro, após
quatro dias e muitos debates, os povos indígenas deram um exemplo a todo Brasil
durante a construção do documento “Manifesto do Piaraçu das lideranças indígenas e caciques do Brasil”.
O
encontro foi idealizado pelo líder Kayapó Raoni, ou Raoni Metukire, em seu
idioma materno, que mesmo com quase noventa anos, insiste em convencer os
homens a repensarem a ocupação do planeta. “Não vou desistir, vou continuar até
quando o meu corpo resistir. Se o homem branco insistir em cortar floresta,
fazer barragem em rio, garimpo e destruir tudo, vou continuar aqui, lutando”,
diz ele, durante entrevista exclusiva à agência Amazônia
Real.
Cacique Raoni e o líder Megaron (ao centro), reunidos no Encontro dos Povos Mebengokrê (Foto: Midia Ninja/Cobertura Colaborativa)
Raoni
responde às indagações da reportagem com uma resolução que por trás de sua
pintura tradicional camufla o peso da idade. Os olhos lacrimejam, não há mais a
agilidade do guerreiro alto e esguio que começou a lutar pelo povo Kayapó nos
anos de 1970, mas a sua determinação causa espanto. O
líder permaneceu até o último momento da votação do documento, que envolveu
discussões sobre os direitos das mulheres, o respeito aos jovens e,
principalmente, como os povos indígenas vão enfrentar um grande desafio: as
políticas anti-indígenas do atual governo brasileiro.
Os
povos da floresta - representados pela filha do líder seringueiro e ambientalista
Chico Mendes (1944-1988), Angela Mendes, que atua na coordenação do Comitê Chico Mendes -
também participaram das discussões do documento.
“Desde o ano passado percebemos que
precisávamos nos unir, pois os tempos atuais pedem que estejamos todos juntos.
Temos um governo literalmente fascista”, afirmou Ângela, muito emocionada, após
reencenar um momento protagonizado por seu o pai nos anos de 1980 ao se reunir
com povos indígenas para firmar uma aliança dos Povos da Floresta.
O encontro na terra indígena Kayapó
foi um sucesso. Eram esperadas 450 pessoas, mas o evento reuniu 600
participantes. Alguns convidados – e mais de 200 visitantes extras, bem
recebidos -, viajaram por até cinco dias, dormiram em barracas, redes e em
alojamentos improvisados para atender o chamado de Raoni. A grande maioria das
pessoas era indígenas, somados a jornalistas nacionais e internacionais, e amigos
de longa data do cacique.
Encerramento do Encontro dos Povos Mebengokrê no Xingu - Foto de:
Todd Southgate/Cobertura Colaborativa.
O
clima era de alegria, com os representantes de 45 povos vestidos nas cores de suas culturas originais
Encerramento do Encontro dos Povos Mebengokrê no Xingu - Foto de:
Todd Southgate/Cobertura Colaborativa.
A reunião final, no centro da aldeia,
com todas as lideranças e seus representantes que participaram da luta pela
inclusão dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988, foi um dos
momentos mais emocionantes.
As discussões do evento apontaram o governo do presidente Jair Bolsonaro como um dos principais inimigos dos povos indígenas hoje. “Queríamos que a Funai (Fundação Nacional do Índio) voltasse aos bons tempos. Estivesse fortalecida e com estrutura para ajudar os povos indígenas como nos tempos de Olímpio Serra, Sidney Possuelo, Claudio Romero e os outros presidentes que realmente pensavam nos povos indígenas”, conta Megaron Txucarramãe, tradutor, sobrinho e cotado para ser um dos possíveis sucessores de Raoni.
Encerramento do Encontro dos Povos Mebengokrê no Xingu (Foto: Mídia Ninja/ Cobertura Colaborativa)
As discussões do evento apontaram o governo do presidente Jair Bolsonaro como um dos principais inimigos dos povos indígenas hoje. “Queríamos que a Funai (Fundação Nacional do Índio) voltasse aos bons tempos. Estivesse fortalecida e com estrutura para ajudar os povos indígenas como nos tempos de Olímpio Serra, Sidney Possuelo, Claudio Romero e os outros presidentes que realmente pensavam nos povos indígenas”, conta Megaron Txucarramãe, tradutor, sobrinho e cotado para ser um dos possíveis sucessores de Raoni.
