Há duas semanas ficamos sabendo dos manifestos havidos contra as medidas socialistas em Cuba. Muitos, na grande imprensa do Brasil, aproveitaram para apontar as dificuldades por que passa a população de Cuba, como se não soubéssemos do forte bloqueio econômico norte-americano, seguido por todos os países aliados, contra Cuba. Não esqueçamos que o Brasil deixou de contar com os excelentes serviços dos médicos cubanos, em nosso território, pelas mesmas razões. Foi uma forma de apoio do atual governo brasileiro ao bloqueio econômico ao povo cubano. Ninguém melhor do que o escritor Frei Beto para trazer-nos informações confiáveis sobre o que está acontecendo por lá. Reproduzo, aqui, o seu artigo sobre o assunto.
CUBA RESISTE
Artigo de: Frei Betto*
Poucos ignoram minha solidariedade à Revolução Cubana. Há 40 anos visito com frequência a Ilha, em função de compromissos de trabalho e convites a eventos. Por longo período intermediei a retomada do diálogo entre bispos católicos e o governo de Cuba, conforme descrito em meus livros “Fidel e a religião” (Fontanar/Companhia das Letras) e “Paraíso perdido – viagens ao mundo socialista” (Rocco). Atualmente, contratado pela FAO, assessoro o governo cubano na implementação do Plano de Soberania Alimentar e Educação Nutricional.
Conheço em detalhes o cotidiano cubano, inclusive as dificuldades enfrentadas pela população, os questionamento à Revolução, as críticas de intelectuais e artistas do país. Visitei cárceres, conversei com opositores da Revolução, convivi com sacerdotes e leitos cubanos avessos ao socialismo.
Quando dizem a mim, um brasileiro, que em Cuba não há democracia, desço da abstração das palavras à realidade. Quantas fotos ou notícias foram ou são vistas sobre cubanos na miséria, mendigos espalhados nas calçadas, crianças abandonadas nas ruas, famílias debaixo de viadutos? Algo semelhante à cracolândia, às milícias, às longas filas de enfermos aguardando anos para serem atendidos num hospital?
Advirto os amigos: se você é rico no Brasil e for viver em Cuba conhecerá o inferno. Ficará impossibilitado de trocar de carro todo ano, comprar roupas de grife, viajar com frequência para férias no exterior. E, sobretudo, não poderá explorar o trabalho alheio, manter seus empregados na ignorância, “orgulhar-se” da Maria, sua cozinheira há 20 anos, e a quem você nega acesso à casa própria, à escolaridade e ao plano de saúde.
Se você é classe média, prepare-se para conhecer o purgatório. Embora Cuba já não seja uma sociedade estatizada, a burocracia perdura, há que ter paciência nas filas dos mercados, muitos produtos disponíveis neste mês podem não ser encontrados no próximo devido às inconstâncias das importações.
Se você, porém, é assalariado, pobre, sem-teto ou sem-terra, prepare-se para conhecer o paraíso. A Revolução assegurará seus três direitos humanos fundamentais: alimentação, saúde e educação, além de moradia e trabalho. Pode ser que você tenha muito apetite por não comer o que gosta, mas jamais terá fome. Sua família terá escolaridade e assistência de saúde, incluindo cirurgias complexas, totalmente gratuitas, como dever do Estado e direito do cidadão.
Nada é mais prostituído do que a linguagem. A celebrada democracia nascida na Grécia tem seus méritos, mas é bom lembrar que, na época, Atenas tinha 20 mil habitantes que viviam do trabalho de 400 mil escravos... O que responderia um desses milhares de servos se indagado sobre as virtudes da democracia?
Não desejo ao futuro de Cuba o presente
do Brasil, da Guatemala, de Honduras e ou mesmo de Porto Rico, colônia
estadunidense, à qual é negada independência. Nem desejo que Cuba invada os EUA
e ocupe uma área litorânea da Califórnia, como ocorre com Guantánamo,
transformada em centro de torturas e cárcere ilegal de supostos terroristas.
Democracia, no meu conceito, significa o
“Pai nosso” - a autoridade legitimada pela vontade popular -, e o “pão nosso” -
a partilha dos frutos da natureza e do trabalho humano. A rotatividade
eleitoral não faz, nem assegura uma democracia. O Brasil e a Índia, tidas como
democracias, são exemplos gritantes de miséria, pobreza, exclusão, opressão e
sofrimento.
Só quem conhece a realidade de Cuba anterior a 1959 sabe por que Fidel contou com tanto apoio popular para levar a Revolução à vitória. O país era conhecido pela alcunha de "prostíbulo do Caribe". A máfia dominava os bancos e o turismo (há vários filmes sobre isso). O principal bairro de Havana, ainda hoje chamado de Vedado, tem esse nome porque, ali, os negros não podiam circular...
Os EUA nunca se conformaram por ter perdido Cuba sujeita às suas ambições. Por isso, logo após a vitória dos guerrilheiros de Sierra Maestra, tentaram invadir a Ilha com tropas mercenárias. Foram derrotados em abril de 1961. No ano seguinte, o presidente Kennedy decretou o bloqueio a Cuba, que perdura até hoje.
Cuba é uma ilha com poucos recursos. É obrigada a importar mais de 60% dos produtos essenciais ao país. Com o arrocho do bloqueio promovido por Trump (243 novas medidas e, até agora, não removidas por Biden), e a pandemia, que zerou uma das principais fontes de recursos do país, o turismo, a situação interna se agravou. Os cubanos tiveram que apertar os cintos. Então, os insatisfeitos com a Revolução, que gravitam na órbita do “sonho americano”, promoveram os protestos do domingo, 11 de julho – com a “solidária” ajuda da CIA, cujo chefe acaba de fazer um giro pelo Continente, preocupado com o resultado das eleições no Peru e no Chile.
