Ali, Marielle e Marisa Letícia:
vítimas da ignorância.
Reproduzimos um oportuno e incisivo artigo de Magali do Nascimento Cunha, que nos convida a pensar e experimentar o testemunho de uma convivência mais humana, nesses tempos de ódios, interesses e descalabros.
Por: Magali do Nascimento Cunha
Fonte: Carta Capital - 12/04/2018
As mídias digitais necessitam
com urgência de um choque
de humanidade.
Quando nos referimos ao humano, não ficamos apenas na ideia do homo sapiens (humano sábio) e da humanidade como conjunto dos seres humanos. Consideramos também a ótica da natureza, dos traços diferentes que homens e mulheres tendem a demonstrar, que incluem maneiras de pensar, sentir ou agir, que formam virtudes e fraquezas.
Nesse sentido, referimo-nos ao humano em nossa vida coletiva, por suas virtudes, como sinônimo de bondade, amor,
piedade, coragem, respeito, compreensão para com os outros, especialmente
aquelas de fora do círculo de convivência.
Assim dizemos que alguém “é muito
humano” para destacar a capacidade que ele tem de simpatia pela realidade de
outros, especialmente aqueles em situação vulnerável e ser aberto a compreender
o que não é parte do seu jeito de ser. Humanidade é o termo que também usamos
para o que é e deve ser cultivado neste sentido por homens e mulheres.
Quando nos deparamos com situações que
mostram o oposto disto, ou seja, crueldade, indiferença ao mal, violência dura
e friamente praticada, de forma física ou simbólica, usamos o termo “desumano”
ou “desumanidade”.
Entretanto, há ainda outra qualificação
que podemos atribuir àqueles homens e mulheres que vão além do desumano. Quando
se mostram desprovidos de sentimentos de respeito, consideração, amor,
generosidade, por meio de atitudes que revelam a ausência da identidade humana.
Chamamos estes homens e mulheres que não se apresentam como humanos de
“inumanos” ou revestidos de “inumamidade”.
Esta
reflexão me ocorre por conta deste tempo que vivemos no cristianismo, a Páscoa, o período de 50 dias
depois do domingo em que recordamos a ressurreição de Jesus de Nazaré, o Cristo
crucificado pelo Império Romano com anuência do poder judaico.
Ainda ecoam nos meus pensamentos que
Jesus, depois de um julgamento injusto, baseado em convicções, finalizado por
um ‘juiz’ que lava as mãos, depois de receber a pena de morte, de ser
torturado, receber na cabeça uma debochada coroa de espinhos e ser pregado com
pregos numa cruz de madeira, teve que ouvir do público que se deleitava com a
crueldade e a injustiça: “Desce da cruz.
Salva-te a ti mesmo”.
Quem, mantida viva a sua identidade
humana, não se indigna quando lê ou assiste a uma narrativa deste episódio que
mostra tanta inumanidade.
Como não
pensar no nosso próprio Brasil. Em agosto do ano passado, o refugiado
sírio Mohamed Ali, vendedor de 'esfihas' em Copacabana, no Rio de Janeiro, foi agredido por um homem, com apoio
de outros, que derrubou sua mercadoria e gritava: “Saia do meu País. Eu sou brasileiro e estou vendo meu País ser invadido
por esses homens-bombas que mataram, esquartejaram crianças, adolescentes. São
miseráveis... Essa terra aqui é nossa. Não vai tomar nosso lugar não".
As cenas se encerraram com o agressor entoando: "Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor".
Neste março,
o torcedor do Palmeiras William de Lucca criticou, no Twitter, os cantos da
torcida do seu time contra a do São Paulo, carregados de homofobia. Após a
repercussão, o jovem deu uma entrevista a um programa de tevê e
emocionou o comentarista Walter Casagrande, que fez um desabafo, ao dizer
que a dor é parecida de quando ele é ofendido por histórico de dependência
química. “O que me ofendem
nas redes sociais, me chamam de viciado, drogado… Não posso falar nada de ninguém por causa do meu passado. Quem
sou eu para falar de alguém se fiquei internado. Eu sofro isso diariamente”.
Em janeiro
de 2017, a médica reumatologista Gabriela Munhoz enviou mensagens a um grupo de
Whatsapp de antigos colegas de faculdade, confirmando que a ex-primeira
dama Marisa Letícia estava
no pronto-socorro do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, com diagnóstico de
Acidente Vascular Cerebral hemorrágico gravíssimo, prestes a ser levada para a
UTI. Um colega de Gabriela, o médico
residente em urologia Michael Hennich, postou, quando ela disse que Marisa não
tinha sido levada, ainda, para a UTI: “Ainda
bem”. Gabriela respondeu com risadas.
Outro médico do grupo, o neurocirurgião
Richam Faissal Ellakkis, também comentou: “Esses
fdp vão embolizar ainda por cima”, escreveu, em referência ao procedimento
de provocar o fechamento de um vaso sanguíneo para diminuir o fluxo de sangue
em determinado local. “Tem que romper no
procedimento. Daí já abre pupila. E o capeta abraça ela”, escreveu
Ellakkis.
Nesta
semana, tomamos conhecimento de um áudio vazado na internet, autêntico, segundo
a Força Aérea Brasileira, em que alguém, sem se identificar, diz ao piloto que
levava Lula para Curitiba: “Leva e não traz nunca mais”, "manda
esse lixo janela
abaixo”. O áudio foi curtido e aplaudido por milhares.
Estes
comportamentos se assemelham à repercussão da execução da vereadora Marielle Franco há um
mês. Houve comoção e movimentos de rua em solidariedade à família e ao povo do
Rio de Janeiro, mas houve também expressões públicas que a classificaram como
“vagabunda safada” e afirmaram que “teve o que procurou”, entre outras menções
inumanas diante da situação dramática.
Estes são exemplos recentes, graves,
cujos casos ganharam destaque nas mídias. Poderíamos tratar aqui de muitos
outros, com gente simples, como a hostilidade a imigrantes, a homofobia
transformada em violência física, o escárnio em relação a quem vive no limite
da vida, como moradores de rua, dependentes químicos, indígenas. É alarmante
identificarmos entre os inumanos jovens e até crianças.
Torna-se um alívio quando lembramos que
ainda há muita gente humana que mostra que a humanidade tem jeito, sim. Vocês,
leitores e leitoras, podem exercitar a lembrança de histórias. Precisamos
torná-las mais conhecidas e visíveis, e, com isso cultivarmos e alimentarmos as
virtudes da humanidade entre nós. Isto tem que ser feito a começar da nossa
presença nas mídias digitais: elas precisam de um choque de humanidade.
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Fonte do texto: Carta Capital – Diversidade/Sociedade - Brasil 2018:
Precisa-se de humanos
Publicado em 12/04/2018
Créditos imagens: foto reproduzida no artigo acima.
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