Encerramento do Encontro dos Povos Mebengokrê no Xingu (Foto: Mídia Ninja/ Cobertura Colaborativa)
Em
sua casa, Megaron explicou à reportagem da Amazônia Real como
a trajetória de Raoni forjou o líder atual. “Crescemos no Xingu. O povo Kayapó
fez parte da diáspora dos povos que perderam o seu território com a abertura
das estradas que cortaram a Amazônia a partir da década de 1950. Fomos levados
para lá e por lá ficamos um tempo, até que decidimos voltar aqui para às margens do Xingu”, diz.
Raoni nasceu na aldeia
Krajmopyjakare, hoje chamada Kapôt – filho do líder Umoro, uma grande liderança
de seu povo. Apesar de só conhecer o “homem branco” em 1954, seu povo já sofria
há décadas com os ataques.
“Não gostei quando conheci o homem
branco. Tive medo, minha avó, de quem herdei o meu nome, sempre contava das
histórias de ataques e mortes. Eles (brancos) no encurralaram aqui. Antes nosso
povo andava por tudo. Goiás, Tocantins, até beira do Rio de Janeiro era nosso
território de andar e migrar. Agora só conseguimos mudar um pouco aqui em nossa
terra”, conta Tuíra Kayapó, prima consanguínea, mas ao mesmo tempo neta de
Raoni, segundo a estrutura de parentesco dos Kayapó.
O evento na Terra Indígena Capoto
Jarina foi marcado de simbolismo. Além de um documento conciso*, o encontro
promoveu o diálogo entre os povos de todas as regiões do país.
“Cresci com Raoni no Xingu, e vou
estar sempre ao lado dele. Nossa luta é igual, pelo território e cultura do
povo indígena”, explica Afukaka Kuikuro, um dos grandes líderes do Parque
Nacional do Xingu, uma das maiores terras indígenas do país
“Precisamos nos unir não só para defender
território, mas para cuidar que os jovens tenham orgulho de ser indígena e veja
futuro dentro de nossa cultura”, conclui o líder xinguano.
Paulinho Paiakan, no Encontro dos Povos Mebengokrê - Foto: Midia Ninja/Cobertura Colaborativa)
Paulinho Paiakan, no Encontro dos Povos Mebengokrê - Foto: Midia Ninja/Cobertura Colaborativa)
O
encontro também resgatou a visibilidade de lideranças Kaypó históricas. É o
caso de Paulinho Paikan, voz atuante entre seu povo no contexto
político. “Não vou me calar quando for para defender a natureza. Esse é o meu
direito a vida, e as ameaças cresceram muito”, disse ele à Amazônia Real.
“Pensei muito sobre isso tudo que tem
nos cercados – ele explicou. Cheguei à conclusão que a soja é a ilusão do
dinheiro. A dependência do dinheiro é algo que não tem fim, não se esgota; se
entrarmos nesse caminho vamos nos devorar, não terá fim”.
Ameaças vizinhas
Capoto Jarina é um exemplo dos novos
tempos entre os Kayapó. A terra indígena é cortada por uma estrada por onde
trafegam inúmeras carretas de soja e gado. A estrada é o marco físico de dois
territórios indígenas, o mundo Kayapó e o Parque Nacional do Xingu, mas em
ambos os lados é possível perceber o quanto a floresta já sucumbiu ao corte de
madeira. Uma franja de floresta rala e cercada do “mato-bravo”, trepadeira
espinhosa também conhecida como “juquira”, toma conta do horizonte em ambos os
lados.
No passado, conforme lembra Márcio
Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA), os próprios Kayapó
chegaram a se envolver com corte de madeira e com garimpo, atividade que
causava divisão entre eles. Santilli é reconhecido por sua atuação no
indigenismo brasileiro, e foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai)
de 1995 a 1996.
“Por
um tempo, os Kayapó estiveram envolvidos com o corte de madeira e garimpo,
ainda nos anos de 1990. Eu me desentendi com muitas lideranças daqui para
tentar mudar o pensamento deles. Mas Raoni nunca apoiou essa conduta e sua
postura foi fundamental para que passassem a evitar o assédio do homem branco
sobre as suas riquezas”, disse Marcio Santilli, em declaração à Amazônia Real.
Encerramento do Encontro dos Povos Mebengokrê no Xingu.
Foto: Todd Southgate/CoberturaColaborativa).
No Encontro na aldeia Piaraçu, Márcio
Santilli contribuiu repassando informações aos indígenas sobre as atuais
propostas do governo federal que envolvem o arrendamento de terras indígenas
para não-indígenas e a regulamentação da mineração, na qual um dos pontos mais
controversos é a proposta do governo de não dar poder de veto aos povos
indígenas.
“Meu pai lutou muito para estudarmos,
chegou a se desentender com os familiares, mas nós conseguimos. Minhas irmãs
são enfermeiras, eu sou advogada e todas nós estudamos inglês. Sempre
participamos do movimento indígena”, explica Paiakan Kayapó, que é vista
como uma liderança pelo próprio Raoni.
“Precisamos dos jovens para manter a
nossa luta. Eles são fundamentais”, afirma Aritana Yalapiti, um dos caciques
xinguano presente na reunião. “Raoni desde muito cedo sempre foi esse líder, os
jovens precisam buscar essa postura”, afirma.
Novos líderes
A delicada questão da sucessão de
cacique Kayapó, é um tema pouco discutido. Nas terras indígenas poucos se
habilitam a se candidatarem ou lutar pelo reconhecimento necessário para
tornarem-se uma liderança.
Pai de dez filhos, Raoni perdeu em
dois acidentes os herdeiros naturais. Seu primogênito morreu em um acidente
pouco esclarecido nos anos de 1990, quando seu povo ainda vivia no Parque
Nacional do Xingu. Após o incidente, Raoni migrou para dentro do território
Kayapó, abandonando de vez o local para onde foram levados pelos sertanistas
Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Boas, à época do contato, em 1954.
A aldeia de Raoni é tão reservada
quanto a possibilidade de manter um contato mais próximo com ele. Apesar de ser
uma figura pública, Raoni é quase sempre esquivo ao assédio de quem o admira. A
aldeia isolada é uma proteção ao cacique. O único caminho é o rio Xingu em uma
viagem de mais de duas horas. Foi para lá que ele convidou o seu sobrinho
Bepkmro Metuktire e atual tradutor para morar.
“Ele
já expôs o seu desejo de me transmitir a liderança e pediu para eu estudar e me
preparar”, explica Bepkamro, ou Ta-ú como é conhecido
Bepkamro é vice-presidente do
Instituto Raoni, a associação que o povo Kayapó utiliza para captar recursos
para projetos de economia sustentável, como atividades agroflorestais nas
aldeias e para fazer eventos como os dessa semana. O cargo é outro símbolo de
proximidade com Raoni. Antes dele, o segundo filho do cacique, Tedje
Metukitire, falecido em um acidente de carro em 2004, ocupava o cargo.
Mas a sucessão do cacique para as
lutas futuras também envolverá uma figura feminina, com já anunciou o próprio
Raoni, quebrando a tradição de transmissão da chefia apenas aos homens. O nome
dessa figura segue sem ser definido.
Hoje
a mulher mais respeitada entre os Kayapó é Tuíra. Para ela a figura de Raoni foi fundamental para
tornar-se uma líder. “Desde jovem ele sempre vem lutando, e me vez ver o sonho
da luta e segui-lo, mas a liderança é dos jovens. Daqui em diante nosso futuro
está com as jovens mulheres”, explicou.
Militância pacífica
Enquanto não há ainda a previsão de
um sucessor, o cacique viaja para repetir a mesma mensagem em inúmeras
entrevistas e discursos. “Enquanto o indígena tiver ameaçado, eu vou pedir a
paz”, diz Raoni.
O início de sua cruzada envolveu
encontro com vários presidentes brasileiros e estrangeiros. O primeiro deles
foi Juscelino Kubitschek, nos anos 1950, e o ultimo o presidente francês
Emanuel Macron, em 2019. Raoni apenas não se encontrou ainda com o atual
presidente brasileiro Jair Bolsonaro, com quem vive uma história mútua de
aversão.
O discurso
anti-indígena do presidente foi uma das razões do sucesso do encontro na Aldeia
Piaraçu. O documento pode ser considerado símbolo da resistência indígena e dos
povos tradicionais contra velhos inimigos dessas nações, como na abertura de
novas áreas de floresta, a mineração e a disputa pela terra
“Essa reunião não veio para fazermos
guerra. Estamos unidos para defender
o povo e a terra. Quero que todo mundo respeite os indígenas e nos deixe viver
paz”, concluiu Raoni, que na semana que vem estará em Oxford, no Reino Unido,
em um seminário sobre meio ambiente e direitos sociais.
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Fonte do texto:
Íntegra do Manifesto dos Povos Indígenas reunidos pelo Cacique Raoni:
Veja também:
Para entender melhor a história de luta dos povos indígenas:
https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2017/11/Cimi-40-anos_manifesto-contra-decretos-exterminio.pdf
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