“Temos sido honestos, temos sido transparentes,
temos sido claros e, a cada momento, explicamos ao nosso povo as complexidades
dos dias atuais. Lembro que há mais de um ano e meio, quando começou o segundo
semestre de 2019, tivemos que explicar que estávamos em situação difícil. Os
EUA começaram a intensificar uma série de medidas restritivas, endurecimento do
bloqueio, perseguições financeiras contra o setor energético, com o objetivo de
sufocar nossa economia. Isso provocaria
a desejada eclosão social massiva, para poder apelar à intervenção
“humanitária”, que terminaria em intervenções militares”.
“Essa situação continuou, depois vieram
as 243 medidas (de Trump, para arrochar o bloqueio) que todos conhecemos e,
finalmente, decidiu-se incluir Cuba na lista de países patrocinadores do
terrorismo. Todas essas restrições levaram o país a cortar imediatamente várias
fontes de receita em divisas, como o turismo, as viagens de cubano-americanos
ao nosso país e as remessas de dinheiro.
Formou-se um plano para desacreditar as brigadas médicas cubanas e as
colaborações solidárias de Cuba, que recebeu uma parte importante de divisas
por essa colaboração.”
"Toda essa situação gerou uma situação de escassez no país, principalmente de alimentos, medicamentos, matérias-primas e insumos para podermos desenvolver nossos processos econômicos e produtivos que, ao mesmo tempo, contribuam para as exportações. Dois elementos importantes são eliminados: a capacidade de exportar e a capacidade de investir recursos.”
"Também tem limitações de combustíveis e de peças sobressalentes, e tudo isso tem causado um nível de insatisfação, somado a problemas acumulados que temos sido capazes de resolver e que vieram do Período Especial (1990-1995, quando desabou a União Soviética, com grave reflexo na economia cubana). Juntamente com uma feroz campanha mediática de descrédito, como parte da guerra não convencional, que tenta fraturar a unidade entre o partido, o Estado e o povo; e pretende qualificar o governo como insuficiente e incapaz de proporcionar bem-estar ao povo cubano.”
“O exemplo da Revolução Cubana incomodou
muito os EUA durante 60 anos. Eles
aplicaram um bloqueio injusto, criminoso e cruel, agora intensificado na
pandemia. Bloqueio e ações restritivas que nunca realizaram contra nenhum outro
país, nem contra aqueles que consideram seus principais inimigos. Portanto, tem
sido uma política perversa contra uma pequena ilha que apenas aspira a defender
sua independência, sua soberania e construir a sua sociedade com
autodeterminação, segundo princípios que mais de 86% da população têm apoiado.”
“Em meio a essas condições, surge a
pandemia, uma pandemia que afetou não apenas Cuba, mas o mundo inteiro,
inclusive os Estados Unidos. Afetou países ricos, e é preciso dizer que diante
dessa pandemia nem os Estados Unidos, nem esses países ricos tiveram toda a
capacidade de enfrentar seus efeitos. Os pobres foram prejudicados, porque não
existem políticas públicas dirigidas ao povo, e há indicadores em relação ao
enfrentamento da pandemia com resultados piores que os de Cuba em muitos casos.
As taxas de infecção e mortalidade por milhão de habitantes são notavelmente
mais altas nos EUA que em Cuba (os EUA registraram 1.724 mortes por milhão,
enquanto Cuba está em 47 mortes por milhão). Enquanto os EUA se entrincheiravam
no nacionalismo vacinal, a Brigada Henry Reeve, de médicos cubanos, continuou
seu trabalho entre os povos mais pobres do mundo (por isso, é claro, merece o
Prêmio Nobel da Paz).”
“Sem a possibilidade de invadir Cuba com
êxito, os EUA persistem com um bloqueio rígido. Após a queda da URSS, que
proporcionou à ilha meios de contornar o bloqueio, os EUA tentaram aumentar seu
controle sobre o país caribenho. De 1992 em diante, a Assembleia Geral da ONU
votou esmagadoramente pelo fim desse bloqueio. O governo cubano informou que
entre abril de 2019 e março de 2020 Cuba perdeu 5 bilhões de dólares em
comércio potencial devido ao bloqueio; nas últimas quase seis décadas, perdeu o
equivalente a 144 bilhões de dólares. Agora, o governo estadunidense aprofundou
as sanções contra as companhias de navegação que trazem petróleo para a ilha.”
É essa fragilidade que abre um flanco
para as manifestações de descontentamento, sem que o governo tenha colocado
tanques e tropas nas ruas. A resiliência do povo cubano, nutrida por exemplos
como Martí, Che Guevara e Fidel, tem se demonstrado invencível. E a ela
devemos, todos nós, que lutamos por um mundo mais justo, prestar solidariedade.
------------------------------------------------------
* Frei Betto é escritor, autor de 69 livros, editados no Brasil e no exterior. Você
poderá adquiri-los com desconto na Livraria Virtual – www.freibetto.org – Ali
os encontrará a preços mais baratos e os receberá em casa pelo correio.
Copyright 2021 – Frei Betto-Mhgpal - Agência Literária - mhgpal@gmail.com
http://www.freibetto.org/>
Twitter:@freibetto.
https://youtu.be/HnR2EsH9dac
------------------------------------------
Nenhum comentário :
Deixe seu comentário: